Breves notas sobre uma cartografia das “agendas” que nos vão aprisionando
Em jeito de balanço de fim de ano, partilha-se um olhar de conjunto sobre o nosso espaço público e sobre o modo como nos sentimos vulneráveis, enquanto espécie de peões que vão sobrevivendo entre uma chuva de “agendas” que nos tentam determinar a perceção e os comportamentos.
Portugal não será caso único, mas, por aqui, abundam as matérias de reflexão e as monoculturas que procuram vestir-nos camisas apertadas que nos prendem os braços, as pernas e, sobretudo, o olhar e o pensamento.
Comecemos pela “agenda da insegurança”, num país frenético que viverá uma guerra permanente de assaltos, de tiroteios e de assassinatos. Para passar a mensagem, basta juntar os pedaços de um puzzle e dar coerência à teia de acontecimentos de emergência e de alta tensão que reclama um Portugal fechado e securitário. Perante esta imagem, lá fora, os potenciais investidores e os operadores turísticos agradecem. Os países concorrentes também.
Associada a esta, mas em sentido contrário, que se siga para a “agenda das minorias”. Se, no primeiro caso, nos tentam convencer sobre o poder ilimitado dos grupos minoritários, poder esse que lhes advirá do potencial incontrolável das redes transnacionais de influência, agora dizem-nos o contrário: vivemos num país estruturalmente hostil a grupos não hegemónicos, vulneráveis, descapitalizados e vítimas até de uma linguagem discriminatória que devemos ajustar aos novos tempos. Também aqui, com este sistema de edição, de montagem e de ampliação, se juntam pedaços desconexos de uma realidade difusa que acende um rastilho de culpabilizações e de confrontos ideológicos extremistas.
Não muito longe, também assistimos à “agenda do pobre e da pobreza”, que, em Portugal, somará um universo de dois milhões, porventura três ou quatro – por que não cinco? Assim dito, a frio e sem contexto, como se estivéssemos a falar de pobreza em termos absolutos e de algo comparável em Portugal, na Alemanha, na República Centro Africana, na Guatemala ou no Haiti. Como alguém dirá: “É tudo a mesma coisa. Complicar para quê?”
Numa excelente crónica, António Lobo Antunes já nos tinha avisado que, nas famílias de elite, cada uma das senhoras tinha o seu pobrezinho, a quem se dá um pacotinho de arroz e de bolachas Maria, ou uma conservazinha de atum ou de sardinha. Assim mesmo, com diminutivos, para realçar o sentimentalismo da dádiva generosa e a hierarquia que sustenta este modelo de sociedade. Esta é a “agenda da misericórdia”, muito notada e quase obrigatória na quadra natalícia.
Siga-se para uma outra “agenda”, a das “alterações climáticas”. Também aqui se agregam acontecimentos desconexos, rotineiros alguns, excecionais outros, uma seca ali, precipitações algures, cheias e inundações, fogos rurais e deslizamentos, ventos fortes, erupções vulcânicas e sismos. Mais uma vez, complicar para quê? A resposta só pode ser uma: alterações climáticas! O que vem a seguir já se sabe: transição energética, eletrificação da sociedade (a começar pelos automóveis) e transformação da paisagem num oceano de aerogeradores e de painéis fotovoltaicos. Assim feito, sem conta nem medida, também os nossos parceiros asiáticos agradecem, em particular a China.
Este rural que produz energia elétrica encaixa numa outra agenda, a dos “animais de estimação, urbanos e humanizados”. Para esta deriva de cães e de gatos higienizados com comidas sintéticas, medicamentos e roupas a condizer, a Natureza e a ecologia reduzem-se a este universo antropomórfico que se afastou e se desligou de um mundo agroflorestal e pecuário em rápida transformação. As clínicas veterinárias e o comércio de rações cientificamente elaboradas ficam gratas.
Aqui, também não estaremos muito longe de uma outra tendência, a da “agenda tecnológica e digital”, que nos diz que se devem multiplicar os ecrãs e as horas que passamos em frente aos mesmos, que se devem acabar com os livros e com os manuais escolares analógicos, que nos vários níveis de ensino se generalizem os exames e as provas de avaliação de “cruzinhas”, realizados em frente a um computador. Os oftalmologistas, pelo menos estes, ficarão agradecidos.
A estas “agendas”, junta-se a da “eficiência quantitativista e produtivista”. Cada um tem o peso daquilo que produz e pode ser medido. Alguns valerão “sete”, outros “cinco vírgula quatro”, outros apenas “dois”. Outros, porventura, equivalerão a “menos zero vírgula seis”. Estes últimos, para além de valerem zero, em virtude do número negativo ainda ficam em dívida para com esta sociedade mecanizada e de sucesso.
Assim se estabelecem hierarquias fáceis, mas performativas. Quem está acima da média X ou da posição Y, avançará mais depressa. Neste segmento de reta, os outros ficarão para trás. Também aqui, recuperam-se denominações que entraram em desuso, como os do “primeiro”, os do “terceiro mundo” e os outros, “assim-assim”.
O sucesso é medido, igualmente, pelo corpo e pela “agenda da beleza e da perfeição”. Neste caso, faz-se a distinção rigorosa e científica entre os bonitos e os feios; os gordos e os magros; os com e sem barriga; aqueles que conseguem abotoar os dois botões de um casaco fino e os anafados que parecem presos num fato apertado; os com e sem cabelo; os altos e os baixos; os que podem servir de imagem de marca de um produto ou de uma instituição e os outros, que deverão ser escondidos e cancelados.
Às anteriores, soma-se a “agenda da linguagem internacional”, das palavras em Inglês, do “branding”, do “benchmarking” ou do “food & wine”. Qualquer médico desta deriva nos prescreveria uma receita de cinquenta “stakeholders” escritos por dia; de quarenta vezes repetida a palavra “skills” ou, em vez desta, a mais completa composição “soft skills”. Entretanto, é preciso usar o termo “smart”, muitas vezes escrito e dito, possivelmente juntando-o a expressões da moda, como “summit”, “brainstorming”, “business”, “pitch” ou “deadline”. Quem não se movimentar nesta galáxia anglófona estará fora, não se sabe bem do quê, mas estará fora e nas margens.
E assim continuamos nós, num ano que acaba e noutro que começa, a tentar sobreviver a “agendas” que são vagas de fundo, monoculturas e religiões sem rostos definidos, mas com muitos sacerdotes, censores e linhas traçadas no chão, assinalando quem está de um lado e quem, qual espécie de pária ou de descrente, se coloca no lado oposto, como se estivesse a puxar o país e o Mundo no sentido contrário.
Numa guerra de perceções, cada uma destas “agendas da linha reta” (uma lista no meio de muitas outras) procura fechar-nos na redoma de uma floresta escura que nos encurta as vistas e nos homogeneíza o que se vê e como se pensa.
Para que não restem dúvidas, não se negam os desafios da segurança e do convívio multicultural que resultam de um mapa de migrações, hoje, mais difuso e incerto, tal como não se desvalorizam os efeitos sistémicos da concentração do poder económico e político, com fraturas sociais difíceis de avaliar, mas que devem ser acompanhadas e devidamente compensadas por políticas de justiça social e territorial.
Da mesma forma, não se negligenciam os efeitos ambientais dos sistemas produtivistas e intensivos e as suas consequências climáticas, nem se põem em causa os direitos dos animais. Também não se duvida da necessária procura de novos modelos energéticos, nem se nega a tecnologia, nem uma deriva digital que devem, contudo, ser acompanhadas pela devida monitorização dos riscos. O mesmo se diz a respeito da saúde e do cuidado com o corpo.
O que não se aceita é o enclausuramento de cada um de nós numa plêiade de “agendas” unidimensionais e de caminho único, que refutam a reflexão e anulam todo o contraditório.
Como sobreviver a esta “avalancha de pedras”? Talvez o pensamento crítico seja a nossa mais importante jangada de salvação e o refúgio que nos resta. Talvez a experiência, a viagem e os livros nos auxiliem. Neste caso, os livros devem ser vistos não apenas como alçapão para uma fuga a estes quadros monolíticos, mas também enquanto candeias que nos iluminam os cantos mais sombrios e obscuros desta existência numa sociedade de controlo, que nos vai limitando as liberdades.
De uma forma ou de outra, mergulhar num livro (para depois voltar a aparecer) será sempre uma boa opção. Para o efeito, não sendo uma novidade, deixa-se uma boa proposta para 2025: “Os Livros Que Devoraram o Meu Pai – A Estranha e Mágica História de Vivaldo Bonfim”, da autoria de Afonso Cruz, publicado pela Caminho, em fevereiro de 2010.
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06/01/2025