Com Renato Noguera: “O amor é um dos meus assuntos preferidos”
Um carioca de 1972, residente em Duque de Caxias, Renato Noguera é um dos principais expoentes do pensamento filosófico brasileiro contemporâneo. Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, possui uma atuação marcante na intersecção entre o academismo, a publicação literária e o YouTube. A sua trajectória intelectual é ancorada em temáticas fundamentais como o Ensino de Filosofia aliada aos conteúdos de História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena, além de investigações sobre ética, política e subjetividade. Trabalhando sob as lentes críticas de Foucault e de Deleuze, ele explora questões como racismo, biopoder, devir negro, ampliando-se também por temas como as políticas e operações do afeto e estudos sobre o Amor.
Djam Neguin – sinalAberto (sA) – Caro Renato Noguera, nas pesquisas que fiz na Web, o seu perfil biográfico é muito focado na sua trajectória académica e no seu míster profissional. Porém, muito me interessa saber mais sobre o mini Renato: como foi que as vivências da sua menineza contribuíram para os caminhos que moldam o que, hoje, é?
Renato Noguera (RN) – Obrigado por essa questão. Eu fui Renatinho, Renato Junior, Renato Nogueira Jr. e, hoje, sou Renato Noguera. Mas, especificamente, o Noguera, professor universitário, pesquisador, vivência familiar griô. Enfim, a minha meninice foi no tradicional bairro de Oswaldo Cruz.
Eu estudei na Escola Municipal Waldemiro Potsch até ao final da primeira etapa do ensino fundamental. Na sequência, fui para o Colégio Pedro II. Eu fui um menino que gostava de livros e de discos. Meu pai era vendedor de livros e colecionava discos, gostava de poesia. A minha mãe era muito zelosa e preocupada com a educação, uma leitora incansável. Até os 12 anos, convivi com a minha avó materna, Dona Elvira. No mesmo quintal, também com o meu avô materno, Seu Wilson, até ao final da minha graduação em Filosofia, aos 21 anos.
A minha avó paterna, Dona Maria de Lourdes, veio da Bahia morar no Rio de Janeiro. Ela pode pegar minha filha mais velha no colo antes de ancestralizar. Mas, voltando ao menino Renatinho, eu vivi muitos mundos. Minha avó materna era empregada doméstica de uma família carioca de classe média alta. Nas minhas férias e em alguns fins de semana em que ela fazia hora extra, ela me levava junto. O pai empresário, a mãe profissional liberal, a filha única era minha amiga de brincadeiras, num condomínio da Grande Tijuca, no final dos anos 1970 e no início da década de 1980. Enquanto a minha avó trabalhava, eu ficava brincando com a filha da patroa. O jantar tinha talheres de prata, garfo de peixe, cardápio rebuscado.
No mesmo fim de semana, visitava a minha avó paterna, a minha tia, irmã do meu pai, o meu tio, prima e primos e comia de colher com a turma. Na mesma semana, eu comia camarão, lagosta, feijoada, ovo frito, moqueca. Num dia, com gente rica e branca. No outro, com os meus familiares.
A minha meninice foi vendo o patrão da minha avó que usava terno, o meu tio que andava com a camisa de botão aberta quase até ao umbigo e cordão de São Jorge. Na minha meninice, também tive oportunidade de ter uma avó rezadeira, outra mãe de santo de umbanda e a minha tia, irmã da minha mãe, iniciada no candomblé. O meu pai sugeriu que eu e o meu irmão Marcelo fizéssemos a primeira comunhão na Igreja Católica. Eu fiz na Igreja de São Braz, no bairro de Madureira. Mas, isso não impediu que estivesse nos terreiros de umbanda e de candomblé. E, pouco tempo depois, com a minha mãe convertida ao budismo, eu pude frequentar e aprender o universo do budismo japonês de Nitiren Daishoni. Portanto, eu tive uma meninice muita rica. Além de uma formação cultural religiosa diversa, eu aprendi muito com as histórias do meu avô paterno, que ele aprendeu com o avô dele e me conectou com o continente africano décadas depois, especificamente com griots (griôs).
sA – Conheci o seu trabalho durante o confinamento da pandemia, em 2020, através do YouTube. Na época, penso que fui duplamente impactado. Por uma oratória pop da Filosofia e outros temas robustos, mas também por ser produzida por um corpo negro masculino. Como e quando foi para você esse percebimento de que essa era uma plataforma que queria habitar e de que desenvolver essa habilidade de comunicação era um complemento ou desdobramento viável do seu campo de produção profissional?
RN – Eu não planejei. Eu tinha três mil seguidores no Instagram e nem me recordo de quantos eu tinha no YouTube, em 2020, mas não passava disso também. No final de 2024, somando essas duas redes, eu passava de 200 mil. O marco foi, sem dúvida, o livro “Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor” (Editora Harper Collins, em 2020), que contou com o prefácio generoso de Djamila Ribeiro, além de lives com ela e com Leandro Karnal sobre esse trabalho. Eu já tinha outros livros publicados, mas este – sem dúvida – foi um divisor de águas, sublinho. 25 anos antes de publicar, aos 23 anos, enquanto estava escrevendo a minha dissertação de mestrado, preparei um trabalho, baseado na filosofia de Schopenhauer, para um seminário. O estudo era homónimo de livro do filósofo: “A metafísica do amor sexual”.
Alguns anos depois, como jovem doutor em Filosofia, iniciei uma jornada maravilhosa com cursos livres na Casa do Saber. Isso foi bem antes da pandemia e os cursos eram presenciais. Um dos mais procurados se chamava “Quatro lições sobre o amor”.
O livro surgiu do curso, após articulação de Renata Sturm, gerente editorial da Harper Collins, na época. Outro fator que se tornou uma grata surpresa foram as doces recepções públicas em redes sociais, de muitas pessoas: uma desconhecida no avião, um rapaz na fila do supermercado e até a apresentadora Astrid Fontenelle, na época ela era âncora do programa “Saia Justa” (no canal de televisão GNT/Globo). Eu recebia mensagens como “o seu livro me incentivou a casar” e, no mesmo dia, “o seu livro foi muito importante, porque me deu coragem para terminar meu casamento”. Sem dúvida, foi a partir do livro – que tem um dos meus assuntos prediletos, quiçá, o que eu mais gosto de pesquisar e de apresentar: o amor – que percebi a relevância de fazer parte desse território com responsabilidade, divulgando coisas em que acredito. Sem contar que o amor é um dos meus assuntos preferidos.
sA – Apesar de um leque sortido de obras, até então, só tive a oportunidade de ler “Por que amamos”. Uma produção ensaística que traça reflexões a partir de mitologias e de filosofias de vários tempos e culturas, e que propõe um estudo multidisciplinar sobre o entendimento do Amor.
Em “Amor e Descolonização dos Afetos”, o Renato fala sobre a necessidade de descolonizar o amor. Como as estruturas coloniais moldaram os nossos modos de amar e de relacionar? E que estratégias sugere para promover um amor que seja livre dessas influências opressoras?
RN – Não existe uma receita que funcione da mesma forma, com a mesma intensidade para todas as pessoas. Nós podemos falar em princípios. Um deles é escutar-se a si mesmo, desfrutar de uma intimidade consigo, não falsear as coisas que sente para agradar ao que você gostaria de ser para ser uma pessoa mais amada. É importante reconhecer a gramática colonial dos afetos e, sem pressa, ir se desintoxicando.
sA – A respeito de amor e identidades negras, de que forma o racismo impacta as relações amorosas das pessoas negras, e como a reconstrução do amor pode se tornar uma ferramenta de resistência e de empoderamento?
RN – A dimensão afetiva do racismo é muito poderosa. Ela que lança pessoas negras em “performances” perigosas, que vão desde a mulher “sexy” até ao homem bem dotado, passando por diversos tipos, todos ligados ao desempenho sexual poderoso. O que pode gerar confusões entre o corpo que pode ser apenas desejado sexualmente e o perfil que está para além do “simples desejo” e que pode ser alvo do amor verdadeiro. O racismo dificulta experiências afetivas integrais. O amor pode se tornar uma ferramenta de resistência e aumento das nossas potências através do aquilombamento, levando a frequentar e a viver em espaços com segurança psicológica, onde não seja necessário ficar se defendendo do racismo, seja ele ostensivo ou sutil.
sA – No que toca à diversidade nos modos de amar, quais são os maiores desafios que as sociedades contemporâneas enfrentam ao tentarem reconhecer e validar formas não-normativas de amor, como as relações poliamorosas ou cuír (qweer)?
RN – São muitos os desafios, sem dúvida. Dá uma dissertação de mestrado ou uma tese de doutorado [risos]. Pois bem, os desafios são:
1.º) legais, não temos legislação para lidar com formatos de relacionamentos que não sejam monogâmicos;
2.º) conservadorismo e a estigmatização social que paira sobre pessoas que não querem se enquadrar na mononormatividade, o que implica julgamentos patriarcais, invalidando experiências pessoais e as enquadrando no moralismo.
A assimetria de gêneros entra em cena. Por exemplo, um homem que trai a esposa não é julgado pejorativamente. Mesmo que seja socialmente repreendido, existe um imaginário de que ele é um grande “conquistador”, enquanto uma mulher que expresse o seu desejo por diversidade de experiências sexuais extra-par conjugal será, muitas vezes, classificada como profissional do sexo.
Por outro lado, a mulher traída é acolhida, enquanto o homem que for traído é descrito como uma pessoa fraca e recebe ofensas veladas ou até mesmo públicas com xingamentos (ou insultos) de vários tipos. Esses são, apenas, dois desafios com vários desdobramentos.
sA – A propósito de “Amor e Políticas do Cuidado”, no referido livro, o Renato Noguera sugere que o amor pode ser uma prática política. Como o conceito de “amor”, enquanto “cuidado”, pode influenciar as políticas públicas e as relações comunitárias nas sociedades modernas, especialmente em contextos de exclusão social e de desigualdade, mas também na elaboração de pautas públicas?
RN – A leitura de Sobonfu Somé pode ajudar bastante nesse arranjo. Nós precisamos de territórios de cuidado e de senso de comunidade. As pessoas que se sentem solitárias tendem a ter menos repertório para enfrentamento dos seus desafios. É preciso ampliar o espaço público, fazer dos cenários compartilhas dos territórios políticos, espaços em que as pessoas possam trocar experiências sem terem de resolver todos os seus problemas sozinhas.
sA – O Renato tem argumentado sobre a importância de incluir as filosofias e as mitologias africanas nos currículos educacionais. Como avalia o impacto da filosofia africana no desenvolvimento crítico e cultural dos jovens negros no Brasil?
RN – Nós ainda estamos pesquisando o assunto. Os dados estão sendo trabalhados. Eu não tenho essas informações sistematizadas para fornecer uma formulação consistente. A minha opinião é mais uma aposta: o impacto da filosofia africana no desenvolvimento dos jovens negros no Brasil vai ser relevante e irá ampliar o repertório crítico e o imaginário cultural.
sA – O Renato Noguera é, igualmente, autor de livros infantis como “O Mar que Banha a Ilha de Goré”. Acredita que a representatividade nas histórias infantis pode impactar positivamente a construção da identidade de crianças negras e promover uma mudança de perspectivas sobre si mesmas, desde cedo? Pode revelar-me quais são os projectos em que está mergulhado, de momento, ou que vão conhecer a sua publicação proximamente?
RN – Eu continuo pesquisando os afetos, investigando como sentimos as formas de desejo. E estou dialogando ainda com a minha editora sobre o que virá. De momento, estou mergulhado em aprender com aulas, cursos e palestras. Quando ensino, o que mais faço é, simplesmente, aprender…
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25/11/2024