Apolo de Carvalho: “Subalternizar uma língua materna é subalternizar a própria existência desse povo”

Natural da Ilha de Santiago, em Cabo Verde, Apolo de Carvalho cresceu em Lisboa. É um intelectual atemporal, investigador, curador e poeta. (powerlist100.bantumen.com)
Apolo de Carvalho é um admirável jovem cabo-verdiano, radicado em Portugal, atualmente doutorando no Programa de Pós-Colonialismos e Cidadania Global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade de Coimbra, possui mestrados em Relações Internacionais pela Faculdade de Economia da mesma instituição e em “Politique et Développement en Afrique et dans les Pays des Sud” pela Sciences Po Bordeaux, em França.
Com um percurso académico centrado nos estudos das relações internacionais e da ciência política, Apolo dedica-se à investigação sobre pan-africanismo e às perspectivas pós e anticoloniais. Participa ativamente em fóruns académicos e em espaços artísticos na Europa, em África e no Brasil, refletindo sobre a decolonialidade político-cultural e a memória colonial. É membro da Afrolis – Associação Cultural e integrou o projeto de investigação AFRO-PORT, focado na afrodescendência em Portugal.
Apolo de Carvalho tem sido uma voz ativa na discussão sobre a memorização da História Colonial e das lutas de libertação africanas, reivindicando, entre outras causas, o reconhecimento do 25 de Abril como parte integrante da revolução africana.

Djam Neguin – sinalAberto (sA) – Como é que a sua experiência pessoal, como homem negro e cabo-verdiano vivendo em Lisboa, impactou o seu entendimento sobre identidade, resistência e pertencimento? Há alguma vivência específica que se reflete na sua produção académica ou artística?
Apolo Carvalho (AC) – Antes de Lisboa, vivi em Coimbra, em Bordéus e em Bruxelas. São quatro cidades marcadas por um histórico colonial que impactou profundamente muitas realidades. Coimbra, que sempre me disseram ser o centro do conhecimento, foi também o local de formação de grande parte da elite fascista e colonial portuguesa. Bordéus foi um dos portos mais movimentados no comércio de pessoas escravizadas na Europa, tendo lucrado imensamente com a transação de seres humanos. E Lisboa, nem o terramoto de 1755 conseguiu apagar as evidências do seu passado escravocrata-colonial, ainda profundamente gravado nas suas artérias. A situação devastadora de urgência humana em que milhares de pessoas da República Democrática do Congo vivem hoje tem as suas origens na ganância da Bélgica, que transformou um dos maiores territórios africanos na sua propriedade privada. Porém, devo dizer que a consciência em relação a essa história densa nunca foi automática, por serem territórios que sabem muito bem camuflar as provas do crime. Quando não estamos munidos dos instrumentos que nos permitem identificar e ler, de forma crítica, os espaços por onde circulamos, facilmente caímos na alienação. Tal como muitos africanos nascidos em Cabo Verde, que viajaram para a Europa para estudar, eu não possuía os instrumentos necessários para lidar com uma metrópole colonial.
“Coimbra, que sempre me disseram ser o centro do conhecimento, foi também o local de formação de grande parte da elite fascista e colonial portuguesa”
Contudo, foi exatamente nestes lugares que a minha consciência pan-africana, que estava de certa forma latente, despertou. Não necessariamente pela experiência direta do racismo estrutural e social, que qualquer pessoa negra na Europa passa. Nunca me vi aprisionado no falso dilema identitário do “homem cabo-verdiano”, sempre me soube e senti africano, mesmo quando não tinha todos os vocabulários para expressar essa identidade. O que me transformou foi ter encontrado um conjunto de conhecimentos sobre outra História de África, que eu desconhecia completamente, além de um conjunto de pessoas de outros países do continente e de lutas e resistências silenciosas, mas de grande impacto.
Esta experiência diaspórica permitiu-me, de certa forma, fazer aquele longo caminho de Sankofa1 rumo às fontes. Uma espécie de retorno ontológico e epistemológico que ampliou, sobremaneira, a forma como passei a ver o Mundo. Duas grandes referências nesse processo foram Cheikh Anta Diop e Aimé Césaire, cujas biografias e textos encontrei numa biblioteca em Bordéus, num pequeno livro cujo título não recordo. Nunca tinha ouvido falar daqueles nomes nem lido aquelas palavras.
Até hoje, essas duas referências, às quais fui juntando outras, inspiram a minha forma de ver, de pensar e de escrever sobre o Mundo. Por exemplo, sou formado em Ciência Política e Relações Internacionais e, durante todo o meu percurso académico, nunca ouvi uma palavra sobre o pan-africanismo. Hoje, esse conceito é fundamental na minha investigação dentro dessa área. Viver na diáspora permitiu-me, então, conhecer e mergulhar numa biblioteca pan-africana tão diversa e rica, que se tornou incontornável na minha caminhada, nos meus questionamentos e na minha afirmação.
Muito do que somos está aqui, porque eles estiveram lá. E há um imperativo de fazer esses retornos dialéticos entre África e a diáspora, para podermos remembrar essas partes amputadas que ainda carregam tantas memórias sobre nós, sobre o que somos, tanto individual quanto coletivamente.

sA – A relação entre Cabo Verde e Portugal é complexa, marcada tanto por laços históricos quanto por tensões. Quais são, na sua opinião, os maiores desafios dessa relação, hoje?
AC – É uma relação que continua a ser moldada pela lógica metrópole-colónia. No ano passado, Portugal celebrou os 50 anos do 25 de Abril e, em julho deste ano, Cabo Verde comemora os 50 anos da sua independência. Se é verdade que, em termos formais, somos um país independente, graças a uma longa luta que ceifou muitas vidas, grande parte da nossa elite política e intelectual continua a “performar” gestos de servidão. Esses laços históricos que mencionas são, na verdade, amarras, velhas e enferrujadas correntes que nos têm prendido numa estagnação tal que este cinquentenário da independência deveria servir para que os cabo-verdianos rompam com o status quo e enviem um sinal forte, tanto às elites de Lisboa como aos “brancos da terra”. Amílcar Cabral dizia que a luta pela libertação era fundamentalmente uma luta pela recuperação da nossa própria História. E, se assim é, temos ainda muito a fazer, pois a nossa História continua a ter como “prelúdio” aquele momento “quando o descobridor chegou à primeira ilha”2, como lembra o poema de Jorge Barbosa.

em África como inspiração para a luta contra o racismo na Europa. Da
geração de Cabral, à geração dos netos de Cabral”, em 16 de Junho de
2023, possibilitou uma conversa entre Ângela Benoliel Coutinho, Igor Lima
e Apolo de Carvalho, moderada por Diana Palma Duarte.
(50anos25abril.pt)
Um dos maiores desafios de Cabo Verde, e temos muitos, continua a ser este imperativo de libertação de uma história colonial, para podermos assumir e ocupar plenamente, sem complexos, a nossa realidade e o nosso futuro, como país africano no Mundo. E num contexto geopolítico cada vez mais complexo, onde as sombras do imperialismo e do fascismo se adensam, este imperativo é, também, uma urgência. Relembro que uma certa elite política cabo-verdiana “flirtou” com a extrema-direita portuguesa, e este facto não deve ser esquecido. Além disso, há cabo-verdianos e portugueses que, presos num anacronismo histórico, continuam convictos de que deveríamos ser anexados a Portugal.
Todavia, é preciso dizer que o Cabo Verde profundo sempre foi um território de revoltas, de lutas e insurgências, e sempre se soube afirmar, nunca questionando tal facto. Mas quem tem, historicamente, falado e escrito em nosso nome transferiu a sua alienação para toda uma nação, o que explica, em grande parte, a natureza colonial nas relações com Portugal.

independente, uma instituição estrangeira, como é
o caso da escola portuguesa, proíba os alunos de
falarem a sua língua materna, mesmo nos
intervalos”, expressa Apolo de Carvalho. (afrolis.pt)
Não faz sentido que, ainda hoje, mais de 80% do que se consome no país venha da Europa e, principalmente, de países como Portugal, quando temos um mercado africano do qual fazemos parte e que está ali tão perto. Não faz sentido que as nossas políticas sejam sempre “inspiradas” naquilo que Portugal faz, quando a independência foi exatamente para pensarmos pelas nossas próprias cabeças e de acordo com a nossa realidade. Não faz sentido que, num país soberano, livre e independente, uma instituição estrangeira, como é o caso da escola portuguesa, proíba os alunos de falarem a sua língua materna, mesmo nos intervalos.
Podemos dar muitos exemplos da colonialidade das relações entre Cabo Verde e Portugal, como a questão da toponímia, a estátua de D. Dinis, as comemorações do 10 de Junho ou da patológica “morabeza” – esta “arte de receber o invasor em todas as formas de chegar e de querer ficar”, uma ode ao conformismo e ao desarmamento, inventada em nós para Portugal, e que os doutos cabo-verdianos vendem como o maior produto nacional! Parafraseando o poeta Oliveira Barros. Mas penso que é talvez na língua, no lugar subalterno reservado à língua cabo-verdiana, que se mantém a maior das colonialidades. Uma língua não é mero instrumento de comunicação; é todo um sistema ontológico e cosmológico de um povo. Subalternizar uma língua materna é subalternizar a própria existência desse povo e não reconhecer a importância da sua presença no concerto da comunidade internacional. Mais do que isso, atribuir um lugar menor à língua cabo-verdiana dentro do próprio país é erigir uma tribuna onde apenas os “latinizados” podem falar.
“Uma língua não é mero instrumento de comunicação; é todo um sistema ontológico e cosmológico de um povo”
Outro grande desafio nas relações entre Cabo Verde e Portugal tem a ver com a diáspora. A forma como o Estado cabo-verdiano agiu em relação ao assassinato de Odair Moniz, com pronunciamentos breves e fracos, revela a forma como o país olha para uma certa parte da diáspora que não faz parte das elites. Não fosse o movimento das ruas, encabeçado por organizações como a Vida Justa, que levou muitos cabo-verdianos e outras pessoas a inundarem as ruas de Lisboa exigindo justiça, este caso teria ficado em completo silêncio. Um outro aspeto urgente desta relação com Portugal, é a situação precária da nossa diáspora. Embora historicamente galvanizada como um dos pilares da política externa cabo-verdiana, a diáspora tem sido tratada pelo Estado de forma muito aquém do necessário, numa lógica utilitarista, para não dizer capitalista, que reduz as pessoas às remessas que enviam.

No atual contexto geopolítico de banalização do fascismo e do aumento da xenofobia e do racismo, acredito que, mais do que nunca, é fundamental construir um “Djunta Mo”3 transnacional, nova articulação estratégica entre comunidades e associações de Cabo Verde e da diáspora, bem como dentro da própria diáspora. Só assim poderemos fortalecer redes de apoio e de proteção para muita gente que tem enfrentando dificuldades incalculáveis neste país onde vieram, unicamente, buscar uma vida mais digna e mais justa.
O diagnóstico desta relação doentia que Cabo Verde mantém com Portugal e com a Europa, em geral, é longo e tem sido feito desde há muito tempo e por muita gente. Mas não basta apenas conhecer as causas e os efeitos, é preciso agir de forma radicalmente criativa, porque o colonialismo tem muitas formas astutas de se reconfigurar. Já é tempo de abandonarmos esta dependência colonial.
sA – Em Portugal, o legado colonial ainda é um tema polarizador. Que mudanças você considera urgentes no debate público e nas políticas de memória histórica?
AC – A palavra “polarização” tem sido muito utilizada para abordar esta questão, e é algo que me incomoda. Além de sugerir que ambas as vozes têm posições igualmente válidas ou problemáticas – aquele “both sides” popularizado por Trump –, é uma expressão que pode contribuir para a simplificação e até para o apagamento das assimetrias de poder. A ideia de que um tema como o colonialismo é polarizador pode ocultar as dinâmicas de poder que estruturam o debate em torno do colonialismo ou, mais concretamente, do racismo. Não se pode ignorar, nem colocar sob o mesmo conceito, vozes subalternizadas que tentam afirmar-se e um sistema dominante que busca silenciar ou deslegitimar essas mesmas vozes. Em Portugal, isso acontece de várias formas, com o beneplácito dos grandes meios de comunicação, mas também das elites políticas, que tentam colocar, por exemplo, os movimentos antirracistas e a extrema-direita no mesmo patamar, ao mesmo tempo em que se colocam numa zona de moderação liberal. Além de despolitizar os debates e de simplificar as lutas, isso é perigoso.

Dito isso, curiosamente, o uso deste termo é uma evidência interessante do estado de negação em que Portugal se encontra quando é confrontado com pessoas e com organizações que lhe pedem contas sobre o seu passado colonial. Em 2023, juntamente com um conjunto de companheiras, participei na redação da Declaração do Porto: Reparar o Irreparável, um documento que, além de diagnosticar este estado de negação, compila um conjunto de medidas concretas para provocar mudanças. São medidas que, desde há muito tempo, estiveram em pauta por vários coletivos negros e africanos aqui em Portugal, mas que ainda continuam apenas no papel. No entanto, quer sejam governos de esquerda ou de direita, a questão colonial continua sempre aquém do esperado. Há todo um movimento na Europa em torno de questões de reparação, ou mais específicas, como a restituição, que em Portugal não são levadas a sério. Este continua a ser um país onde filhos de imigrantes africanos, nascidos cá, não são reconhecidos como nacionais e são constantemente renegados no seu sentido de pertença.
“Não se pode ignorar, nem colocar sob o mesmo conceito, vozes subalternizadas que tentam afirmar-se e um sistema dominante que busca silenciar ou deslegitimar essas mesmas vozes”
No debate público, as vozes negras e contestatórias trouxeram muitas mudanças ao se imporem. Isso é resultado de toda uma luta que vem de longe e que se entrelaça com as lutas transnacionais. Mas, em termos de políticas públicas e de mudanças concretas, é preciso ainda cumprir o “D” fundamental do 25 de Abril: o “D” de descolonizar.
Na verdade, se por “revolução” entendermos a ruptura radical com o mundo velho e a construção de algo novo e diferente, pergunto-me em que medida o 25 de Abril foi uma revolução, já que manteve intacto todo o imaginário colonial – desde o hino à bandeira, às datas comemorativas – além de um racismo brutal que tem ceifado, de forma direta e indireta, a vida das pessoas negras.
sA – A “lusofonia” é um conceito que constantemente se desmonta. O que, na sua visão, seria uma abordagem mais justa e descolonial para repensar as relações entre Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa?
AC – Tenho sérias dúvidas sobre a frequência da tentativa de desmontar este conceito. O que vejo são várias tentativas alienantes de resgatar, de apropriar e de reificar o termo. Vejo vários usos, conscientes ou não, do termo, o que acaba por naturalizá-lo. A propósito das falsas apropriações, Steve Biko já dizia que “quem cria um conceito torna quem o usa num perpétuo aluno”.
A “lusofonia” é um termo Cavalo de Troia, um resquício do lusotropicalismo, que não nos serve e que deveria ter sido, há muito tempo, jogado nas latas de lixo da História. Não existe comunidade nem identidade lusófona. Existe, sim, um projeto neocolonial que procura, por meio da língua, que é sempre um instrumento de poder, impor-se. Existe, também, uma profunda assimetria, resultante de um processo histórico complexo em que a subjugação e a humilhação, em suma, a violência, foram usadas como linguagem por parte do país colonizador.

A nossa relação com Portugal não deve ser baseada nesses discursos mitológicos de fraternidade, de laços partilhados ou de uma História comum. Não somos irmãos, o colonialismo não foi um “contacto” e, entre um colonizador e um colonizado, não existem coisas em comum, mas sim discrepâncias gritantes. Portanto, falar de uma “História comum”, como gostam de propalar nos seus discursos, aos quais até os nossos chefes de estado participam, é disseminar, politicamente, uma mentira. Portugal é um país que mente, e se mente a si mesmo, sendo a lusofonia parte dessa mentira. Nós, africanos e afrodescendentes, deveríamos recusar participar dessa mentira e denunciá-la sempre.
Precisamos também desmontar esta falsa ideia de que partilhamos “valores comuns” como se houvesse valores especiais, “genéticos” exclusivos da imaginada “comunidade lusófona”. Não há nenhum valor específico que partilhemos com Portugal e que não partilhemos também com países como o Benim ou a África do Sul, por exemplo. Com isso, quero dizer que as relações com Portugal devem ser analisadas dentro das relações que temos com qualquer outro país do Mundo. E, se há algo que deveria ser específico, é a exigência das reparações pelas fomes coloniais, pelos assassinatos, pelo trabalho forçado, etc.
O interesse de Portugal em fazer a propaganda deste conceito é de ordem geopolítica, algo que se reflete em instituições como a CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa]. Deveríamos estabelecer outras bases para as nossas relações intra-africanas que não passem nem sejam mediadas por Lisboa. A base das nossas relações no Mundo, enquanto países africanos, deveria ser o pan-africanismo revolucionário, que é incompatível com toda e qualquer forma de pertencimento como a lusofonia, a francofonia ou a Commonwealth. Quanto aos países africanos colonizados por Portugal, a nossa História diversa e comum é anterior à formação dos nossos Estados contemporâneos e instituições como a CPLP não são o nosso “lugar natural” nem de futuro. Que a língua portuguesa, esta língua que nos foi imposta, seja apropriada a partir de dentro, ou seja, de África, enquanto língua estrangeira ao serviço de África, sem prestar vassalagem.

sA – Em “A Petrificação dos Cravos”, a performance é usada como uma ferramenta política. Na sua visão, a arte tem poder transformador maior que o discurso acadêmico?
AC – A Petrificação dos Cravos4 nasce de um desafio da associação Terceira Pessoa para repensar o espaço público português a partir da palavra “Pedra” e surge no contexto dos 50 anos do 25 de Abril. Embora seja uma obra poética e performática, envolveu também um processo investigativo que dialoga com várias perspectivas do pensamento radical negro. Trata-se, assim, junto com a obra “Kuinbra – O antro do silêncio” [sic], de uma criação pluri e transdisciplinar. Penso que, tanto o discurso artístico como o académico (e outros), são importantes e necessários. As categorizações dicotómicas e hierarquizantes não nos servem e, muitas vezes, fazem-nos perder de vista questões fundamentais.
“É importante lembrar que nem toda a arte liberta, assim como nem todo o conhecimento emancipa”
A produção e a disseminação de conhecimento assumem várias formas que podem conectar-se para alcançar um impacto mais amplo. Os povos precisam também de existir no imaginário, esse lugar onde concebem as suas mais potentes e belas criações. É nessa dimensão que a arte desempenha um papel essencial e transformador. Quando o discurso académico e o artístico se encontram e se entrelaçam, esse potencial transformador amplifica-se, quebrando fronteiras e dualismos entre emoção e razão, e mostrando que ambas são faces da mesma moeda. Refiro-me, obviamente, a uma arte e a um conhecimento críticos, comprometidos com a transformação da realidade. É importante lembrar que nem toda a arte liberta, assim como nem todo o conhecimento emancipa.
Face a contextos de luta, uma arte engajada precisa, necessariamente, de mudar de significado e de dialogar de forma imersiva com a realidade. Refletindo sobre o papel da cultura nas lutas pela libertação, Amílcar Cabral afirmava que é no chão da cultura que se situa o germe da contestação. É no espaço da cultura e, mais concretamente, das artes, que as primeiras formas de recusa à dominação são produzidas. E é também a arte que fertiliza o imaginário para a construção de futuros comuns. A arte engajada é, assim, um dos pilares centrais de qualquer luta.

sA – Por que se define como afro–surrealista?
AC – O afro-surrealismo é um movimento, uma corrente artística e literária que nasceu nos Estados Unidos, com figuras como Amiri Baraka, uma das maiores referências do pensamento poético radical negro. Este movimento observa a realidade e o presente como o plano central de toda a nossa existência e luta. Os afro-surrealistas veem o tempo como um movimento perpétuo em espiral, onde o passado, o futuro e o presente convergem num único momento tangível: o agora. Não há tempo a perder com especulações sobre o amanhã, pois o amanhã já está a acontecer. O passado, as memórias, as tradições, o fantástico e as distorções temporais assumem uma importância central, abrindo um vasto campo de possibilidades criativas. Não me defino como afro-surrealista, mas agrada-me a forma como sintetizam o futuro como sendo o agora. Ao ultrapassarem a questão da mera especulação, acabam por criar um realismo futurista que nos diz que o futuro é antigo e ancestral.
Pensadores afro-surrealistas como Baraka e Aimé Césaire oferecem um caleidoscópio poderoso para observar o mundo visível e invisível, convocando formas de existência frequentemente não autorizadas. Criam fissuras temporais que permitem emergir coisas que, à partida, seriam impossíveis de existir neste “porão do mundo” onde ainda estamos. Mesmo dentro da catástrofe, oferecem alternativas para concretizar projetos de felicidade — e isso é catártico.
sA – Através do projeto Afro-Port, estuda questões de afrodescendência. Que papel a educação formal e informal deve desempenhar na desconstrução do racismo estrutural em Portugal?
AC – O projeto Afro-Port, coordenado pela professora investigadora Iolanda Évora, terminou em 2022 e teve como objetivo central estudar as questões da afrodescendência em Portugal, na Área Metropolitana de Lisboa, analisando como as identidades negras e africanas são construídas, representadas e vividas num contexto marcado pelo legado colonial e pelo racismo estrutural, mas também os processos de afirmação e recusa. Foi um projeto que contribuiu, de certa forma, para dar visibilidade a muitas questões relacionadas com a Década Internacional dos Afrodescendentes, que, se não fossem os movimentos sociais, teriam passado em completo silêncio em Portugal. A Década Internacional do Afrodescendente iniciou-se em 2015 e terminou em 2024, sem que tenha havido qualquer medida ou envolvimento sério das instituições estatais com a questão, apesar das recomendações e dos compromissos internacionais assumidos pelo Estado português.
A educação é uma das grandes arenas de luta e o projeto Afro-Port, de certa forma, confirmou este facto. A descolonização do currículo e o reconhecimento e a introdução de outras línguas, como o Cabo-Verdiano, são medidas fundamentais, não apenas para a desconstrução do racismo, mas também para a valorização das contribuições históricas, filosóficas, científicas e culturais frequentemente silenciadas. Além disso, são medidas que reconhecem que há outras identidades portuguesas neste país. No entanto, o ambiente escolar continua a veicular um discurso colonial que glorifica um passado extremamente problemático e prenhe de barbárie, além de ter pouca representatividade, o que não contribui para que a experiência escolar seja, de facto, libertadora. Por outro lado, a perceção é que a experiência escolar para um jovem negro, nascido cá, pode ser repetidamente excludente.
“O ambiente escolar continua a veicular um discurso colonial que glorifica um passado extremamente problemático e prenhe de barbárie, além de ter pouca representatividade”
Em Portugal, há pessoas como a investigadora Cristina Roldão, que têm refletido sobre estas questões e apresentado propostas que merecem maior atenção por parte de quem define as políticas públicas nesta área e as professoras Ariana Furtado e Ana Josefa, ambas cabo-verdianas, que trabalham diretamente no terreno com crianças provocando mudanças inspiradoras desde a base. Em Cabo Verde, devemos estar atentos ao trabalho do professor, educador e sociólogo Alexssandro Robalo, que tem abordado a educação numa perspetiva de ruptura com a repetição colonial e de desobediência epistémica, com contributos realmente interessantes e esperançosos.
Por outro lado, como sempre, é preciso reconhecer o trabalho informal realizado pelas comunidades africanas, que, a meu ver, têm sido autênticos espaços pedagógicos. Desde as batucadeiras até iniciativas como as organizações [ou coletivos] Mbongi.67, Mulheres Negras e Escurecidas, Tabanka Sul, Afrolis, o projeto [Nos Grándi] Nos Stória, idealizado por José Baessa de Pina, e o grupo Educar CPLP, entre outras [estruturas], têm surgido diversas ações educativas e artísticas de enorme potencial.

africanas, que, a meu ver, têm sido autênticos espaços pedagógicos”,
considera Apolo de Carvalho. (cesa.rc.iseg.ulisboa.pt)
sA – Quais são os maiores desafios que enxerga no campo da decolonialidade político-cultural nos próximos anos? Como imagina que o seu trabalho pode contribuir para superá-los?
AC – Entendo que, quando se diz “a luta continua”, significa que os desafios também continuam. Há sempre uma relação dialética entre passado e presente. Ou seja, os desafios de ontem são, na minha perspetiva, os mesmos de hoje. Apenas se tornaram mais complexos devido à própria dinâmica do Mundo. Romper com os sistemas de poder capitalista, colonialista, racista e patriarcal, que têm ditado as regras do jogo entre as nações e definido os modos de vida no planeta, continua a ser uma urgência, um imperativo.
Os avanços da extrema-direita na Europa e no Mundo, bem como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, demonstram uma articulação entre forças estatais e não estatais, cujo projeto é reavivar os monstros que pensávamos terem sido derrotados com a abolição da escravatura, com as descolonizações e outros momentos históricos.
Cabe-nos decidir coletivamente quem queremos ser perante este mundo que já está aqui. Quem decidimos ser perante o genocídio que tem acontecido no Congo e na Palestina, por exemplo? Quem decidimos ser perante a destruição do planeta? Que tipo de pessoa decidimos ser perante qualquer situação de degradação da Humanidade? Como resistir a sistemas de opressão cada vez mais sofisticados, enquanto construímos projetos de felicidade? Como manter e preservar a vida quando a sombra da morte se adensa, tornando-se cada vez mais banal?
Frantz Fanon, que completaria 100 anos este ano, caso estivesse vivo, termina “Pele Negra, Máscaras Brancas” com uma prece: “Ó meu corpo faz de mim sempre um corpo que se questiona”, depois de afirmar que não importa apenas conhecer uma realidade, mas agir e criar as condições necessárias para transformar radicalmente essa mesma realidade.

Não é algo que se possa fazer individualmente. Não é algo que se faz numa performance artística, num texto ou discurso académico. A história das libertações, desde a abolição da escravatura até às lutas pela independência, mostra-nos que a unidade e a organização são condições imprescindíveis neste processo. Contudo, cabe a cada geração desenvolver novas questões, novos pensamentos e fecundar o imaginário para tentar erguer um homem e uma mulher novos, parafraseando Fanon. O meu contributo, enquanto alguém que questiona e se questiona, é precisamente assumir este dever geracional de participar ativamente nestes processos. Pesem embora as contradições que nos atravessam, cabe-nos a todos, cumprir a missão de manter viva a chama da luta, de cuidar da dignidade de cada vivo, deste planeta e da nossa história comum.
.
………………………….
.
Notas da Redacção:

1 – Como é explicitado na revista brasileira Cerrados (volume 33, n.º 65, de 2024), cuja edição é dedicada ao tema “Literatura negra e indígena no Brasil: oralidades, ancestralidades, resistências”, num artigo assinado por Lilian Barros Gomes e por Adriana Alexandrino de Fátima Lima Barbosa, o “Movimento de Sankofa é uma estratégia essencial para a população negra lidar com as consequências do racismo e do colonialismo, buscando resgatar a identidade pessoal e coletiva perdidas”.
2 – Primeiro verso do poema “Prelúdio”, de Jorge Barbosa (in “Caderno de um Ilhéu”, 1956).
3 – Uma publicação da página de Facebook de Djunta Mo Art esclarece: “A Djunta Mo Art é, de facto, o primeiro projeto de comércio justo no Arquipélago a ser certificado e reconhecido mundialmente; estamos, portanto, honrados em representar Cabo Verde nesta importante organização internacional. Este importante reconhecimento nos permitirá certificar, de acordo com a ética do Comércio Justo, os produtos à venda em nossas lojas, garantindo sua autenticidade, origem e qualidade. Aproveitamos esta oportunidade para renovar mais uma vez o nosso agradecimento a todos aqueles que nos últimos 10 anos contribuíram para o nosso crescimento apoiando a causa deste projeto. [sic]”
4 – Como informa a plataforma IN LOCO do Teatro do Bairro Alto, performance “A Petrificação dos Cravos”, de Apolo Carvalho, realizada em Janeiro de 2023, no novo Jardim da Praça do Império, em Lisboa, foi inaugurada com a troca dos brasões das antigas colónias de buxo para pedra. Esta performance é um acto político “contracolonial” através do qual a performer Vânia Puma, “encarnando a voz dos herdeiros das lutas de libertação em África e do 25 de Abril, dialoga com as pedras”. “As pedras-coisa, as pedras-gente, as pedras do esmagamento, as pedras da fome, as pedras do império, imaginando a remoção de estátuas e monumentos espectrais, vislumbrando e vislumbrando o seu retorno ao chão, à terra, à rocha, à vida num gesto contínuo de destruição criativa”, adianta a nota explicativa. “É do coração do império, de ‘dentro do ventre da besta moribunda’, que a voz de um corpo-mulher negro, de carne e osso, (re)surge, para provocar uma singularidade espaço-temporal onde surge uma supernova [sic]”, é ainda sublinhado.
.
………………………….
.
Nota do Director:
O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.
.
24/03/2025