Com Ariana Furtado: professora e tradutora
“A tua voz é uma almofada”, confidencio-lhe. Mas é claro que não sou o primeiro a avançar tal informação. Já teve, inclusive, quem lhe tivesse sugerido tratar-se de “qualquer coisa entre o suave e o erótico”. Ameacei que iria colocar isto no texto e concordámos, entre gargalhadas congénitas, que seria o melhor parágrafo de abertura.
Escrevo, por isso, de olhos quase fechados, porque me cativa esse timbre manso, mansinho, esponjoso. Nascida em 1976, na ilha de Santiago, em Cabo Verde, a minha conterrânea fez a sua primeira grande viagem bem bebezinha, com apenas 15 dias de vida. Inicialmente, a família estabeleceu-se nos Olivais, em Lisboa e, posteriormente, mudou-se para a Margem Sul, onde então cresceu, entre o Feijó e Miratejo, lugares que ela, carinhosamente, apelida de “seu chão português”.
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Sem torcer o pepino
A infância foi marcada por uma felicidade genuína, à cabo-verdiana, num bairro que era uma cachupada das ricas: famílias africanas, famílias portuguesas (sobretudo, da região do Alentejo) e muitos retornados das ex-colónias. “Esta diversidade foi determinante para que, cedo, aprendesse que os seres humanos são diversos. Desde pequena, sempre cresci num ambiente multicultural”, diz-me.
Na escola, a heterogeneidade também se fazia valer, com turmas constituídas por alunos de diferentes origens. Do mesmo modo, ela garante que teve professores excelentes, muito atentos às suas necessidades e que incutiram nela, principalmente na adolescência, uma forte vontade de estudar e de conhecer mais. A forma como foi educada e ensinada contribui, em grande medida, para a professora que é hoje. “Recordo-me, por exemplo, de uma professora angolana que nos levava, muitas vezes, para fora da escola para vermos concertos de música clássica ou peças no Teatro Municipal de Almada. Isso nos ajudou a ter uma visão mais ampla do Mundo, a entrar em contacto com diferentes formas de arte e diferentes maneiras de expressão”, conta ela.
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O fel do racismo
Fortemente incentivada pelos seus docentes, acabou por participar no programa Erasmus (European Region Action Scheme for the Mobility of University Students), na Bretanha, e concluir os estudos na França, tendo tão rapidamente a sua primeira experiência como professora em Lyon, por um ano. Este período foi um marco na sua vida, pois foi aí que se deparou com o facto de ser uma professora negra ensinando Português a alunos maioritariamente brancos, enfrentando olhares discriminatórios que questionavam constantemente a sua posição. “Em termos pessoais, esta foi a primeira vez que lidei, de uma forma explícita, com racismo institucional”, observa. Nesta mesma época, relembra um episódio francamente lamentável: “Indo de férias, de autocarro, com uma amiga para a República Checa (actual Chéquia), no controlo de passaporte, fui a única interpelada pela polícia. Pararam-nos do meio da noite. Desconfiavam que eu não era, efectivamente, portuguesa e puseram-me a fazer um teste da Interpol.”
É inevitável falarmos sobre esta condição de ser uma mulher negra num mundo racista e racializado. “Durante o meu curso de Português e Francês, fui a única aluna negra. Sempre tive quadros de excelência, fruto de muita dedicação e estudo. Sempre senti uma pressão constante para não falhar. Só recentemente percebi que esse nível de exigência, que tenho e tinha comigo mesma, vinha do facto de ser a única negra aqui, a única negra ali. É como que se, inconscientemente, sentisse que tinha quase uma obrigatoriedade de preformar sempre mais”, manifesta Ariana Furtado.
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Atrás das grades
Colecciona boas memórias sobre o seu percurso como professora, que começou cedo, aos 21 anos. De muitas coisas, partilhou a memória do ano lectivo de 2001-2002, quando foi destacada para ensinar nos estabelecimentos prisionais de Lisboa, onde se deparou com as duras realidades do sistema prisional e com a alta taxa de encarceramento de pessoas negras. Recorda, com tristeza, que as baixas expectativas da administração prisional e dos guardas eram reptos constantes, mas que nunca a demoveram de tentar, ao máximo, contribuir para aquilo que diz ser a verdadeira missão de um professor: estar ao serviço dos seus alunos.
“Activista, não…”
“Activista, não!”, demarca-se. Sem querer, eu já a havia chamado de activista, mas não se revê no termo. É como professora que se enuncia. “Para quem ensina, a educação antirracista é quase implícita. É mandatário no exercício de qualquer processo educativo”, afirma. A verdade é que tem sido convidada e afigurado em muitos debates, mas é a partir deste lugar que quer falar: “Coisa que, alias, é muito difícil neste país. É muito difícil nos fazer ouvir. Muito difícil conseguirmos falar. O que tenho feito é tentar estar, cada vez mais, disponível para estas pautas.”
Sente que a sua geração está a reivindicar. Que está a apontar falhas e caminhos para as mudanças. Que está a ter um pouco mais de voz. “Isto é importante para deixarmos um legado. Não podemos continuar a ser um país dos Descobrimentos. Não podemos continuar com uma educação que não seja critica e autorreflexiva. Somos todos diferentes. Existe uma comunidade negra muito expressiva, que faz parte e também construiu este país. Mas a nossa principal dificuldade é a mobilização. Tudo é entendível, pois, nós somos a mão- de-obra do país. Levantamos de madrugada. Muitos de nós têm dois ou três empregos. Dormimos tarde. Não temos dinheiro para pagar explicações extras aos filhos! Somos nós que chegamos à noite cansadíssimos, que não temos força nem tempo para sair à rua para lutar. A minha geração está a conseguir travar lutas, ocupar espaços e, sobretudo, abrir caminhos para que outros somem e para que possamos construir outros futuros!”, declara Ariana Furtado.
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Uma nova paixão
Recentemente, uma nova chama se lhe acendeu: a tradução. Tem-se dedicado ao segmento infantil, por ora, de autores africanos. “Já tinha feito traduções, mas sempre no âmbito técnico. Traduzir um livro é mágico. É um desafio constante reinterpretar o que está escrito. Nunca imaginei o quão fascinante poderia ser transpor para outra língua aquilo que os autores fazem tão bem, ao nos colocar num estado de imersão, atravessados pelas imagens que vamos criando a cada frase. Esse desafio tem sido admiravelmente aliciante”, expressa Ariana Furtado.
Até agora, já lá foram quatro títulos: “O Senhor da Dança” e “O Grão de Milho Mágico”, ambos de Véronique Tadjo, juntamente com “O Colar Mágico” e “O Camaleão que se Achava Feio”, dois livros de Souleymane Mbodj.
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25/07/2024