Chefe de Estado submete Lei de Estrangeiros ao Tribunal Constitucional
(Créditos fotográficos: Aayush Gupta – Unsplash)
O Presidente da República (PR), a 24 de julho, submeteu, com caráter de urgência (no prazo de 15 dias), à apreciação do Tribunal Constitucional (TC) o Decreto n.º 6/XVII da Assembleia da República (AR), que altera a Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação atual, que “aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional”. Nisto, como se verá, a seguir, assiste-lhe toda a razão.

Estão em causa as normas dos n.os 1, 2 e 3 do artigo 98.º, alterado pelo artigo 2.º do Decreto; as dos n.os 1 e 3 do artigo 101.º, alterado pelo artigo 2.º do Decreto; a do n.º 1 do artigo 105.º, alterado pelo artigo 2.º do Decreto; e a do artigo 87.º-B, aditada pelo artigo 3.º do Decreto.
O PR informa o TC de que o Decreto em apreciação tem origem na Proposta de Lei n.º 3/XVII/1, do governo, e no Projeto de Lei n.º 61/XVII/1, do grupo parlamentar do partido Chega; e que, “no decurso do procedimento legislativo parlamentar, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, aprovou um texto de substituição das duas iniciativas, que foi ainda objeto de propostas de alteração aprovadas já em plenário”.
Segundo o Decreto, impõe-se “reforçar o combate das rotas de imigração ilegal e de melhoria dos canais de imigração legal, em alinhamento com a necessidade de captação de talento e [de] capital humano altamente qualificado”.

cidadania portuguesa em 2025. (servicopublico.pt)
Entre outras matérias, o Decreto “limita a atividades altamente qualificadas o visto para procura de trabalho”; “altera as condições para a concessão de autorização de residência aos cidadãos nacionais de estados-membros da CPLP [Comunidade de Povos de Língua Portuguesa], em território nacional, restringindo a autorização de residência aos detentores de visto de residência CPLP; “relativamente ao reagrupamento familiar” e, conforme referido na exposição de motivos da Proposta de Lei, de harmonia com a Diretiva 2003/86/CE do Conselho, de 22 de setembro de 2003, passa a consagrar o seguinte:
“O cidadão com autorização de residência válida e que resida, legalmente, em território nacional tem direito ao reagrupamento familiar com os membros da família, menores de idade, que tenham entrado, legalmente, em território nacional e que aqui se encontrem, e que com ele coabitem e dele dependam.
“Os titulares de autorizações de residência concedidas ao abrigo dos artigos 90.º, 90.º-A e 121.º-A têm direito ao reagrupamento familiar com os membros da família, que tenham entrado, legalmente, em território nacional e que aqui se encontrem, e que com ele coabitem e dele dependam.

“O cidadão com autorização de residência válida e que resida, há, pelo menos, 2 [dois] anos, legalmente, em território nacional, tem direito ao reagrupamento familiar com os membros da família que se encontrem fora do território nacional, nos termos do artigo 99.º, que, comprovadamente, com ele tenham vivido noutro Estado ou que dele dependam, independentemente de os laços familiares serem anteriores ou posteriores à entrada do residente”.
“Ainda em sede de reagrupamento familiar, […] o pedido de autorização de residência para o reagrupamento familiar deve ser decidido no prazo de nove meses, podendo, em circunstâncias excecionais associadas à complexidade da análise do pedido, tal prazo ser prorrogado pelo órgão competente para a decisão final, por igual período, sendo o requerente informado da prorrogação, e terminando com o mecanismo de deferimento tácito previsto na legislação vigente.
No atinente às condições de exercício do direito ao reagrupamento familiar, são introduzidos “novos conceitos indeterminados, cuja densificação é enformadora do próprio direito”, mas toda ela é remetida “para mera Portaria do Governo”. E, determina-se “o estabelecimento de uma data-limite à possibilidade de recorrer ao aludido regime transitório, na parte introduzida pela Lei n.º 40/2024, de 7 de novembro, tendo sido cumprido, no entender do governo, o propósito do regime transitório constante dos n.os 2 e 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 37-A/2024, de 3 de junho, na sua atual redação”.

Por último, adita-se à lei atual o artigo 87.º-B, atinente à tutela jurisdicional, que estabelece: “as ações judiciais relativas às decisões ou omissões da AIMA, IP [Agência para a Integração, Migrações e Asilo] revestem a forma de ação administrativa, nos termos do artigo 37.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos [CPTA], sem prejuízo do recurso à tutela cautelar, nos termos gerais”; “só é admissível o recurso à intimação para a proteção de direitos, liberdades e garantias, quando, além dos pressupostos referidos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a atuação ou omissão da AIMA, IP, comprometa, de modo comprovadamente grave, direto e irreversível, o exercício, em tempo útil, de direitos, liberdades e garantias pessoais, cuja tutela não possa ser eficazmente assegurada, através dos meios cautelares disponíveis”; e, “na decisão a adotar no processo de intimação, em caso de ausência atempada de atuação da AIMA, IP, o juiz deve ponderar, se requerido, o número de procedimentos administrativos que correm junto daquela entidade, em face de eventuais pressões anormais de pedidos e solicitações, os meios humanos, administrativos e financeiros disponíveis, que é razoável esperar, bem como ter em conta as consequências que possam resultar da intimação para o tratamento equitativo de todos os requerimentos dirigidos à AIMA, IP.”
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Embora a fiscalização preventiva se concentre na análise da conformidade com a Constituição, não apreciando a legalidade, o PR refere, pertinentemente, que este “processo legislativo foi tramitado na AR, de forma urgente, não tendo havido – efetivas – consultas e audições, nomeadamente, audições constitucionais, legais e/ou regimentais – obrigatórias ou não –, ou, quando solicitadas, foram-no, sem respeito pelos prazos legalmente fixados e/ou, em prazos incompatíveis com a efetiva consulta”. “Algumas estão consagradas como obrigatórias”, aduz o PR, “em preceitos legais, como é o caso da audição ao Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais […]; da consulta ao Conselho Superior da Magistratura […], bem como à Ordem dos Advogados e ao Conselho Superior do Ministério Público […]”; e outras audições e consultas haveria a organizar, nomeadamente, com entidades direta e/ou indiretamente relacionadas com estas matérias, que, não sendo legalmente obrigatórias, se justificariam para garantir a legitimidade democrática da lei e para antecipar problemas.

submeteu, com caráter de urgência, à apreciação do Tribunal
Constitucional o Decreto n.º 6/XVII da Assembleia da República.
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Além disso, introduz-se ou altera-se um conjunto significativo de conceitos de natureza indeterminada ou, pelo menos, de difícil (ou, mesmo, impossível) determinação concreta, remetendo-se a regulamentação, em algumas das situações, para mera Portaria do Governo, alargando o âmbito de densificação dos conceitos, por esta via”. “Tais conceitos”, sustenta o PR, podem “dificultar a aplicação da Lei, não contribuindo para a necessária e desejadas segurança jurídica e certeza do Direito, princípios constitucionalmente garantidos”, podendo gerar “tratamento diferenciado e discriminatório” e “aportando um risco acrescido e considerável de litigância numa matéria fundamental e de grande importância para o nosso país e para os interessados. E, “numa matéria com esta sensibilidade, não é de todo aconselhável que exista indefinição conceptual e recurso a conceitos indeterminados, potencialmente violadores do princípio constitucional da segurança jurídica”.
Trata-se de “matéria de elevada sensibilidade política, social e jurídica, sendo indispensável assegurar, com urgência, a segurança jurídica e a certeza do Direito, relativamente ao dispositivo legal aprovado, evitando potenciais tratamentos diferenciados e discriminatórios, tendo ainda em conta que o governo considera imperioso e urgente regular esta matéria”. Além disso, “restringe-se o recurso ao reagrupamento familiar” aos “membros da família, menores de idade, que tenham entrado, legalmente, em território nacional e que aqui se encontrem”, impossibilitando o reagrupamento de outros membros que já se encontrem em território nacional, “designadamente, os cônjuges e equiparados”, já que, para estes, surge o período de espera de dois anos de residência legal, para que o titular da autorização possa iniciar o pedido.

Flexibilizam-se os critérios de reagrupamento familiar para os titulares de autorização de residência concedidas ao abrigo dos artigos 90.º, 90.º-A, e 121.º-A da lei em vigor, permitindo aos titulares do direito ao reagrupamento familiar reagrupar “os membros da família, que tenham entrado, legalmente, em território nacional e que aqui se encontrem”, ao invés do que se estabelece para os titulares de outras autorizações de residência. E acrescenta-se novo encargo ao titular do direito ao reagrupamento: a espera de dois anos, após a atribuição de título de residência para agrupar outros membros da família que, comprovadamente, com ele tenham vivido noutro Estado ou que dele dependam, independentemente de os laços familiares serem anteriores ou posteriores à entrada do residente. Ora, como aduz – e bem – o PR, tais alterações, incidentes sobre um mecanismo essencial para a integração em sociedade e para a vida em família, parecem restringir, de forma desproporcional e desigual, o princípio da união familiar, podendo não acautelar o superior interesse da criança, forçada a lidar com separações prolongadas. Contrariando os objetivos do decreto, tais alterações “podem, potencialmente, provocar o aumento dos percursos migratórios irregulares, por parte de outros membros da família que passam a estar excluídos do direito ao reagrupamento, como é o caso do cônjuge. E “acresce que as crianças merecem também especial proteção em instrumentos de direito internacional e regional dos quais Portugal é Estado-parte”, alega o chefe de Estado.

Já a flexibilização dos critérios de reagrupamento familiar para os titulares de autorização de residência concedidas ao abrigo dos artigos 90.º, 90.º-A, e 121.º-A da lei em vigor “pode contribuir, pelo diferente tratamento, para uma maior estratificação entre pessoas migrantes, em função da respetiva qualificação e setor de atividade, afastando-se da referida Diretiva 2003/86/CE do Conselho” e “comprometendo o princípio da igualdade e o princípio da não discriminação, consagrados no artigo 13.º da Constituição”. Por outro lado, “o diploma não altera o tratamento mais favorável de reagrupamento familiar aplicável a refugiados, requerentes de asilo e beneficiários de proteção internacional, o que parece adequado, dado tratar-se de um regime próprio”.

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Ainda quanto ao exercício do direito ao reagrupamento, introduzem-se “novos conceitos indeterminados, cuja densificação é enformadora do próprio direito ao reagrupamento familiar”. E sua remissão para portaria pode invadir a reserva de competência legislativa reservada da AR.
Aumenta-se, para o triplo, o prazo de decisão relativo ao pedido de autorização de residência para o reagrupamento familiar, eliminando a possibilidade de deferimento tácito. Tal significa que “reagrupar um familiar, em Portugal, poderá demorar, no mínimo, cerca de três anos e meio, período exigente, face às decisões administrativas a tomar, violador do princípio da união familiar e do superior interesse da criança, desrespeitador do princípio da celeridade administrativa e, potencialmente, desproporcional, com eventual violação dos princípios da igualdade, da proporcionalidade e da união familiar – princípios protegidos constitucionalmente.
Mais: “a possibilidade de prorrogação do prazo decorre do já referido conceito indeterminado (“circunstâncias excecionais associadas à complexidade da análise”), que poderá permitir à administração a eventual prorrogação sem fundamentação objetiva e potenciadora de decisões discricionárias e desiguais.”
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No atinente ao referido artigo 87.º-B, introduzido na fase final do processo legislativo, é de referir que se trata de “disposição, de natureza eminentemente técnica e com uma redação formalmente complexa”, que “parece limitar – no seu n.º 2 – o uso da ação especial de intimidação para a proteção de direitos, liberdades e garantias”, prevista no artigo 109.º do CPTA, além dos pressupostos constantes no referido artigo. Ou seja, apenas será legítima quando “a atuação ou omissão da AIMA, IP, comprometa, de modo comprovadamente grave, direto e irreversível, o exercício, em tempo útil, de direitos, liberdades e garantias pessoais, cuja tutela não possa ser eficazmente assegurada, através dos meios cautelares disponíveis”. E tal limitação e a imposição de critério adicional e de difícil definição (“grave, direto e irreversível”) parecem contrariar o disposto nos n.os 1, 4 e 5 do artigo 20.º da Constituição, que “garantem a todos o direito a acesso efetivo e célere aos tribunais, “para defesa dos seus direitos fundamentais, incluindo tutela urgente, quando estejam em causa direitos, liberdades e garantias”.

A redação do n.º 3 do artigo 87.º-B “parece introduzir uma subordinação dos direitos, liberdades e garantias a constrangimentos operacionais, nomeadamente, da AIMA, I.P., o que parece atentar, de forma direta, os princípios constitucionais de acesso à justiça, da igualdade, da celeridade administrativa e da tutela jurisdicional efetiva, bem como da proporcionalidade, consagrados, respetivamente, nos artigos 20.º, 13.º 18.º e 266.º da Constituição da República Portuguesa.
Coloca-se, por fim, “a questão da compatibilização destas normas com o Direito da União Europeia, tendo em conta, nomeadamente, que a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no artigo 47.º, consagra o direito a uma proteção jurisdicional efetiva, especialmente, quando estejam em causa decisões administrativas em matéria de imigração e asilo”.
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É de aplaudir a presente atitude política e humana de Marcelo Rebelo de Sousa. Além do seu papel de garante do cumprimento da Constituição, mostra, como poucos, o zelo pela proteção da família, seja ela de que tipo for, e pelo superior interesse das crianças; o zelo pelos valores constitucionais, como a igualdade, a não discriminação, a não duplicidade de tratamento, o direito de todos ao acesso aos tribunais, a proporcionalidade, a segurança jurídica, a certeza do Direito e a celeridade administrativa; e está a restituir a voz às entidades que deviam ter sido ouvidas.
Porém, se o TC validar o decreto em termos da constitucionalidade, é de lembrar a prerrogativa presidencial do veto, em resultado de uma avaliação política, sobretudo, em nome da legalidade não observada.

Sabe-se que não está em causa apenas esta lei. A Lei da Nacionalidade enferma de atropelos análogos. E, além disso, o PR está numa linha de crítica à situação decorrente da discrepância entre os dados, sobre a população, do Instituto Nacional de Estatística (INE), utilizados pelo governo, e os da AIMA, IP, não sendo tidos em conta os números atinentes à imigração. E, por isso, equacionou a questão da antecipação dos Censos, no que parece não estar com apoios, apear do suposto falhanço dos métodos e contagem do INE.
Enfim, temos um Presidente com um vincado laivo de humanismo e de tacto político, na reta final do mandato. Bem-vindo, pois, ao clube dos críticos!
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28/07/2025