A reunião secreta

 A reunião secreta

Ilustração: Sandra Serra

(*)

O muito que aprendera com Beatriz, a convivência com Zazá, o seu encontro com Felício, a história do elefante Fantasma e a conversa com a coruja alimentaram em Rezinga a vontade de agir. E decidiu promover uma reunião.

Combinou com os outros animais comparecerem junto da caverna do morcego Maurício, com o propósito de o ouvir e de discutir assuntos do interesse de todos.

Rezinga convidou Felício a segui-lo e passou pela toca da atarefada Zazá, que concordou em acompanhá-lo, saltando de imediato para o seu dorso e agarrando-se aos pelos do seu pescoço. A cegonha Anacleta, no seu esplendoroso voo, dirigiu-se para a entrada do abrigo do morcego e a coruja Sabina, essa, de aparência imperturbável, foi a primeira a chegar.

O Sol já se deitara.

Noutros tempos, Maurício fora batedor, sendo o primeiro a sair, àquela hora, para ver se os outros morcegos podiam voar. Agora, estava velho e cansado. A colónia já tinha debandado em busca de alimento.

Pendurado pelos pés, de cabeça para baixo, parecia enfadado. Mas, perante a presença dos visitantes, esvoaçou e colocou-se à entrada da caverna, dando-lhes as boas-vindas, pois não era indelicado.

– Boa noite, amigos! Sejam bem-vindos à minha casa. – saudou ele. E continuou: – Não sei, ao certo, o que vos traz por cá… Sou pouco visitado a esta hora do dia e, na verdade, já me habituei a uma certa solidão. A noite é a minha companheira e o Mundo, na maior parte do tempo, não o vejo como vós. Vejo-o de pernas para o ar! Virado ao contrário… Estão a ver? E logo se pôs naquela posição estonteante, mas engraçada, de cabeça para baixo.

– Ora, é por isso mesmo que aqui estamos. Queremos saber como é ver tudo de pernas para o ar! – exclamou o gato, esperando de Maurício revelações surpreendentes.

– Sim, sim, estamos habituados a uma certa perspetiva do Mundo. – proferiu a coruja Sabina. – A nossa e aquela de que falam os que muito sabem ou pensam saber, e que se lê nos livros sobre coisas sérias e importantes. Mas não conheço nenhum livro que o descreva de pernas para o ar… Quero dizer, virado ao contrário. – concluiu a coruja.

– Eu, que sou tão viajada, já vi de tudo. O planeta é imenso, cheio de seres dos mais diversos tamanhos e feitios, capazes de incontáveis proezas, posso garantir. Mas tu, querido morcego, és especial. Tens de nos dar a tua visão das coisas… Compreendes? É o teu contributo para esta assembleia de animais. Somos poucos, mas em breve seremos mais. – e a cegonha Anacleta emproou-se, como se tivesse acabado de dar uma ordem. Porém, ordem não era. Coisas de cegonhas viajadas…

O morcego Maurício não contava com tamanha distinção e disfarçou o seu embaraço, rodopiando, brincalhão.

– Ora, ver o Mundo de pernas para o ar é, afinal, vê-lo como realmente ele é. – gracejou o morcego, deixando escorrer o riso. E acrescentou: – Pois não vos parece, por vezes, que está tudo virado do avesso? Penso até que a minha perspetiva é bastante acertada.

E continuava a galhofar, convencido de que todos partilhavam o seu sentido de humor: – Acreditem que é muito divertido ver tudo de pernas para o ar.

E dando uma cambalhota, pendurou-se num ramo seco, soltando um empolgado discurso, que ecoou por aquele lugar encoberto pela vegetação, mas onde a Lua já mergulhava timidamente a sua luz.

– Meus amigos, imaginem que, quando observo o Mundo, vejo o céu no lugar da terra, e a terra no lugar do céu; os rios com a água correndo, suspensos no ar; os pés das pessoas no lugar das suas cabeças e as cabeças andando como se tivessem pés; as copas verdes das árvores bordando o chão azul e os seus troncos castanhos estendendo-se em delírio para o alto; as flores de corolas caídas e raízes espetadas no céu castanho; os prédios de telhados cravados no solo azul, com a porta de entrada, imaginem vocês, lá no último andar; e, para mais animação, os carros e as máquinas rodando em estradas aéreas. As estrelas não brilham lá nas incomensuráveis alturas, mas estão plantadas no chão, onde também brilha o Sol e nos mira a Lua! Não é fantástico? – perguntou o morcego, muito divertido com a descrição da sua perspetiva.

Zazá estava muito calada, escutando, aninhada junto de Rezinga.

– Amigo Maurício, eu vivo nas profundezas mergulhadas na escuridão e pouco sei desta esplêndida realidade, mas esse teu cenário é deveras alucinante. – desembuchou a toupeira.

Todos os animais presentes naquela reunião estavam assarapantados.

Aquela visão do morcego era fenomenal. Como é que nunca se tinham lembrado de experimentar ver o Mundo assim? Afinal, bastava pendurarem-se de cabeça para baixo. Restava saber se todos conseguiriam fazê-lo…

Entretanto, Maurício esmorecera.

– O que se passa? Porque ficaste assim, macambúzio? – perguntou Rezinga ao morcego.

– O nosso planeta é magnífico, grandioso, admirável, visto de diferentes ângulos e perspetivas. – atirou Maurício, tentando enxotar a tristeza que o invadia.  E prosseguiu: – A verdade é que, hoje mesmo, fiquei a saber que as grandes máquinas vão rasgar uma imensa estrada, que vai passar, exatamente, aqui. Ficarei sem casa, pois destruirão esta gruta. O meu ecossistema será devastado e não sei para onde irá esta colónia de morcegos. – desferiu Maurício, num lamento resignado e, ao mesmo tempo, furibundo.

– Isso é terrível! – exclamou Zazá.

– Mas, então, os animais não têm direitos? – questionou, arreliada, a cegonha Anacleta.

– Sim, estão escritos na Declaração Universal dos Direitos do Animal. Tenho aqui o texto com todos os seus artigos. – informou, prontamente, Sabina.

Rezinga ficou alarmado com aquela notícia do morcego e pensou, para si próprio, que todos os seres humanos deviam conhecer e respeitar os direitos dos animais, bem como preservar as espécies e defender o meio ambiente.

A noite instalou-se e o breu pedia um pouco mais de luz.

Rezinga, Zazá, Felício, Sabina, Anacleta e Maurício resolveram ir até às margens do rio, clareadas pelo luar. Entenderam que não podiam ignorar os seus direitos e decidiram que, juntos, iriam ler a Declaração que os proclama.

Enquanto se instalavam para começar a leitura, o peixe Luzio aproximou-se. Queria falar, mas não conseguia! Tinha um saco de plástico a cobrir-lhe a cabeça, como se usasse uma tresloucada touca.

– Que coisa aflitiva! – exclamou Anacleta, apressando-se a retirar-lhe aquele empecilho, com o auxílio do seu grande bico.

Luzio agradeceu e, já mais aliviado, ficou junto da margem para assistir ao que se ia seguir, e também para participar naquela pequena assembleia.

Ali ficaram, secretamente, acompanhados pelo murmúrio das águas do rio, que era uma espécie de música infundindo uma paz que lhes servia de aconchego.

Sabina colocou os óculos e, com solenidade, começou a leitura, em voz alta, das palavras iniciais da Declaração. Dispunha-se a continuar e a ler o artigo 1.º, mas Rezinga adiantou:

Todos os animais nascem iguais perante a vida e têm os mesmos direitos à existência.

Felício não escondeu a sua surpresa perante o conhecimento demonstrado pelo gato e elogiou-o: – És um gato muito informado. É fantástica a tua educação!

Rezinga era humilde. Todavia, naquele momento, os seus belos bigodes vibraram mais intensamente e a cor de malva acendeu-se, o que acontecia sempre que era tomado pela satisfação e pelo entusiasmo.

Enquanto assim estavam, escutando e tentando compreender os seus direitos, de rompante, sentiram o vento sacudindo as águas que respingaram. E ouviram o ramalhar agitado das árvores. Ao longe, vislumbraram, com assombro, um animal gigantesco envolto numa auréola de luz. Aproximava-se, imponente, num passo lento. Seria uma miragem?

Então, algo inacreditável aconteceu.

– Fantasma! – gritou a Anacleta. – És tu, o elefante africano?… Aquele que viajou para a Ásia onde viveu em cativeiro!? És mesmo tu! …

Todos ficaram de tal modo surpreendidos e pasmados com aquela aparição que emudeceram. Apesar de não esperarem a visita de um fantasma, estranhamente, não sentiam medo, mas uma inquietante curiosidade perante a sua presença insólita.

O elefante aproximou-se calmamente e saudou os presentes. Logo após, a sua voz embargada ecoou num suave, mas veemente, discurso:

– Não podia faltar a esta reunião! Venho deixar-vos uma mensagem.

– Que mensagem? – perguntaram os amigos, em uníssono, recuperando o fôlego.

– A Humanidade compreenderá que todos os animais têm o direito a habitar o planeta, que é importante que sejam respeitados e que não sejam explorados nem sujeitos a maus-tratos ou a atos cruéis. Os homens tomarão consciência de que, sem os outros animais, a sua vida deixaria de ter sentido. A sua própria espécie ficaria em risco…

E o Fantasma continuou, asseverando que todos os animais são necessários, pois ajudam a manter a biodiversidade e o funcionamento de todos os ecossistemas do Mundo.

Por fim, anunciou a sua partida: – Adeus, amigos! Vou regressar ao meu paraíso. Cada um de vós é um ser precioso com direito a uma vida digna e livre! Os crimes contra os animais e contra a Natureza têm de acabar!

O elefante afastou-se e a sua imagem foi-se desvanecendo, transformando-se num halo maravilhoso que se firmou no escuro céu, cintilando como uma estrela.

Seguiu-se um silêncio que enlaçou as emoções, os sentimentos e as razões dos que ali permaneciam.

Depois de terem ouvido as palavras de Fantasma, os amigos sentiram-se revigorados e retomaram a leitura dos seus direitos, jurando, por fim, que iriam lutar para que fossem defendidos.

A noite ia longa e as últimas horas tinham sido emocionantes, intensas e transformadoras. Determinados e animados, dirigiram-se para as suas casas.

Rezinga caminhou, lentamente, na companhia de Zazá. Agarrada a ele, não proferiu qualquer palavra durante todo o percurso. Não era preciso, pois o silêncio abrigava a verdade que – a partir daquele dia, acendendo-se como uma luz invisível – passava a fazer parte das suas vidas.

«As crianças e jovens serão uma valiosa ajuda na construção de um mundo melhor e mais justo!» – pensava ele, enquanto se aproximava do seu lar.

Desta vez, seria ele a partilhar com Beatriz o seu conhecimento. Aprendera que o respeito pelos animais está ligado ao respeito do Homem pelo seu semelhante.

O relento desalinhava suavemente o seu pelo e os olhos, lavados pela aragem, abriam-se confiantes, descerrando a noite. Sentia-se reconfortado e orgulhoso pela sua ação.

Ilustração: Sandra Serra

Quando, por fim, chegou ao quintal, o gato parou, contemplando o firmamento. Perante a imensidão do Universo, meditou acerca da complexidade da vida na Terra e prometeu, a si próprio, nunca desistir de combater a indiferença.

Deu mais alguns passos para se aconchegar num dos seus refúgios preferidos. Enquanto fechava tranquilamente os olhos, ouviu Felício, que cantava com indisfarçável euforia.

Amanhecia.

Rezinga sentia a alegria e a esperança raiando dentro de si, como o Sol do qual começava a emanar uma clara luz.

Apercebeu-se de que uns passos familiares se aproximavam e viu surgir Beatriz. A menina abraçou-o e levou-o para o aconchego do seu quarto.

– Por onde andaste, gato do outro mundo? Procurei-te por todo o lado… Vais contar-me a tua aventura?

E, dizendo isto, a menina acariciou Rezinga, o qual ronronou e iniciou uma longa conversa.

………………….

(*) In “Rezinga – Um gato do outro mundo”

15/08/2022

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Celeste Almeida Gonçalves

É professora e escritora de obras para a infância e juventude, desenvolve vasta atividade de mediação de leitura em escolas e bibliotecas e dinamiza variados projetos, no âmbito da leitura e da escrita criativa.

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