Com Líria de Castro
Pense numa verdadeira humanista. Líria de Castro nasceu em Luanda e é por lá que tece as tramas do importante movimento de que falaremos abaixo. Desde tenra idade, demonstrou uma profunda “paixão pelos seres humanos”, uma característica que se denota no primeiro contacto que se tem com ela. Há um je ne sais quoi de genuinidade e de encantamento na sua oratória que denunciam bem isso.
Por essas razões, resolve estudar Relações Internacionais: uma “escolha natural” para alguém sempre interessada em entender o funcionamento interno dos organismos institucionais e de que forma as teias das relações globais (sobretudo, no que concerne à administração dos recursos económicos) se tornam agências de biopoder.
Conversamos sobre a sua função de directora-coordenadora da organização não-governamental (ONG) Arquivo de Identidade Angolano (AIA) – um coletivo de mulheres feministas LBTIQ (Lésbicas, Bissexuais, Transgénero, Intersexo e Queer) angolanas, criado em 2017, no intuito de celebrar as múltiplas identidades das mulheres angolanas.
A missão da ONG é clara: garantir que as comunidades LGBTIQ+, em Angola, sejam respeitadas e tenham os seus direitos assegurados por lei. Isso não é apenas um desafio legislativo, mas uma batalha contra o preconceito que assombra todas as camadas da sociedade.
Mas ignorância com educação se paga. A AIA dedica-se a criar conteúdos educativos sobre género e sexualidade, direcionados não apenas para adolescentes e jovens, mas também para públicos estratégicos como políticos, educadores, profissionais dos media e da saúde. A sensibilização também se estende a escolas e a comunidades, de forma a fomentar atitudes de tolerância e de respeito, desde cedo, moldando uma geração mais aberta e inclusiva.
Empoderar jovens mulheres LBTIQ+ é outro pilar fundamental da AIA. Por meio de rodas de conversas, formações e ações de capacitação, estas mulheres são preparadas para assumir papéis de liderança social, política, cultural e económica. “Este empoderamento não só fortalece as comunidades LBTIQ+, mas também enriquece a sociedade angolana como um todo, trazendo novas perspetivas e soluções para os desafios contemporâneos”, afirma.
A criação de um espaço seguro de acolhimento para as comunidades LGBTIQ+ é um serviço vital oferecido pela AIA. Num contexto em que a discriminação e a violência ainda são uma realidade diária, oferecer um refúgio seguro é um ato de resistência e de humanidade.
Talvez um dos aspetos mais revolucionários do trabalho da AIA seja sua abordagem interseccional. A organização reconhece que a luta por igualdade não pode ser fragmentada. Questões de género, de sexualidade, de raça, de classe e de capitalismo estão interligadas. Só uma visão feminista que questiona o hetero-patriarcado e que reconhece que os seus tentáculos flutuam em todas os âmbitos da vida pode levar a uma transformação seminal.
Outra coisa que me chamou muito a atenção é a forma como tem vindo a trabalhar para visibilizar as identidades LGBTIQ+ como parte integrante da História e da Cultura africana e angolana. Estudos históricos e antropológicos têm mostrado que estas identidades sempre fizeram parte do tecido social africano, e a AIA está comprometida em trazer essas narrativas à luz. Esta visibilidade não apenas desafia as narrativas tradicionais, mas também fortalece a identidade nacional angolana ao abraçar toda a sua diversidade. As provas são dadas: um arquivo dinâmico e orgânico de conteúdos sobre género e sobre sexualidade que serve como uma fonte viva de referência, preservando a memória e as histórias das pessoas LGBTIQ+, garantindo que as suas experiências e lutas sejam reconhecidas e respeitadas.
No entanto, o caminho não tem sido fácil. A organização enfrenta desafios consideráveis, especialmente nos processos de legalização, que frequentemente dificultam o seu acesso a espaços públicos e de poder. A burocracia administrativa, as barreiras culturais e o pouco envolvimento governamental na luta contra a discriminação são obstáculos contínuos.
“A homossexualidade e as questões de identidade de género são, muitas vezes, vistas como contrárias aos valores culturais angolanos, o que faz com que muitas mulheres LBTIQ+ não se sintam seguras para compartilhar suas experiências. Para enfrentar esses desafios, é necessário rever a atual lei de violência doméstica para incluir a violência de género e fornecer uma resposta adequada à violência enfrentada pelas pessoas LGBTIQ+, especialmente dentro da família. Além disso, há uma necessidade urgente de procedimentos que facilitem o acesso à justiça, incluindo treinamentos sobre orientação sexual e identidade de género, e programas de combate ao estigma e à discriminação que sejam informativos e não difamatórios”, defende Líria de Castro.
É uma luta diária, mas que traz também ganhos, “como a inclusão de tópicos sobre orientação sexual e identidade de género nos currículos escolares (crucial para combater o bullying e promover um ambiente escolar mais inclusivo); a entrada em vigor do novo código penal angolano, em 11 de fevereiro de 2021, que penaliza a discriminação com base na orientação sexual)”.
Este avanço legal, junto com o reforço de parcerias nacionais e internacionais e a angariação de pequenos fundos para as organizações LGBTIQ+ são vitórias que acalentam a luta pelo direito de existir e de amar.
Líria de Castro pediu licença para ir tirar umas fotos com um vestido elegantíssimo para esta matéria. Arrasou!
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27/06/2024