Almudena Grandes (1960-2021)

A escritora madrilena Almudena Grandes. (elespanol.com)
“San Isidro Labrador, quita el agua y pon el sol.” Com esta frase se conhece o padroeiro dos agricultores do Mundo. Lembro-me de ter ouvido centenas de vezes este provérbio e, quando a água escasseava, àquele que se opunha, era dito ou cantado, também na minha infância:

Em meados de Maio, a cidade de Madrid apresenta a sua cara mais festiva e acolhedora. Os madrilenos festejam o santo padroeiro, Santo Isidro Labrador (a 15 de Maio). A festa é assinalada pela principal marca da cidade: a hospitalidade.

(oracoespoderosas.net)
Entre as celebrações tradicionais, a romaria ocorre na Pradera de Santo Isidro ou na feira taurina de Santo Isidro, destaca-se a gastronomia típica, particularmente a degustação de doces com a limonada da época. As pessoas convivem com um atractivo programa de música e de espectáculos que se espalham por Madrid. Neste 15 de Maio de 2023, foi celebrado o Ano Santo de Santo Isidro (pelo IV Centenário da sua canonização). E são muitos os milagres atribuídos a Santo Isidro, entre eles e segundo se mencionava na sua época, o dom de encontrar água com facilidade.
É tradição, no início das festas, que se faça um pregão (discurso com a missão de anunciar), para o qual são convidados artistas, escritores e personalidades de Madrid que se identificam com a cidade.

No ano passado, esta tarefa foi entregue a Antonio Resines (actor espanhol galardoado com o Prémio Goya, outorgado anualmente pela Academia das Artes e Ciências Cinematográficas da Espanha) no arranque das Festas de Santo Isidro, na varanda da Plaza de la Villa, local de onde se dirigiu aos madrilenos para os informar do início da celebração.
No ano de 2018, foi a escritora Almudena Grandes quem iniciou as festas com um belo e emotivo discurso do qual apenas vou citar alguns momentos, convidando o leitor interessado a ler o texto completo1. Note-se que em 48 anos (até essa data) apenas dez mulheres discursaram nesta celebração. Almudena Grandes seria, mais tarde (neste caso, postumamente), declarada filha predilecta ou ilustre da sua cidade. Parece difícil imaginar a capital de Espanha a celebrar um labrador, um pobre agricultor, naquela que haveria de ser a capital de um dos maiores impérios europeus!

Autora do romance “As Idades de Lulu”, tido como um clássico moderno da literatura erótica, Almudena Grandes empenhou-se nas últimas décadas a escavar a História do franquismo, desenterrando vários episódios desconhecidos, que parecem ter ficado escondidos sob os escombros da guerra, sendo a escritora “que deu voz aos derrotados do século XX espanhol”. Papel que se vê hoje reforçado com a aplicação da Lei da Memória Democrática, que entrou em vigor no dia 21 de Outubro de 2022, ampliando as opções para a aquisição da nacionalidade espanhola.
Esta lembrança de Almudena Grandes actualiza-se quando a RTVE (televisão espanhola) começa a transmitir, diariamente, a adaptação televisiva do seu romance “Os Pacientes do Dr. Garcia”.

O argumento segue os percalços do Dr. Guillermo García, que continua a residir em Madrid, depois da queda da cidade tomada pelos franquistas. O triunfo de Franco na Guerra Civil, obriga-o a mudar de identidade, por uma nova e falsa, fornecida pelo seu amigo Manuel Arroyo, um diplomata republicano cuja vida García salvou, em 1937.
Fazendo parte dos vencidos, o Dr. Garcia deverá abdicar da medicina e, apoiado e protegido por uma nova identidade, continuará a trabalhar clandestinamente como médico, apoiando alguns camaradas que dele necessitem. Contudo, no dia-a-dia, apresenta-se como um pacato escriturário numa agência de transportes.
Anos depois (em 1946), García reencontra Manuel Arroyo. Também este deverá adoptar uma falsa identidade recorrendo a um voluntário falangista, supostamente morto, que prestou serviços militares na União Soviética, apoiando a invasão alemã. Quando Arroyo regressa do exílio deverá cumprir uma missão secreta na cidade. O seu objectivo é infiltrar-se numa organização de fuga para criminosos de guerra nazis liderada por uma mulher germano-espanhola, nazista e falangista, chamada Clara Stauffer.
O argumento ainda faz referências às fugas dos nazis para a América Latina, à ajuda de Juan Perón neste processo e ao esforço inútil para denunciar este plano de branqueamento de identidades perante os Estados Unidos da América e o resto do Mundo.

Wikimedia Commons, domínio público)
Manuel Arroyo, na década de setenta, viverá ainda a experiência do Golpe Militar na Argentina e no Chile. Duplamente exilados, os dois amigos reencontram-se na cidade de Madrid democrática, após a morte de Franco.
Inspirada na vida do médico canadiano Norman Bethune (1890-1939), considerado por muitos como o primeiro “médico sem fronteiras”, cientista que veio do Canadá para a Espanha para ajudar na Guerra Civil contra os rebeldes fascistas, ingressou no Partido Comunista, depois de visitar a União Soviética em 1935, para participar numa conferência médica. Foi uma decisão que marcou a sua vida. Já no Canadá, foi marcado como comunista e dedicou a sua vida a ajudar a revolução operária. Depois de Espanha, viajou para a China, na campanha do Exército Vermelho. Morreu nesse país, após um ferimento e infecção durante uma intervenção cirúrgica. Hoje, é considerado um herói nacional da China.
No dia 14 de Junho de 2022, a cidade homenageou Almudena Grandes no Teatro Español. Foi uma emocionante homenagem, com aplausos sentidos e longos na plateia. A este evento faltaram as entidades do município, o presidente do ayuntamento (ou câmara municipal) da cidade, José Luis Martínez-Almeida e também a vice-presidente de Madrid, Begoña Villacís, ambos por “problemas de agenda”. A esse propósito, alguém comentou: “Dentro de 50 años Almudena Grandes será recordada; Martínez-Almeida no”.

Para finalizar, deixo-vos um fragmento do poema “Confesiones”, de Luis García Montero, poeta dedicado à sua esposa, Almudena Grandes:

Nota:
1 – Pregão de Santo Isidro, em 2018, por Almudena Grandes (excertos):
“[…] Las hazañas del pueblo de Madrid son más nobles, más ejemplares, más heroicas que los escudos que coronan sus aristocráticas fachadas. Capital del dolor, capital de la gloria, esta es la ciudad que nunca se detiene, una superviviente capaz de renacer una y otra vez de sus propias cenizas. Aquí nunca hemos tenido mar, ni Olimpiadas, ni Exposiciones Universales. Pasamos en un suspiro de ser la capital mundial del antifascismo a convertirnos en la capital del único fascismo superviviente en Europa, una oscura ciudad de funcionarios que bebían café con leche. Eso seguían diciendo cuando Malasaña, que es mi barrio, hervía ya todas las noches. Ninguna apuesta es más arriesgada que darnos por muertos.
[…]Tenemos que aprender a amarla, y la mejor manera de lograrlo es ser felices, así que ya sabéis lo que tenéis que hacer. Sed muy felices en estas fiestas de San Isidro, pero no rompáis nada, por favor. Recordad que Madrid no es sólo nuestra. Es también de los madrileños, de las madrileñas del futuro. Cuidémosla porque algún día de mayo, alguien que no ha nacido aún saldrá a este balcón para sentir la misma emoción que siento yo ahora mismo, al pronunciar la última palabra de este pregón.”
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18/05/2023