As mulheres e o labirinto do poder
Vivemos, neste momento, os valores de uma sociedade dita ocidental, na qual as mulheres e os homens se vão demarcando das gerações que os precederam no que toca às relações de poder entre os sexos. E, numa sociedade patriarcal, em que os homens eram sempre “os chefes” – da família, da empresa, enfim, de qualquer comunidade –, assistimos agora a um esforço de mudança para que exista, de facto, total igualdade para as mulheres.
Mas como é que apareceu esse estatuto de inferioridade? Como é que seriam as relações de poder entre homens e mulheres nos períodos Paleolítico ou Neolítico?
Todos conhecemos a representação tosca e estereotipada da Pré-História, com imagens de homens arrastando as mulheres pelos cabelos para dentro de uma caverna. Mas, por falta de qualquer registo escrito, não existem certezas sobre o assunto. E quase esquecemos que eram Homo sapiens sapiens iguais a nós, com o mesmo grau de inteligência, de humor, de imaginação; e com os mesmo conflitos de emoções.
Por isso, aquilo que podemos inferir baseia-se apenas em achados arqueológicos, que nos levam a pensar na existência de um culto da imagem feminina na Europa e Ásia, há cerca de 30 mil ou de 20 mil anos, cujo símbolo mais famoso é a Vénus de Willendorf, encontrada na Áustria, bem como mais cerca de 200 pequenas estatuetas semelhantes por toda a Eurásia. Representam mulheres com traços sexuais muito exagerados, com grandes seios, barrigas e nádegas. Habitualmente, sem braços ou sem pernas e, normalmente, pintadas de vermelho. Talhadas em vários materiais, desde pedra a marfim, seriam talvez deusas da fertilidade, dada a ênfase dos caracteres sexuais femininos.
Na verdade, não sabemos se existiria um verdadeiro matriarcado nesta época do Paleolítico Superior, nem se estas pequenas esculturas de mulheres, que nos parecem grávidas ou obesas, representavam algum ideal de beleza. Uma coisa, porém, não oferece dúvidas: é uma representação que honra o corpo feminino capaz de gerar vida.
No entanto, essas estatuetas desapareceram na transição para o período Neolítico, há cerca de nove mil anos. O modo de vida nomádico, de pequenos grupos de caçadores recolectores, foi profundamente alterado pelo aparecimento da agricultura/pecuária e dos metais, de tal maneira que muitos autores se lhe referem como a Revolução Neolítica, embora ela tenha demorado séculos, senão milénios.
De facto, a agricultura e a pecuária, resultante da domesticação de animais, implicaram a fixação num dado local, bem como a sua posse e uma diferente especialização do trabalho.
Se esta colonização e posse da terra permitiram o aparecimento de aldeias e de cidades, da escrita, das leis, do conhecimento, da arte em grande escala, em suma, da civilização, tiveram também consequências negativas, como o aparecimento de epidemias, pela proximidade dos animais, por uma maior frequência de batalhas e, ainda, devido a uma enorme mudança nas relações de poder entre homens e mulheres, visto que (entre outras coisas) a desigualdade da força muscular e a necessidade de um comportamento aguerrido levaram a uma alteração de estatuto entre os dois sexos.
Ou seja, a existência de riqueza, traduzida em terras de cultivo, excesso de alimentos e rebanhos de gado, levou ao aparecimento da luta sistemática entre humanos, que a Idade dos Metais – cerca de seis mil anos antes de Cristo –, com o uso de novas armas feitas de bronze ou de ferro, tornou mais letal.
Os estudos arqueológicos e biológicos da época, especialmente na Península Ibéria, indicam uma progressiva diferença entre os géneros: os homens passam a ser muito mais representados nas pinturas em contexto de uma maior violência, ao passo que as mulheres vão gradualmente desaparecendo. A pesquisa dos túmulos de indivíduos do sexo masculino revela também mais vestígios de lesões traumáticas nos ossos, principalmente ferimentos por setas, e são frequentemente acompanhados por artefactos de guerra. As mulheres aparecem sobretudo rodeadas de cerâmica, indicando, assim, uma separação de papéis: os homens dedicavam-se à caça e à guerra; e as mulheres ao cultivo dos campos e a cuidar da família.
Foi em todo o Crescente Fértil, em que uma das pontas começa no vale do Nilo e a outra se estende até aos vales dos rios Tigre e Eufrates, que surgiu a agricultura. Curiosamente, na civilização egípcia não se observam as desigualdades de género já referidas. As mulheres tinham um estatuto semelhante aos dos homens e o sexo era visto como algo sagrado.
Na civilização suméria, o Épico (ou Epopeia) de Gilgamesh, uma das primeiras obras da literatura mundial, relata-nos um mito genésico em que Enkidu foi moldado em argila pelos deuses para contrabalançar a arrogância do herói Gilgamesh. Vivia pacificamente, na Natureza, entre os animais selvagens, sem roupa, até que perdeu a sua inocência animal e adquiriu uma nova sabedoria por ter sido tentado pela sacerdotisa Shamhat. Ou seja, foi o sexo e uma mulher que o redimiram da sua condição de animal inocente.
As semelhanças com o mito bíblico de Adão e Eva são evidentes. A diferença é que, embora ambos contem histórias de tentação e as suas consequências, o “pecado” é tratado de forma muito diferente nos dois mitos. Se, no Épico de Gilgamesh, o sexo e a mulher redimem e são sagrados, no texto bíblico, ambos têm uma conotação extremamente negativa e o ónus recai em Eva, a grande tentadora, a maldita.
Na civilização grega, onde as diversas cidades-estado guerreavam entre si, esta especialização de papéis continua a verificar-se. Ao contrário do homem, a mulher não tem acesso à educação, é discreta, vive no gineceu e encarrega-se da casa. O filósofo Sócrates exclama: “Conheces alguma profissão humana em que o género masculino não seja superior, em todos os aspe[c]tos, ao género feminino? Não percamos o nosso tempo a falar de tecelagem e da confe[c]ção de bolos e guisados, trabalho em que as mulheres parecem ter algum talento.”
E o seu discípulo, Platão, espanta-se e indigna-se com este paradoxo: a missão de educar os cidadãos é confiada a pessoas, leia-se mulheres, que são pouco educadas. Aristóteles, seu discípulo, considera a mulher como inferior ao homem em todos os aspectos – anatómicos, fisiológicos, psicológicos e intelectuais –, dizendo: “Por natureza, as mulheres são mais frágeis e frias que os homens, e devemos encarar o carácter feminino como uma espécie de imperfeição natural.” De Homero (século VII a. C.) ao médico romano Galeno (século II d. C.), a coerência desta visão desdenhosa e condescendente mantém-se.
O pensamento médico – que era também do âmbito dos filósofos –, propôs a teoria do útero errante, um órgão que vaguearia pelo corpo das mulheres à procura da semente e provocaria, por isso, um grande número de doenças. Daí o nome de histeria – do grego histeros – para muitas das doenças das mulheres, e do tom depreciativo que este termo continua a ter até aos dias de hoje.
Sabemos como o pensamento grego, nomeadamente o aristotélico, influenciou profundamente o pensamento da Igreja cristã e, por arrastamento, o pensamento da sociedade europeia da época, pelo menos até ao fim da Idade Média. Mas esta noção de inferioridade e, mesmo, da maldição da condição feminina não proveio apenas dos Gregos, mas igualmente dos mitos bíblicos já referidos.
A mulher, além de ser inferior fisicamente, era também de natureza duvidosa e amaldiçoada, provocando uma luxúria que levaria à perdição das almas. O sexo era, sobretudo, procriador e a mulher estava confinada ao casamento e à reprodução.
Em Roma, reinava uma atitude epicurista, que chegou até nós, principalmente, pelos frescos de Pompeia. Os deuses greco-romanos amavam-se, tinham ciúmes, cometiam adultério. No entanto, a virgindade possuía virtudes mágicas. E as matronas ou as mães de família eram desejáveis exemplos de virtude. A lei romana, ao contrário da civilização egípcia, não considera as mulheres iguais aos homens. E, tal como na Grécia, elas recebiam apenas uma educação básica e estavam sempre sujeitas à autoridade de um homem – pai ou marido.
A religião islâmica, surgida com Maomé no início do século VII, é herdeira de mitos e de valores das religiões judaica e cristã e absorveu, acentuou e exagerou esta hierarquia entre os sexos, que continua até aos nossos dias.
A Igreja Católica, tributária de várias influências – judaicas, greco-romanas e gnósticas –, viu-se na necessidade de lutar contra a licenciosidade dos Gregos e dos Romanos. São Paulo anatematiza o pecado da carne: “Isto, porém, vos digo, irmãos: o tempo foge. Que, de futuro, os que têm mulher vivam como se a não tivessem”(I, Coríntios, 7, 29). A Igreja foi radicalizando a sua posição, até que no século V, Santo Agostinho identifica o desejo ardente associado ao sexo como meio de transmissão do pecado original. O prazer ficou identificado com a culpa máxima, a da condenação, a da exclusão divina.
A associação entre prazer sexual e género feminino leva Marbode de Rennes, bispo de Rennes, em 1098, a chamar a Eva: “[…] tentadora, feiticeira, serpente, peste, caruncho, prurido, veneno, chama, embriaguez, raiz do mal, renovação de todos os vícios.” Sendo assim, não admira que o celibato, a virgindade e a restrição da actividade sexual no casamento fossem exaltados como vias de aperfeiçoamento pessoal em busca da salvação. Se, no Velho Testamento, a mulher foi condenada à inferioridade, a partir do mito de Eva, o Novo Testamento apresenta um modelo ascético de Cristo. A sua principal figura feminina, Maria, mãe de Jesus, foi despojada de todas as características sexuais: o dogma mariano afirma que ela foi concebida sem pecado; e, sendo virgem, concebeu igualmente sem pecado.
Clemente de Alexandria, no século III, dizia que “toda a mulher devia corar só de pensar que é mulher”. O “Cântico dos Cânticos” sofre uma interpretação apenas alegórica. E o “Eclesiastes” é completamente antifeminino: “Foi através da mulher que o pecado começou e‚ por causa dela que todos nós morremos” (25-24). O corpo, e nomeadamente o corpo feminino, perde toda a dignidade.
Na Idade Média, as mulheres são definitivamente identificadas com o Diabo: o medo sublimado do erotismo e da concupiscência faz aparecer os flagelados e a caça às bruxas, porque as mulheres inspiram a luxúria, e a luxúria é o próprio Mal. Sobretudo, as mulheres idosas ou pouco atraentes são vistas com desconfiança e até demonizadas.
Recordemos uma história cruel, transcrita por Ataíde de Oliveira, nos “Contos Tradicionais Portugueses”. Esse texto chama-se “A velha” e reza assim:
“Havia uma velha que só falava em casar. Um dia[,] entrou numa igreja, viu um fidalgo e foi dizer-lhe que queria casar com ele.
– Primeiro, raspe-se – respondeu o fidalgo.
Foi ela a casa de um barbeiro e pediu-lhe que a raspasse.
– E você paga?
– Pago e muito bem.
O barbeiro pôs-se a raspar-lhe as costas. De vez em quando[,] ela gritava, e como parasse com o serviço, ela disse.
– Vá raspando.
Concluído o serviço, ela pagou bem o trabalho e foi mostrar-se ao fidalgo, este disse-lhe que[,] nessa noite[,] subisse ao telhado nua e se conservasse aí toda a noite.
Ela assim fez, e como os garotos lhe faziam troça, ela dizia lá do telhado:
– Esta noite de telhado e amanhã de fidalgo.
No outro dia[,] foi encontrada inteiriçada e morta de frio.”
As mulheres idosas, ou seja, as que já não podem procriar, perdem o seu valor como mulheres e são retratadas nos contos de fadas como bruxas más, ou mulheres teimosas, gulosas, tagarelas, invejosas ou pouco sensatas. Ao passo que as mulheres jovens são compassivas, trabalhadoras, cordatas, mas sobretudo jovens e belas. Lembremo-nos da Branca de Neve, da Bela Adormecida ou da Gata Borralheira.
Com a difusão do cristianismo no Mundo, todo o tecido social cristão foi impregnado com uma concepção da sexualidade em que, de coisa sagrada e inserida na ordem do Mundo, o sexo se tornou uma fonte de caos, de pecado, de ansiedade e de culpa. As mulheres eram inferiores “por natureza” e a procriação passou a ser a única justificação da actividade sexual.
Na Idade Média, se a expressão literária do “amor cortês” (que nos aparece em França nos séculos XI e XII) parece redimir a mulher, é, no entanto, cheio de contradições: exalta o adultério e a castidade, o sofrimento e o prazer. Mas a mulher apenas nos aparece como inspiradora de vivas paixões, é o seu objecto passivo, nunca as vive nem as escreve.
No século XIX, o Romantismo – o reinado do instinto e da emoção – e, por outro lado, a moral vitoriana, herdeira directa dos ideais calvinistas, acentuaram a desigualdade entre homens e mulheres. A expansão colonialista europeia e a Revolução Industrial implicaram uma definição ainda mais rígida do papel da mulher na família burguesa, símbolo de virtudes domésticas, submissa, castrada, contrastando com a mulher-demónio, animalesca e luxuriosa.
Depois da religião, é agora a ciência, nomeadamente a medicina, a sublinhar e a justificar a diferença de papéis de homens e mulheres. Egas Moniz, galardoado com o Prémio Nobel da Medicina portuguesa, no seu livro “A Vida Sexual” (1901), diz-nos: “O homem é essencialmente sensual, a mulher é essencialmente mãe. Tudo o que se afaste d’isto é anormal.” E ainda “tem crescido a sensualidade que, impellindo as massas aos excessos e à libertinagem, tenta destruir as bases fundamentaes da sociedade d’hoje: a moralidade e o amor da família. Demolidas ellas a ruina politica e moral torna-se inevitável [sic]”.
Egas Moniz condena a paixão, o sentimento, o culto das mulheres cloróticas e outros males românticos, e preconiza “a boa mãe de larga bacia e saude vigorosa [sic]”. Aliás, isso é também visível em Eça de Queiroz, no livro “O Primo Basílio”, ou em Flaubert, no seu romance “Madame Bovary”.
O século XX foi o século de todas as fracturas. Uma complexa interacção de acontecimentos modificou as relações de poder entre ambos os sexos: as duas Grandes Guerras, o aparecimento da teoria psicanalítica de Sigmund Freud, a progressiva independência económica e social da mulher (abertura do mercado de trabalho, movimentos feministas, divórcio, anticoncepção…) e o crescimento dos meios de comunicação, sobretudo, os que possuem grande impacto visual, como o cinema e a televisão. Tudo isto abalou, profundamente, o papel tradicional das mulheres e, portanto, a sua sexualidade. Novas exigências se lhes colocam.
As convulsões das duas Grandes Guerras modificaram, verdadeiramente, o papel tradicional das mulheres: vemo-las a desempenhar tarefas que tradicionalmente cabiam aos homens, ausentes na guerra. Acabada a II Guerra Mundial, já se tinha operado, subterraneamente, a noção de que as mulheres podiam ser alguma coisa mais do que esposas e mães.
Quanto à psicanálise freudiana, a sua contribuição para a emancipação feminina é ambivalente e até misógina, reflectindo os valores da época. Se sublinhou a importância do sexo no comportamento humano, numa época em que o sexo era completamente silenciado, declarou, por outro lado, que a mulher tinha inveja do pénis (parece algo que vem directamente da Antiga Grécia, a supremacia do ideal físico masculino ou, segundo a expressão de Aristóteles, “o macho falhado”), sugerindo que a mulher, no fundo, estava consciente da sua inferioridade.
E proclamou a figura materna como causadora de não poucas perturbações do foro neurótico ou parafílico.
No entanto, as mutações foram tão bruscas que é possível a coexistência temporal de valores tipicamente oitocentistas (a submissão, a passividade, as tarefas do lar), em simultâneo, com valores do final do século XX e início do século XXI: independência, autonomia, competitividade no mundo do trabalho. Mais uma vez, um processo dialéctico, mas contraditório, que perturba muitas mulheres no nosso país e no nosso tempo.
Neste momento, o conflito surge porque uma educação dita tradicional as faz herdeiras dos valores das suas avós, os quais estão em total desacordo com o que observam na TV e lêem nas revistas.
Assistimos, nesta terceira década do século XXI, à existência de imagens muito diferentes das mulheres: da Europa ao Irão, há uma enorme descontinuidade. Vemos, ao mesmo tempo, a persistência de uma sociedade patriarcal e de um esforço para promover mais justiça e mais igualdade entre todas as pessoas, independentemente do género a que pertençam.
Como exemplo da desigualdade ainda vigente, cito o jornal Público do dia 11 de Novembro de 2023, noticiando que as pensões das mulheres portuguesas são 43% mais baixas que as dos homens. Ainda!
Neste processo de mudança que estamos a viver, haverá bolsas de resistência, armadilhas, avanços e recuos, mas trata-se de uma mudança necessária e justa, que irá abolir a subalternidade secular das mulheres.
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04/03/2024