Abaixo a inteligência?
Miguel de Unamuno, de barba branca, enquanto saía da Universidade de Salamanca, depois de ter enfrentado o general Millán-Astray, em 12 de outubro de 1936. (Direitos reservados)
A 12 de outubro de 1936, em plena Guerra Civil Espanhola, desenrolou-se na Universidade de Salamanca um dos episódios mais emblemáticos da resistência intelectual ao autoritarismo. Durante uma cerimónia oficial do regime franquista, na abertura do ano letivo daquela universidade, um general exaltava a morte como valor supremo, atacava a Catalunha e o País Basco e apelava à unidade de Espanha através da violência.
O ambiente tornava-se cada vez mais hostil, com gritos como “Viva a morte” e “Abaixo a inteligência”. Foi então que Miguel de Unamuno, filósofo e reitor da universidade, se ergueu para proferir palavras que atravessariam a História: “Vencereis, mas não convencereis.” Com esta frase, denunciava a ilusão de que a força bruta poderia substituir o pensamento, a razão e o diálogo – valores centrais à missão da universidade e da vida democrática.

tela, Museu de Belas Artes de Bilbao). (es.wikipedia.org)
Este momento tornou-se símbolo da tensão entre dois projetos de sociedade: por um lado, um espaço livre e plural, onde o confronto crítico de ideias é o motor do progresso; por outro, um modelo repressivo, onde o pensamento é percebido como ameaça à uniformização imposta. Quase um século depois, os ecos desse confronto ressoam noutras geografias e contextos, lembrando-nos que a desvalorização do saber continua a ser uma ferramenta recorrente em discursos populistas e antidemocráticos.
O leitor perceberá aonde pretendo chegar.
Durante os primeiros meses da presidência de Donald Trump, as universidades norte-americanas tornaram-se alvo prioritário da retórica da extrema-direita. Instituições como Harvard, Stanford ou Berkeley foram acusadas de “doutrinar os jovens”, de “odiar a América” ou de serem “bastiões do marxismo cultural”. O próprio presidente ameaçou cortar o financiamento público a universidades que, segundo ele, não garantissem a “liberdade de expressão” – um conceito frequentemente instrumentalizado para proteger discursos ultraconservadores e excluir visões divergentes. Mais recentemente, tentou até impedir a entrada de estudantes estrangeiros em Harvard, uma das poucas instituições que ainda resiste à corrosão dos seus valores fundacionais. Trump tem um objetivo claro: minar a credibilidade do pensamento académico e científico ao associá-lo a uma elite distante do “povo real”.

Este padrão está bem documentado: quanto mais um regime se sustenta na simplificação, na desinformação e na agitação emocional, mais teme a complexidade que o pensamento crítico representa. A Ciência, a Filosofia, a Sociologia, os estudos culturais ou o jornalismo tornam-se alvos privilegiados – não por irrelevância, mas porque desconstroem, questionam, revelam contradições. Como em Salamanca no ano de 1936, o ataque à universidade é sempre simbólico: é um ataque à própria ideia de democracia deliberativa, baseada na pluralidade, na dúvida e no saber partilhado.
É certo que Trump nunca gritou literalmente “abaixo a inteligência”. Mas as suas ações e discursos, amplificados por redes sociais e canais televisivos alinhados com a extrema-direita, tiveram efeito análogo: desvalorização do conhecimento, da mediação informada e da crítica fundamentada. Este fenómeno não é exclusivo dos Estados Unidos da América. Em várias democracias, a hostilidade ao pensamento crítico anda de mãos dadas com o populismo agressivo, com as campanhas de desinformação e com as tentativas de controlo da comunicação social e do ensino superior.

Num tempo em que o discurso político se torna cada vez mais emocional, polarizado e hostil ao contraditório, reafirmar o valor da inteligência, da sabedoria e do conhecimento torna-se um imperativo democrático. A universidade, a escola, os media e os espaços de reflexão crítica são, hoje, trincheiras de resistência contra a barbárie da ignorância.
Recuperar o gesto simbólico de Unamuno não é, apenas, um tributo à História. É um apelo urgente à razão. Defender a inteligência – ontem como hoje – é defender os alicerces da democracia.
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12/06/2025