Camões: 500 anos

(ensina.rtp.pt)
“É, contudo, uma evidência que “a importância que a crítica, muito justamente, tem atribuído à obra épica de Camões, e mais tarde à produção lírica” (Barata, 1991: 175), ofuscou o teatro camoniano e acabou “por remeter para segundo plano a produção dramática” (ibid.), considerada empalidecida face à épica e à lírica.”1
Seria injusto da minha parte se não escrevesse sobre esta data, tão marcante, merecida e tão patriótica. Utilizo a palavra “pátria” no melhor sentido da palavra, assim como já utilizei a palavra “mátria”, ideada pela poeta Natália Correia. A pátria não é apenas o território, é a nossa vivência e convivência com um território, com as suas gentes, com a sua história e com a sua língua… Já o disse Pessoa (Fernando Pessoa) no “Livro do Desassossego” (sob o pseudónimo de Bernardo Soares).
Lamento que certos autores portugueses tenham entrado na minha vida tardiamente, refiro-me a Luís de Camões, claro, mas também a Gil Vicente, a Eça de Queirós, a Camilo Castelo Branco e a outros escritores. O Tratado de Tordesilhas (em 1494) que dividiu o Mundo em dois, também o dividiu linguisticamente. Os que ficaram virados para o Pacífico ficaram agarrados e arraigados ao Castelhano, enquanto, do outro lado da cordilheira, uma outra grande nação falava outra língua.

A minha relação com o Português começou quando a ditadura brasileira se instaurou no Brasil, foram muitos – e não poucos – os intelectuais brasileiros que se refugiaram no Chile, fugindo da ditadura militar (de 1964 a 1985), entre os mais notáveis, Fernando Henrique Cardoso, que, mais tarde, seria o 34.º presidente da República Federativa do Brasil, entre 1995 e 2003. Assim sendo, falar da Língua Portuguesa, durante muitos anos, para mim, foi um mistério…

No liceu, quando se falava de literatura épica, os primeiros autores que se mencionavam eram Homero e Virgílio. E não podia faltar o nosso poeta conquistador, Alonso de Ercilla y Zúñiga (1533-1594), autor de “La Araucana”, poema épico que fala das lutas dos povos indígenas do Chile – os Araucanos – perante o conquistador espanhol. De Camões, uma mísera referência e mais nada. O meu pai, como bom leitor, lembrava-se da leitura do romance “Os Maias” e de um livro sobre o qual, muitas vezes, me falou: “A Saudade na Poesia Portuguesa”. Não me recordo se esse livro estava traduzido em Espanhol (Castelhano) ou em versão portuguesa. Sei que existe uma publicação de 1967, com seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues (Colecção Antologias Universais Poesia VII, Portugália Editora, Lisboa, 1967).

As comemorações deste quinto centenário obrigaram-me, no melhor sentido da palavra, a rever ou a reler as peças de teatro de Camões, na edição do Círculo de Leitores, Volume II (Teatro e Cartas), de 1984. Os textos que integram esta edição, além das cartas, são o “Auto dos Anfitriões” (ou “Comédia dos Enfatriões”), o “Auto de El-Rei Seleuco” e o “Auto de Filodemo” (ou “Comédia de Filodemo”).

Comecemos pelo “El-Rei Seleuco” (escrito em 1545 e impresso, pela primeira vez, em 1616). Trata-se de um auto que satiriza a nobreza. A trama baseia-se na intenção do rei de desposar a mulher que o seu filho ama. A atribuição da obra “El-Rei Seleuco” a Camões é, porém, controversa. O tema da complicada paixão de Antíoco, filho do rei Seleuco, pela sua madrasta, a rainha Estratonice, foi tirado de um facto histórico da Antiguidade transmitido por Plutarco e repetido por Petrarca e pelo cancioneiro popular espanhol, trabalhando-o ao estilo de Gil Vicente.
O tema estará presente noutras peças na literatura dramática. Por exemplo, em “L’Avare” (“O Avarento”), de Molière, na qual o filho de Harpagão, Cleanto, disputa com o seu pai o amor pela bela Mariana.
Continuando, vamos a “Filodemo”, composto na Índia e dedicado ao vice-rei Dom Francisco Barreto. É uma comédia de moralidade em cinco actos, de acordo com a divisão clássica, sendo, das três que se lhe atribuem, a que se manteve mais viva no interesse da crítica pela multiplicidade de experiências humanas que descreve e pela agudeza da observação psicológica. O tema versa sobre os amores de um criado (Filodemo) pela filha (Dionisa) do fidalgo em casa de quem serve, com traços autobiográficos. Como as suas duas outras peças, o conteúdo geral da obra combina o nacionalismo e a inspiração clássica, na tradição das comédias de Gil Vicente.
Chegamos ao chamado “Auto dos Anfitriões” (ou “Comédia dos Enfatriões”). Esta peça é, para mim, a mais querida, pelo facto de abordar um tema que sempre me atraiu: a sedução, a suplantação de uma identidade e a ideia do duplo!


Seguindo o próprio argumento, é-nos explicada a situação: desejando Alcmena, mulher de Anfitrião e aproveitando a ausência do marido, que se encontrava na guerra, Júpiter disfarça-se de Anfitrião, a conselho do mensageiro Mercúrio, seu servo, que, por sua vez, se disfarça de Sósia, servo de Anfitrião. Com este disfarce, Júpiter faz crer a Alcmena que tinha regressado da batalha. Deste encontro vai nascer um filho (Hércules), acontecimento que vai constituir o final da comédia. É evidente que o regresso do verdadeiro Anfitrião vai criar uma série de equívocos que o autor transforma em alguns episódios dramáticos, protagonizados por Alcmena, mas principalmente em cenas cómicas. O clímax da peça regista-se quando Anfitrião descobre o embuste. Todavia, é obrigado a calar o seu “ciúme conjugal”, na medida em que não se atreve e enfrentar um ser divino (Júpiter).
O tema – que, inicialmente, estaria inspirado em Plauto – ganha novas vozes na peça de Camões, que se antecipa a autores tão universais como Kleist e Guilherme de Figueiredo, na sua versão de “Um Deus Dormiu Lá em Casa”, comédia de 1949, estreada no Teatro Copacabana do Rio de Janeiro e que contou no seu elenco com Paulo Autran e Tônia Carrero. O tema transformar-se-á numa comédia que percorre a História do Teatro, de Plauto a Camões e de Molière a António José da Silva, e ainda na versão de Kleist (em 1806), a partir de Molière.

Na vasta obra de Camões, destaco a sua obra lírica, composta de mais de uma centena de poemas, entre sonetos, éclogas, canções, redondilhas, sextinas, elegias, epístolas, oitavas e odes.

Recorrendo à página electrónica RTP Ensina, sob o título “Lírica de Luís de Camões” (na área pedagógica: Português – Educação Literária), lemos: “A lírica camoniana compreende um conjunto de poesias muito diversificadas tanto a nível temático como a nível formal. Distribuem-se por composições de medida velha, integradas na tradição da lírica peninsular, e composições de medida nova, que ado[p]tam as formas que chegaram a Portugal vindas de Itália. Os temas tratados são muito variados e ricos. Entre eles, podemos destacar a mulher, o amor, o desconcerto do mundo, a [N]atureza e a reflexão sobre a vida pessoal.”
É tal a vigência de Luís de Camões que os músicos e cantores da nossa contemporaneidade não podiam deixar de o citar, musicar e cantar, basta-me aqui recordar, apenas, os belos exemplos de Amália e de outros autores/cantores, servindo-me de um texto de Nuno Galopim: “No mesmo ano em que era lançado o álbum Fado Português[,] Amália juntava Dura Memória e Lianor a uma leitura (uma vez mais com música de Alain Oulman), de Erros Meus[,] num disco de 45 rotações. Nasceu assim o EP Amália Canta Luís de Camões, que acentuou o ‘caso’ que então deu que falar… O tempo deu-lhe razão. E das palavras de Camões nasceria um momento maior na sua obra, que deu inclusivamente título a um álbum histórico editado em 1970, claramente um dos mais importantes da sua discografia. Chamou-lhe Com Que Voz…”

Prossegue ainda Nuno Galopim: “De José Mário Branco (Mudam-se os Tempos Mudam-se as Vontades) a José Afonso (Endechas a Bárbara Escrava ou Verdes São os Campos) ou Sérgio Godinho (citação em Definição do Amor), de Amélia Muge (Os Olhos de Helena) a Cristina Branco (Saudade) ou José Cid (Camões, As Descobertas… E Nós), Camões habita hoje, sem polémicas, a música popular portuguesa. As ousadias de Amália olharam acima do horizonte. E abriram caminhos…”
Como também escreve Paulo Mendes Pinto, na edição de 20 de Outubro de 2024 do jornal Público: “Mais do que um poeta de um romantismo ainda com um certo toque do galanteio que herda das cantigas medievais, Camões recentra a paixão no humano, na definição do próprio indivíduo, trazendo a dimensão trágica do teatro clássico. Nesse sentido, Camões é um humanista.”

serigrafia de José de Guimarães. (cml.pt)
Por outro lado, Luiz Francisco Rebelo observa: “Se formalmente o teatro de Camões é tributário do modelo vicentino, já os seus temas e o respectivo tratamento dramático provêm de outra matriz. Aqui é o homem da Renascença que se manifesta, o humanismo que vai colher na antiguidade clássica greco-latina os motivos da sua inspiração e os desenvolve livremente, dotando-os de uma expressão moderna, patente sobretudo no modo como nas três comédias se documenta uma dialéctica dos sentimentos e se define uma filosofia do amor que constituem o motor principal da sua acção.”2
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Notas:
1 – Maria Luísa de Castro Soares (docente da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro), Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, “Do Amphitruo de Plauto ao Auto dos Anfitriões de Camões: paragramatismo e originalidade”.
Este texto ensaístico de Maria Luísa de Castro Soares explora a relação entre a comédia de Plauto e a peça de Camões, analisando o uso do intertexto e as originalidades na obra camoniana. O estudo foca-se na adaptação e na transformação da peça latina, no contexto do Renascimento português, destacando como Luís Camões reelabora o texto original de Plauto, introduzindo elementos próprios e adaptando-o à sua época.
2 – Ver a obra “O Teatro Romântico em Portugal e Variações sobre o Teatro de Camões” (publicada em 1980), de Luiz Francisco Rebello.
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07/07/2025