Cinema e o Festival de Veneza 2024
Era a década dos anos 70 e lembro-me de ter lido um artigo que, naquele momento, falava do Festival Cinematográfico de Veneza1, nessa data com quase 50 anos, como um baile de fantasmas num encontro no qual parecia festejar-se o fim do cinema ou a morte do cinema!
É muito difícil recuperar um documento desses. Apenas me fio na minha memória e no impacto que teve sobre mim, que sou e sempre fui um amante do cinema.
Porquê o autor do tal artigo falava nesses termos ulteriores? O que se passava no festival? Qual era a qualidade dos filmes? Medíocres, sem interesse, sem qualidade para participar num festival dessa categoria?
Deveria recuar no tempo e pensar, talvez, na crise pela qual atravessou todo o cinema no Mundo, com a massificação da televisão a nível mundial, com o desaparecimento de salas de exibição e com a perda progressiva do público. E na alteração do papel que o cinema tinha como elemento aglutinador da sociedade. Ou seja, do papel fundamental que o cinema tinha como difusor de discursos, de modos de vida, de pensamento global, de modelo crítico da sociedade. Entre outros aspectos, deveria ainda considerar a transformação do papel de difusor de novas tecnologias, de novos pensamentos e de uma forma de encarar o futuro da Humanidade.
Lembremos, apenas, o filme “2001: Odisseia do Espaço” (de 1968), produzido e dirigido por Stanley Kubrick, que nos colocava trinta anos à frente do nosso tempo, numa viagem espacial e virtual desde o início, com o nascimento do “Homo faber” (que significa “homem que faz”). Até como estava prometido no título do filme, é uma odisseia espacial que atravessa, na parte final, tempo e espaço… Salto temporal que se dá, cinematograficamente, naquela magnífica imagem do osso lançado pelo primata, numa elipse de mais de quatro milhões de anos, dando passo a uma nave que viaja no espaço, em 1999, entretanto acompanhada musicalmente pelo tema da valsa “Danúbio Azul”, de Johann Strauss (filho).
Neste ano, celebrou-se o 81.º Festival Internacional de Cinema de Veneza. Um festival que nasceu sob o signo do fascismo italiano. Benito Mussolini e os seus correligionários criaram este festival que, antes da Coppa Volpi2, chegou a ter um prémio com o nome do ditador italiano.
Tanto o fascismo italiano como o nazismo alemão valorizaram o papel do cinema como instrumento de propaganda. Também em Portugal, na época salazarista, o cinema foi instrumento de poder!
O festival, neste ano (de 28 de Agosto a 7 de Setembro, realizado no Lido de Veneza), parece ter estado cheio de vida, longe do espectro fantasmal enunciado no começo deste artigo.
Aclamação entusiasta, por parte do público presente, recebeu a última película de Pedro Almodóvar, com interpretação de Julianne Moore e de Tilda Swinton. Foi uma ovação de 18 minutos e 36 segundos (como foi divulgado na comunicação social), que augurava o melhor. Almodóvar conquistava o seu primeiro Leão de Ouro neste festival.
Pela beleza da abordagem, não posso deixar de transcrever um excerto do texto crítico intitulado “Pedro Almodóvar movimenta o Festival de San Sebastián com ‘The Room Next Door’, seu primeiro filme em inglês com estrelas de Hollywood”, da autoria de Manu Yanez, acessível na publicação Fotogramas.es e que se segue, situando o ponto de partida para esta obra cinematográfica:
“As histórias de mulheres geralmente são histórias tristes.” Esta frase transparente e dolorosa, com a qual a escritora nova-iorquina Sigrid Nunez decidiu abrir um dos capítulos do seu romance ‘Qué es tu tormento’, pode ser lida como uma definição mais do que pertinente do universo de Pedro Almodóvar. Dito isto, não deveria surpreender que o romance em questão tenha gerado um filme como ‘The Room Next Door’, um dos filmes mais transparentes e dolorosos do cineasta La Mancha. A história imaginada por Nunez – em que uma mulher doente com câncer pede a um amigo que a acompanhe na última jornada de sua vida – pousa de forma clara no imaginário do cineasta la Mancha, dando origem a uma obra que persegue seus significados com determinação e serenidade, alcançando a sabedoria de quem ousa olhar diretamente para o abismo da existência – “o sentido da vida é que ela pára”, disse Kafka.
Almodóvar é, sem dúvida, um dos realizadores que melhor aborda e que tem considerado o mundo feminino. Basta referir os títulos de algumas suas obras nas quais a mulher aparece sempre em destaque: “Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão”, “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, “Kika”, “Tudo sobre a minha mãe”, “Saltos Altos” (“Tacones Lejanos”), “Fale com Ela”, “A Flor do Meu Segredo” e “Mães Paralelas”.
Almodóvar é um cineasta comprometido com o seu tempo e utiliza o seu cinema como uma arma de denúncia. Não é panfletário, é um criador sublime que muitos críticos já compararam com Douglas Sirk (1897-1987), um dos grandes realizadores da História do Cinema.
Recorrendo, novamente, à publicação digital Fotogramas.es, em que João Silvestre e Javier Días Salado assinam o artigo Discurso histórico de Pedro Almodóvar: “O ser humano deve ser livre para viver e morrer quando a vida é insuportável”, registamos algumas declarações de Pedro Almodóvar:
“Este filme fala sobre empatia e generosidade. Sobre esta amizade, sobre ajuda, mas o meu filme é também a resposta ao discurso de ódio que ouvimos todos os dias em Espanha e no mundo […]”
“O Quarto ao Lado é o oposto desses discursos, e a minha mensagem é criticar os ataques da extrema-direita na questão da migração. Assim como a personagem de Ingrid abre os braços, façamo-lo às crianças desacompanhadas que lutam para chegar às nossas fronteiras e para quem a extrema-direita espanhola quer que o governo envie à Marinha/Exército para as impedir de entrar. Querem transformá-los em invasores. É delirante, é estúpido e tão injusto. […] O que proponho é o contrário, que se pudermos fazer algo neste mundo tão complexo e tão cheio de perigos, vamos fazê-lo.”
Notas:
1 – Fundado por Giuseppe Volpi, membro do Partido Nacional Fascista, em Veneza, no mês de Agosto de 1932, o festival faz parte da Bienal de Veneza, que é uma das exposições de arte mais antigas do Mundo, criada pela Câmara Municipal de Veneza, em 19 de Abril de 1893. Como lemos na Wikipédia, a gama de trabalhos na Bienal de Veneza abrange, agora, arte italiana e internacional, arquitectura, dança, música, teatro e cinema. Essas obras são experimentadas em exposições separadas: a Exposição Internacional de Arte, o Festival Internacional de Música Contemporânea, o Festival Internacional de Teatro, a Exposição Internacional de Arquitectura, o Festival Internacional de Dança Contemporânea, o Carnaval Infantil Internacional e o Festival Anual de Cinema de Veneza, que é, sem dúvida, o mais conhecido de todos os eventos.
2 – Coppa Volpi é, como explica a Wikipédia, o principal prémio entregue anualmente aos melhores actores e actrizes no Festival de Cinema de Veneza. O nome é uma homenagem ao italiano Giuseppe Volpi, um dos fundadores do Festival. A atribuição de prémios é realizada desde 1934.
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26/09/2024