“Assim que passarem cinco anos”

 “Assim que passarem cinco anos”

Manifestação franquista em Salamanca (no ano de 1937) com os manifestantes carregando faixas com o retrato de Francisco Franco e a população fazendo a saudação romana. (pt.wikipedia.org)

Francisco Franco Bahamonde foi um general militar
espanhol que liderou as forças nacionalistas no
derrube da Segunda República Espanhola durante
a Guerra Civil Espanhola e, posteriormente, governou
a Espanha, de 1939 a 1975, como ditador, assumindo
o título de Caudillo. (pt.wikipedia.org) 

Não são cinco1, para sermos mais exactos, são 50. Passam 50 anos da morte de Francisco Franco Bahamonde e, na vizinha Espanha, um inquérito à juventude ilustra que um de cada cinco jovens acredita que a ditadura de Franco foi boa! Utilizei apenas este título de uma peça do dramaturgo Federico García Lorca, pois foi ele a primeira grande vítima do franquismo e da Guerra Civil Espanhola.

Esta crónica utiliza muita informação consultada por mim, durante estes últimos dias, por motivo dos 50 anos da morte de Franco e do regresso da democracia a Espanha. Nas notas, no final do presente arrigo, aparecem as fontes para os interessados numa consulta mais detalhada.

Lá como cá, os jovens desconhecedores da História recente, que não viveram, apresenta-se-lhes como boa. Talvez retratada pela nostalgia saudosista de uma geração de pais, tios ou avós que se identificam, como eles, cada vez mais com a extrema-direita. Aqui , já sabemos a quem nos referimos. E o  movimento em Espanha é o Vox, que apoiando o Partido Popular (PP)de Alberto Núñez Feijóo, governam – actualmente, com o PP – em 11 comunidades autónomas, tendo ultimamente desvinculando-se de  algumas, em seis, pelo menos! 

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E, aqui, em Portugal?

(rtve.es)

No artigo de opinião de Carla Castro, publicado no jornal Público (edição online, de 19 de Novembro de 2025), intitulado  “Não falem em nome dos jovens — e citem bem os dados”, lemos, no segundo parágrafo: “Nas últimas legislativas, em 2024, o perfil dos eleitores jovens foi claro: entre os 18 e os 34 anos de idade, quem obteve a maior votação foram a AD (28%) e o Chega (25%). É verdade que o PS foi o terceiro, com 13% dos jovens, mas mais de 50% foram de centro-direita e direita. O número é expressivo. Perfil sociológico, medidas fiscais da AD ou TikTok do Chega — pode e deve-se estudar o porquê, não se pode é fugir ao facto de em quem estão os jovens a votar.”2

No dia 17 de Setembro, a RTVE apresentou em estreia “Os arquivos secretos do NO-DO”, uma série documental com imagens nunca vistas que Franco vetou na televisão. Falamos de “Los archivos secretos del NO-DO”. Estes documentos fazem parte da minha juventude, eu via-os sempre que ia ao cinema, como complementos da programação. Os outros eram os do cinejornal “O Mundo Instantaneamente” (Telecine UFA alemão, 1942-1981), das notícias da França e o “Carrossel Britânico” com notícias do Reino Unido. Especificamente, há seis episódios em que a TVE revela muitos segredos guardados que a ditadura não queria ver à luz do dia e que foram reunidos em mais de seis mil latas com filmes que estavam escondidos nos depósitos do Arquivo de Cinema Espanhol.3

(rtve.es)

Qué esconde la Fundación Franco en sus archivos y por qué interesan tanto a los historiadores”, é o título de um artigo da autoria de Inés García Rábade, no jornal espanhol Público (publico.es).

Ernest Urtasun i Domènech, ministro da Cultura de
Espanha. (en.wikipedia.org)

São 27.620 documentos. É o volume de arquivos históricos, de titularidade pública, que continuam sob o poder da Fundação Nacional Francisco Franco (FNFF). Um acervo que, a 20 de Novembro, em pleno aniversário da morte do ditador, o Ministério da Cultura instava a Advocacia do Estado a reclamar formalmente nos tribunais. Para que volte ao seu legítimo dono: o povo. “Pertence aos Espanhóis, aos investigadores, aos docentes. Para que todos possam documentar a repressão da ditadura”, defendia Ernest Urtasun, numa entrevista à TVE.

“No relatório que elaborámos desde o Ministério da Cultura está inventariado o arquivo do ditador. Dezenas de milhares de documentos. Documentos de titularidade pública”, insiste Ernest Urtasun. Dirigidos ou emitidos, na sua maioria, pelo próprio ditador nas suas funções como chefe de Estado e, portanto, propriedade da Administração. Assim o estabelece, no seu artigo 49.º, a Lei do Património Histórico Espanhol. Uma lei que tem sido incumprida ao longo de quatro décadas de democracia, desde 1985.

Fernando Hernández Holgado, doutor em História
Contemporânea pela Universidade Complutense de
Madrid. (es.wikipedia.org)

“É inconcebível”, avalia Fernando Hernández Holgado, doutor em História Contemporânea pela Universidade Complutense de Madrid, a quem vem à cabeça a comparação com o vizinho mais próximo, Portugal. “Lá, toda a documentação do ditador Oliveira Salazar está num fundo especial, no Arquivo Oliveira Salazar, dentro do Arquivo Nacional da Torre do Tombo”, assinala o docente universitário.4

Durante a ditadura franquista, o papel da mulher estava muito reprimido em quase todos os âmbitos sociais. Muitos dos avanços conseguidos durante a Segunda República foram anulados e, a partir de então, o Estado desenhou um modelo feminino baseado na obediência e na dependência em relação ao homem, com uma visão conservadora. A identidade feminina foi reduzida ao âmbito doméstico e à subordinação ao homem. Basicamente, fomentou-se um modelo de família liderada pelo homem, doutrinando a mulher em todos os âmbitos.5

Combatentes republicanas da Guerra Civil Espanhola (1936-1939). (nexojornal.com.br)
(comares.com)

No livro “A Fome como Arma – Escassez de Republicanos na Guerra Civil (1936-1939)”, a historiadora Alba Nueda Lozano analisa, em profundidade, como o lado franquista instrumentalizou a falta de alimentos como uma táctica de guerra psicológica. A autora Alba Nueda demonstra como a propaganda alimentar se tornou uma ferramenta chave para desmoralizar os republicanos, usando exemplos como o lançamento de sacos de pão branco desde aviões sublevados sobre Madrid, em 1938, com mensagens que exaltavam a prosperidade na “Espanha Nacional, Una, Grande e Livre, não há um lar sem lume nem uma família sem pão”. Este tipo de acções procurava minar a moral da população e projectar uma imagem de bem-estar do lado franquista, enquanto os republicanos lidavam com a fome e o desespero.6

Relativamente a esta temática, cito uma saborosa crónica – desculpem a ironia – sobre o engenhoso comércio7 que foi fundamental para sobreviver no período pós-guerra. Hoje, muitos espanhóis nem sequer sabem sua existência.

Pablos é um típico malandro que nos conta, em
primeira pessoa, a história da sua vida, movendo-se
num contexto realista de descrições cruas, situações
e ambientes sórdidos, onde a vida espanhola da
época é exposta sem retoques. (ecured.cu)

A reconstrução económica do pós-guerra abriu espaço para actividades marginais que proporcionaram um leve alívio alimentar. Entre eles estava o “subtanciero”, cuja função era alugar um presunto ou osso de vaca para introduzi-lo, por alguns minutos, na panela de famílias que não podiam comprar carne. Esse procedimento era cobrado por tempo; geralmente, uma peseta a cada quinze minutos. O osso pendia de uma corda para facilitar o seu manuseio e, no final do tempo acordado, era removido, secado e devolvido à bolsa para ser reutilizado o máximo de vezes possível.

O grande escritor espanhol Francisco de Quevedo, no seu livro “Historia de la Vida del Buscón” (de 1626), mencionou um procedimento semelhante, que indica que a ideia de extrair sabor de ossos quase exaustos tem uma longa tradição. Quevedo descreveu como um personagem fez um osso balançar na água até que isso produzisse o que restava apenas de “suspeitas” da substância.

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Notas:

(books.uc.pt)

1 –  “Assim que passarem cinco anos”, integra – ao lado de “O público” e da inacabada “Comédia sem título” – as chamadas “comédias irrepresentáveis” de Federico García Lorca (1898-1936) e testemunha a mais autêntica visão teatral do autor granadino. Como escreve Claudio Castro Filho, numa obra de cortante acento farsesco, Lorca regressa às origens da teatralidade e conduz-nos por um labirinto textual onde perdem sentido as fronteiras entre o trágico e o cómico. No elogio do falso, encontra-se a verdade de um “teatro puro”.

2 Carla Castro. https://www.publico.pt/2025/11/19/opiniao/opiniao/nao-falem-nome-jovens-citem-bem-dados-2155252#

3 Quantos programas ‘The Secret Archives of the NO-DO’ tem na TVE e sobre o que é essa série documental?

4Qué esconde la Fundación Franco en sus archivos y por qué interesan tanto a los historiadores | Público

5 –  Las mujeres durante el franquismo: los roles impuestos, propaganda y aquellas que se rebelaron | Onda Cero Radio

6 –  “El hambre como arma”: la estrategia de desmoralización que usó el bando franquista en la Guerra Civil Española – Infobae

7 O engenhoso comércio que foi fundamental para sobreviver no período pós-guerra: hoje muitos espanhóis nem sequer sabem sua existência.

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25/12/2025

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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