Alunos de Teatro da ESAP apresentam “Decameron”
“[…] tínhamos já atingido o ano … de 1348, quando, na mui importante cidade de Florença… sobreveio a mortífera pestilência… nenhuma prevenção valeu, baldadas todas as providências dos homens… Nem conselho de médico, nem virtude de mezinha alguma parecia trazer a cura ou proveito para o tratamento.” (Trecho do início do livro “Decameron”, de Giovanni Boccaccio)
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Desta vez, comodamente sentado na plateia, assisto à representação da prova final dos alunos do Curso Superior de Teatro (CST) da Escola Superior Artística do Porto (ESAP), que os finalistas apresentaram, no âmbito do Ciclo das Escolas Artísticas no Teatro Nacional São João (TNSJ). Ciclo que ajudámos a criar e a manter como possibilidade real e profissionalizante de os estudantes das diferentes escolas de teatro da cidade do Porto confrontarem as suas experiências com o público da cidade.
Durante mais de uma década, fui o responsável destas representações e cruzaram-se no nosso caminho autores como Anton Tchekhov, Pierre Marivaux, Molière, Karl Georg Büchner, Ésquilo e Eurípides, entre outros.
Devo relembrar que este ciclo, felizmente apadrinhado pelo então director artístico do TNSJ, Nuno Carinhas, e pelo antigo administrador e produtor, Salvador Santos, se mantém vigente, sendo apoiado pelos responsáveis artísticos da nossa primeira casa de espectáculos da cidade.
A convite do dramaturgo Jorge Palinhos, director do CST da ESAP, o encenador e responsável pela estrutura artística Astro Fingido1, Fernando Moreira, adaptou uma espécie de súmula para a cena “Dez Contos” / “Dieci Racconti”, retirada da obra de Boccaccio, “Decameron”, de Giovanni Boccaccio.
Giovani Boccaccio (1313?-1375) é o herdeiro de uma tradição literária italiana, na qual se destacam autores como Apuleio (autor de “O Asno de Ouro”), como Petrónio (autor do “Satyricon”) e como os comediógrafos Plauto e Terêncio.
As representações decorreram no Teatro Carlos Alberto, nos dias 27 e 28 de Julho deste ano.
Recorrendo à informação da página electrónica da Escola Superior Artística do Porto, lemos: “Escrito entre 1348 e 1353, o Decameron é considerada a obra-prima do escritor italiano Giovanni Boccaccio. A história começa quando um grupo de pessoas foge da Peste Negra que alastra em Florença e se refugia numa casa no campo, onde contam histórias como estratégia de sobrevivência à doença e à morte. Dez Contos / Dieci Racconti apropria-se da estrutura da obra de Boccaccio e aborda-a numa perspe[c]tiva contemporânea.
Cinco raparigas e dois rapazes abrigam-se numa casa isolada junto ao mar para se protegerem da pandemia da covid-19. Contam histórias, sobrevivem com histórias. ‘Que fazemos aqui? Que esperamos? Que sonhamos?’”
“As Escolas Artísticas no TNSJ é o programa do Teatro Nacional que cria pontes entre a formação académica e a proje[c]ção de um futuro profissional”, adianta o respectivo texto de apresentação.
O “Decameron” é uma colectânea de contos escritos sob o estigma da peste, estruturada como uma “história” que contém 100 contos relatados por um grupo de sete raparigas e três rapazes que se abrigam num castelo próximo de Florença para fugir da peste negra, que fustigava a cidade. Os relatos, na sua maioria, marcadamente eróticos, vão do trágico ao cómico, como uma lição de moralidades e de escárnio, não faltando também relatos de amor e de sacrifício.
O espectáculo dos alunos da ESAP caracterizou-se pela criação de um cálido e luminoso ambiente lúdico, dominado principalmente pelas atrizes e pelos actores, que, num jogo teatral, assumem diferentes personagens que passam de uma história para outra como nos contos de “As Mil e Uma Noites”.
O espectáculo rende homenagem, logo no início, ao cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, que, no ano de 1971, realizou uma bela versão cinematográfica a partir dos relatos de Boccaccio.
O projecto teatral aproxima-se da proposta do cineasta italiano, como também lemos no livro “Decameron de Pasolini, a história de um sonho” (“Il Decameron di Pasolini, storia di un sogno”), da autoria de Carlo Vecce. O filme é uma obra coral, com personagens realistas e simples, que entrelaça diferentes classes sociais e estilos de vida. Aqui, a transição da Idade Média para a Idade Moderna torna-se imagem da saída da autenticidade do mundo popular para o mundo capitalista e consumista.
Com encenação de Fernando Moreira, assistência de encenação de Carla Gomes, assistência de cenografia e figurinos de Miguel Ângelo Ferraz, assistência de som de Inês Neves, este espectáculo tem, ainda, desenho e operação de luz da responsabilidade de Hélder Sousa, assim como é interpretado por Annie Pereira, Carla Gomes, Carolina Villasboas, Duarte Mota, Guilherme Amorim, Iara Rocha e Sara Mota.
Como observação final, lembro que, no ano lectivo de 2023/2024, se inicia o 41.º ano da criação do CST da ESAP, cujo primeiro director foi o professor, dramaturgo e investigador Manuel Deniz-Jacinto, um dos maiores teatrólogos portugueses. São muitos os nossos ex-alunos (alumni) que passaram pela nossa escola e que aqui se formaram. A todos eles um cumprimento muito especial por ter encontrado no Teatro uma via importante para as suas vidas e para as suas profissões. De facto, eles têm participado em espectáculos de diversas companhias: Teatro de Marionetas do Porto, Seiva Trupe, Teatro Experimental do Porto, Teatro Nacional São João, Teatro Art´Imagem, Teatro de Formas Animadas (ou Teatro de Animação), entre outras. Também criaram os seus próprios projectos teatrais e são formadores no ensino nacional. Porque merecem, aqui fica o nome de alguns deles, sobre os quais vamos dando notícias e dos quais nos sentimos orgulhosos: Ana Baptista, Ana Paula Santos, Andreia Gomes, Andreia Silveira, Arnaldo Roseira, Benedicte Garrido, Beatriz Medeiros, Brígida Sousa, Daniel Pinheiro, Diana Couto, Fábio Santos, Fernando Adão Soares, Fernando Leiras, Inês Cardoso, Jaime Soares, Juliana Rodrigues, Kátia Guedes, Leandro Baptista, Luís Trigo, Manuel Geraz, Paulo Alexandre Jorge, Pedro Brandão, Pedro Dias, Ricardo Ribeiro, Rita Burmester, Ruben Correia, Sérgio Ferreira, Sandra Ribeiro, Susana Paixão, Vânia Mendes, Vítor Gomes…
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Notas:
1 – “Astro Fingido” é uma associação cultural sem fins lucrativos. Desenvolve actividade artística que vai da criação de espectáculos de teatro à formação. As suas produções partem da realidade circundante para a construção de dramaturgias que traduzam a actualidade. A Astro Fingido promove também oficinas de teatro e artes plásticas, bem como de filosofia para crianças, aliando a arte e o pensamento crítico na construção de uma cidadania plena.
2 – Carlo Vecce (1959) é professor de Literatura Italiana na Universidade de Nápoles “L’Orientale”, leccionou na Universidade de Pavia (Escola de Paleografia e Filologia Musical, Cremona), na Universidade D´Annunzio de Chieti-Pescara e na Universidade de Macerata. Professor visitante na Paris-3 (Sorbonne Nouvelle), em 2001, e na University of California Los Angeles (UCLA), em 2009.
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14/08/2023