“Adiamento” — ensaio fotográfico à volta de Álvaro de Campos
sinalAberto inicia hoje uma série de ensaios fotográficos sobre poesia. Este diálogo entre texto e imagem, que começa com Álvaro de Campos, insere-se na ideia experimentalista e alternativa que o Jornal vem assumindo desde o início, designadamente nas suas rubricas “O jazz de Vladimir”, “O abandonante de cidades”, “O olho de Hórus” e “Uma letra pende”.
Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquitar o
[mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana
[da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as qualidades reais de inteligente, lido e
[prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes de amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã
[estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso
[nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…
14 abril de 1928
“Poesias de Álvaro de Campos”, Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). -266
Retirado de “Antologia Poética – Fernando Pessoa” em Clássicos Público. Lisboa: R.B.A Editores, 1994