Antonio Skármeta (1940-2024) 

 Antonio Skármeta (1940-2024) 

Antonio Skármeta fugiu, em 1973, do Chile para Berlim Ocidental. (deutschland.de)

Soñe que la nieve ardía.1 

.

Antonio Skármeta, em 2015. (de.wikipedia.org)

Nas últimas páginas do semanário Sol, o jornalista Diogo Vaz Pinto dedica um espaço considerável a lembrar aqueles que partiram. As suas necrologias, sempre muito bem documentadas e de bela prosa, são motivo de uma boa leitura. Na edição de 19 de Outubro de 2024, o artigo é dedicado a um escritor chileno, com o títuloAntónio Skármeta. O carteiro de Uma Geração Massacrada. 

Oportuno e simbólico título para um autor que, como no ofício do carteiro, tem como função trazer boas e más notícias. As más notícias estiveram relacionadas com o Golpe de Estado no Chile, em Setembro de 1973, e com o consequente exílio do escritor, o qual, na sua peregrinação pela Europa, acabou por encontrar – como todos nós, os chilenos exilados – um lugar de repouso, em segurança para a criação e para a continuação do seu labor. Para Skármeta, foi Berlim, na então República Federal da Alemanha (RFA – assim designada até à unificação da Alemanha, em 1990). Para mim, foi primeiro Frankfurt, também na RFA, e mais tarde Portugal. 

Baseado no livro “Il Postino”, de Antonio Skármeta, “O carteiro de Pablo Neruda” retrata a amizade entre o poeta chileno Pablo Neruda e um humilde jovem carteiro. (culturacores.azores.gov.pt)

Antonio Skármeta foi sempre um apaixonado pela escrita e pelo cinema, esse duplo caminho de criação que o levou a escrever romances, crónicas, peças de teatro e argumentos para o cinema. 

O mais famoso e mais conhecido dos seus argumentos cinematográficos é “O Carteiro de Pablo Neruda”, inicialmente intitulado “Ardente Paciência”. O leitor português talvez não se lembre de que uma primeira versão foi rodada em Portugal, no ano de 1983, com o qual foi distinguido em vários festivais de cinema. A partir dessa versão cinematográfica viria a escrever o romance com o mesmo nome. Em 1994, Michael Radford estreou, no Festival de Veneza, uma nova adaptação cinematográfica da obra, desta feita intitulada “Il postino” (“O carteiro de Pablo Neruda”, na sua versão portuguesa). 

“O carteiro de Neruda”, de Antonio Skármeta, com encenação de Joaquim Benite. (ctalmada.pt)

Também me lembro das adaptações teatrais em Almada e no Porto.

Em 2012, na cidade de Almada, houve reposição, nos meses de Janeiro e de Fevereiro, da encenação de Joaquim Benite. Conforme a informação disponibilizada pela Companhia de Teatro de Almada, quando, “em 1997, O carteiro de Neruda – uma adaptação dramatúrgica de Carlos Porto, com encenação de Joaquim Benite – estreou no Festival de Almada, o acolhimento entusiástico anteviu uma auspiciosa e longa carreira para a peça, já levada à cena mais de cem vezes em Portugal e em Espanha”.

“O carteiro de Pablo Neruda – Ardiente Paciencia” esteve em cena, no Teatro do Campo Alegre, pela Seiva Trupe, de 7 a 30 de Novembro de 2007. (seivatrupe.pt)

Em 2007, “O carteiro de Pablo Neruda – Ardiente Paciencia” é uma nova produção da Seiva Trupe – Teatro Vivo (companhia, então, com 34 anos de existência, atendendo a que foi fundada em 11 de Setembro de 1973), com direcção e encenação de Júlio Cardoso, cenografia de José Carlos Barros e interpretação de António Reis, de Miguel Rosas e de Sandra Ribeiro, bem como de Sara Barbosa, de Jorge Fonseca e de Marco Ferraz (outros componentes do elenco).

Seguindo a própria sinopse, recordamos que na “ilha onde Mário, o Carteiro, vive, o principal ofício é a pesca”. E que “Mário não quer ser pescador e arranja trabalho como carteiro”. Mas, naquele lugar, não se lê nem se escreve e Mário tem um único cliente, Pablo Neruda, poeta chileno que vive na ilha, exilado do seu país”. Nessas circunstâncias, a “amizade de Pablo Neruda e a sua poesia transformam a vida de Mário… para sempre…”

Por sua vez, no blogue “Manuel Apátrida”, num “post” de 21 de Novembro de 2007, lemos: “[…] Logo no inicio da peça, Neruda diz a Mário (Miguel Rosas, o actor, excelente!) que a explicação da poesia significa a morte do poema. A citação não é fiel, mas a ideia que lhe está subjacente é a mesma. Poesia não se explica, sente-se Mario é jovem, vive de promessas inconcretizáveis pela política e refugia-se nas metáforas de Neruda, porque as palavras conferem um novo sentido à sua vida, dão-lhe a dignidade que a sua condição de filho de pescador pobre não lhe deu ainda e não dará jamais.”

Antonio Skármeta (instagram.com/cinematropical)

Julgo que foi em 2005 que servi de mediador para trazer, até ao Porto, o encenador e mestre chileno Fernando González Mardones2. O convite seria para que o encenador chileno realizasse uma nova versão, com a Companhia Seiva Trupe (ST), da sua bem-sucedida colocação em cena, no Chile, do texto de António Skármeta. Por vários motivos, entre eles de saúde, a vinda do professor e homem de teatro chileno não foi possível. Quem assumiria, mais tarde, a encenação seria Júlio Cardoso, director artístico da ST. E a interpretação foi de António Reis, na figura de Neruda. 

Em Agosto de 2012, eu encontrava-me no Chile, visitando os meus pais e irmãos. Numa ida ao Teatro Municipal de Santiago, a nossa principal e única casa de ópera, assisti (com o meu amigo e companheiro de infância, o médico Fanor Villanueva) à representação de “Tannhäuser”, ópera romântica escrita por Richard Wagner, estreada em Dresden, a 19 de Outubro de 1845. A ópera wagneriana voltava, assim, ao Teatro Municipal, quase três décadas depois de aí ter sido representada pela última vez. 

Antonio Skármeta (Créditos fotográficos: Facebook/Antonio Skármeta
/ Pipoca Moderna – terra.com.br)

À saída deparamo-nos com a presença, entre o público, de Antonio Skármeta. Nesse encontro casual, dirigi-me a ele, para lhe dar notícias do espectáculo realizado no Porto com o seu texto. Skármeta foi sempre uma pessoa muito sorridente, simpática e irradiava bonomia. Julgo que me chegou a dar o seu cartão de visita. Eu prometi enviar-lhe material sobre a montagem   portuense. Foi essa a única oportunidade em que estive com ele e lamento que o encontro não se tenha repetido.

Durante dez temporadas, Antonio Skármeta realizou “El show de los libros”, um famoso e popular programa cultural da televisão chilena transmitido pela TVN-Chile, entre 1992 e 2002. Nos diferentes episódios, convidava um autor com o qual mantinha um virtuoso diálogo sobre literatura, abordando assuntos relacionados com a criação literária, os estilos, os géneros, etc. 

Entretanto, refiro aqui, antes de terminar, para algum curioso, o episódio dedicado ao “antipoeta” chileno Nicanor Parra, que é uma autêntica delícia, pelo acto performativo e pelas curiosas respostas que Parra deu aos seus interlocutores.  

O poeta chileno Nicanor Parra, que faleceu aos 103 anos.
(Créditos fotográficos: Divulgação – revistacult.uol.com.br)

Em jeito de epílogo, gostava de citar alguns fragmentos da crónica de Diogo Vaz Pinto, que inicia assim (o mesmo artigo foi publicado no jornal i, também em 19/10/2024): “Há homens que morrem com a boca cheia de noite e água, homens que sempre recordaram a vida como um só dia, que talvez nem lhes fosse destinado, um dia incessante, sem origens. Um dia a meio da semana, bom para se nascer ou morrer, para se sentir um homem transportado pelo acaso, indo ao encontro de uma mulher dessas que buscamos para nadar ou envelhecer. Antonio Skármeta acreditava no impacto de uma frase burilada pelas estações, como os frutos mais generosos […]”

Esteban Antonio Skármeta Branicic nasceu a 7 de Novembro de 1940,
em Antofagasta, no Chile. (portaldaliteratura.com)

E o texto de Diogo Vaz Pinto termina lembrando o massacre “anunciado” no título da peça jornalística: “[…] A queda do governo de Salvador Allende e o seu assassinato na Casa de la Moneda foi o grande trauma que ele e outros escritores se recusaram a ultrapassar.

Enquanto outros escritores sul-americanos forçados ao exílio se instalaram em Barcelona, ao abrigo de Carmen Balcells, antes de o Boom se tornar um vespeiro, Skármeta andou aos tombos e sem um destino certo, até Berlim e o cinema o terem poupado à condição de penúria a que se vira condenado. Mas o tema fundamental da sua escrita foi sempre esse esforço para restaurar a dignidade dos vencidos, tentando restituir as gerações que se viram espoliadas dos seus sonhos e precipitadas num período de perseguições e massacres àquele momento simbólico em que se vislumbrou o que seria um movimento de verdadeira união e solidariedade social.”

.

Notas:

1 – Este é um poema tradicional de Navarra que deu título ao romance “Soñé que la nieve ardía”, de Antonio Skármeta, publicado em 1975.

2 – Como nos recorda a Wikipédia, Aníbal Fernando González Mardones (1939-2023) foi actor, encenador e professor de teatro chileno. Recebeu, em 2005, o 7.º Prémio Nacional de Artes de la Representación y Audiovisuales de Chile. Numerosos actores de reconhecida trajectória formaram-se na sua academia, fundada em 1981 e considerada uma das mais  relevantes do Chile.  

Aníbal Fernando González Mardones foi o promotor da escola de
Teatro Itinerante e ex-diretor do Teatro Nacional do Chile.
(latercera.com)

3 – Nicanor Parra, viveu 103 anos, irmão mais velho de Violeta Parra. É o criador da antipoesia (tipo de poesia de ruptura) e dos antipoemas. A sua obra revolucionou a poesia chilena e teve uma grande influência nos novos e jovens autores.

4 – Diogo Vaz Pinto nasceu no ano de 1985, em Lisboa. Estudou Direito. É poeta e jornalista e publicou três livros: “Nervo”, “Bastardo” e “Anonimato”. Escreve, na área da Cultura, para o semanário Sol e para o diário i. É co-fundador das Edições Língua Morta, com mais de 60 livros publicados.

.

31/10/2024

Siga-nos:
fb-share-icon

Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

Outros artigos

Share
Instagram