As regras do jogo

 As regras do jogo

Por esses dias me deparei com um novo golpe na praça. O golpe, ou, de forma mais acurada, a exploração em proveito próprio de uma brecha no sistema, começa com a solicitação por um passageiro de uma viagem em um desses aplicativos que substituíram os taxis. Mas não uma viagem qualquer, uma para o Japão, partindo de Copacabana. Ou de Realengo para a Sibéria, tanto faz, desde que seja longa. O preço final da corrida custaria algumas dezenas de milhares de reais, mas ela é cancelada logo após iniciada. O passageiro paga um valor mínimo após o cancelamento, o motorista recebe o valor integral da volta ao mundo não realizada, e ambos dividem os lucros. Não me está claro quem arca com os prejuízos, se a empresa responsável por tal aplicativo ou operadoras de cartões de crédito. Mas isso não é importante, as multinacionais que lidem com seus problemas. O ponto central é que todo sistema tem suas falhas, e sempre haverá aqueles que se aproveitam delas.

Assim acontece com a democracia e suas instituições. Um estudo do projeto Medialab, do ISCTE, apontou que a meteórica popularidade atingida por André Ventura em Portugal foi alavancada por uma simbiose entre o desejo de projeção nacional de Ventura e os interesses de veículos de imprensa tradicionais em lucrar com o engajamento que figuras tétricas como ele sempre despertam. Em outras palavras, a imprensa livre, um dos pilares da democracia, atenta contra a própria estrutura que a sustenta. Eis uma das brechas no sistema. Mas esse conluio não é prerrogativa de Portugal. Aconteceu nos Estados Unidos, aconteceu no Brasil, acontece por toda a parte. Depois que a primeira viagem pra Tóquio é remunerada, não falta gente querendo garantir o seu quinhão.

Também sobram falhas em outro pilar, o da liberdade de expressão. Mas nesse caso, as falhas são incorrigíveis. Por muito tempo, como nos diz Chomsky, fomos submetidos a uma ilusão de liberdade na qual somente alguns pontos de vista eram autorizados. E mesmo que discussões acaloradas fossem encorajadas, elas sempre deveriam estar contidas nesse espectro de opiniões permitido. Isto, por óbvio, não é liberdade, mas sempre serviu para manter a estabilidade do sistema. Com o advento das redes sociais e dos fóruns nas periferias da internet, foi descoberto que é possível promover outras agendas que não as do menu do dia. E isso, em democracias, é saudável e legítimo. Mas uma vez aberta a caixa de pandora, tudo passa a estar no horizonte.

Foi possível encontrar, em poucos minutos de despretensiosa pesquisa online, diversos exemplos do mais puro sumo de liberdade de expressão. Desde a já banalizada exortação da ditadura, mas também a do império, e mesmo a da muito civilizada ocupação holandesa (imagino que quanto mais distante no passado melhor), passando por aplausos às chacinas policiais recentes, até a defesa de um programa nacional para a abstinência sexual até os 18 anos. Afora os claros excessos, já passíveis de punição pelo ordenamento vigente, todas as reivindicações são feitas sob o legítimo manto do livre pensar e garantidas pelo direito constitucional à idiotice.

A defesa da censura costuma ser o primeiro impulso quando avistamos um lunático amealhando milhares de seguidores para armar a população contra a invasão comunista iminente. Mas tal qual uma viagem de Ford Fiesta para Vladivostok, a pregação da estupidez não infringe nenhum dispositivo legal, ainda que possa ferir o bom senso e a boa-fé. Considerando que o pau que bate em chico é o mesmo que acerta o Francisco, a censura é um impulso que deve ser controlado, senão pelo apreço aos ideais democráticos, mas pelo puro instinto de autopreservação.

A democracia, ou pelo menos aquilo que convencionamos a chamar dessa forma, pode nos parecer muito sólida, mas na realidade é o mais frágil dos regimes, um espasmo na história dos modelos de organização humana e que está sempre a um sopro de desmoronar na primeira desatenção. Não há como tapar todas as fendas na muralha. O único caminho a se seguir é o de permanentemente disputar os mesmos espaços que os loucos hoje ocupam, oferecer alternativas sensatas, mas que sejam estimulantes para os desesperançosos e, uma vez restaurada a normalidade, jamais descuidar da vigília novamente.

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Rodrigo Monteiro Carvalho

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