Considerandos sobre família e identidade
As transformações socioeconómicas impactam as estruturas familiares e influem na subjetividade da vida e na constituição das famílias, atingindo-lhes as relações sociais, comunitárias, políticas e económicas. Tais mudanças, acentuadas desde a segunda metade do século XIX, e, depois, com o avanço capitalista, redesenham o cenário social, quanto à organização e à reprodução da vida familiar. Os estudiosos sustentam que a família, na sociedade capitalista, se perspetiva de modo a garantir a inserção no mercado de trabalho e o acesso aos bens materiais e simbólicos, como elemento central na vida dos indivíduos.
O impacto das transformações na família tem a centralidade na reprodução da vida nos âmbitos material, social e emocional. A sua inserção social e a articulação das mais diversas formas de superação de situações do quotidiano têm redefinido as relações familiares, que se movem pela busca e pela obtenção do provimento das necessidades básicas (materiais, afetivas, relacionais e de pertença). Tais mudanças provocaram diferentes formas de vida em família, pela diversidade e pelas alterações do modelo e da organização familiar.
O século XX foi marcado por duas grandes guerras, por conflitos, pela revolução global, por avanços científicos e tecnológicos e por transformações societárias decorrentes dos movimentos políticos, ideológicos, religiosos, culturais e económicos, indutores de mudanças sociais profundas e irredutíveis.
Na organização da família, observamos, há séculos, alterações ocorridas na sua constituição, de acordo com a época e com os seus valores e princípios. Porém, a partir da segunda metade do século XIX, pelo avanço do capitalismo, pela instituição da família burguesa (pai, mãe, filhos e morada independente da família de origem), pela interferência da Igreja católica (e outras) e da escola (ambas com forte presença na construção de valores familiares como instâncias normatizadoras da vida em sociedade), delinearam-se as grandes mudanças.
As décadas de 60 e 70 do século XX operaram a mudança de cenário da família, em virtude do rompimento de valores, antes tidos como inalteráveis. E os jovens lançaram-se à rutura de formas tradicionais de viver em família, pela liberalização sexual, pelas uniões consensuais, pela roupa, pela música e pelo comportamento padronizado, indiciando era de mudanças e de resistência a padrões, a atitudes e a comportamentos tradicionais.
Daí, maior liberalização sexual, tanto para heterossexuais como para homossexuais. As mulheres ganham maior liberdade, quando, na Itália, é legalizada a venda de anticoncetivos e a informação sobre o controlo da natalidade, em 1971, o divórcio, no mesmo período, e o aborto, em 1978. Cresceu o número de casais a coabitar antes do casamento. A leis permissivas facilitavam os atos proibidos e deram visibilidade a essas questões, embora as leis mais reconhecessem do que gerassem o novo clima de relaxamento sexual. Porém, instituíam uma moral consuetudinária.
Estas transformações influíram imenso no campo da cultura popular, especialmente entre os jovens. Expandiram-se as ideias e as atitudes feministas, que também reivindicavam igualdade, direito à liberdade sexual, rompimento da relação casamento-sexo-reprodução, fim da autoridade do homem na família, igualdade de direitos políticos e civis e mudanças na legislação civil e laboral. E, desde a década de 60, à escala mundial, a difusão dos anticoncetivos separou a sexualidade da reprodução e interferiu na sexualidade feminina, criando as condições para a mulher não ter a vida e a sexualidade atadas à maternidade, recriando o mundo subjetivo feminino e ampliando a ação da mulher na sociedade.
Pílula e trabalho remunerado da mulher abalaram os alicerces familiares e encetaram o processo de mudança substantiva na família, que seria ainda mais estimulada pela crise financeira, na época de expansão do capitalismo reformado e domesticado, salvo de si mesmo, que redundava num círculo virtuoso retroalimentado pelos valores ascendentes das variáveis socioeconómicas. Tudo subia: produtividade, lucro, salários, padrão de vida, segurança, estabilidade, harmonia social, prosperidade geral. Porém, o que parecia futuro brilhante e de bem-estar mudou, a partir dos anos 70, com a passagem do capitalismo monopolista à flexibilização do capital e ao retorno ao liberalismo económico, incrementado pela globalização da economia, pela expansão de empresas que, a partir da base nacional, implantam filiais no exterior, obedecendo a estratégias competitivas em escala mundial, com o peso da ciência na economia e com os avanços da tecnologia.
Passou a haver forças produtivas de crucial importância, além das macroestruturas financeiras: configuração mista, público-privada, constituída pela monumental massa de recursos concentrada em bancos centrais, grandes bancos internacionais, fundos de investimento, companhias de seguro, corporações multinacionais, fundos de pensão e proprietários de grandes fortunas.
As implicações do processo de globalização da economia, aliadas à aguda crise do mercado do trabalho, nos anos 80, criaram e acumularam expressões da desigualdade social que induziram as mulheres a ingressar no mercado de trabalho, a contribuir para o rendimento familiar e a buscar, no futuro, a elevação do nível educacional, pela necessidade de capacitação para o trabalho qualificado.
Por conseguinte, assistiu-se a transformações na organização e na constituição familiar. Os modelos vividos na sociedade e tidos como corretos e ideais, para todas as pessoas, de família tradicional, organizada de forma heterossexual, patriarcal, monogâmica e nuclear, foram cedendo a outras formas de constituir família: monoparentais chefiadas por homens ou por mulheres; ampliadas ou extensas; reconstituídas; organizadas sem vínculo consanguíneo; pessoas que moram sozinhas; famílias paralelas; e famílias constituídas por casais de sexo idêntico.
Tais mudanças fragilizam o suporte da ideologia que associa a família à ideia de Natureza, evidenciando que os factos que envolvem a família, mais do que respostas biológicas necessárias aos seres humanos, são respostas dos movimentos sociais e culturais trazidos, pelas pessoas, do contexto histórico das suas vidas. Essas interferências, inclusive as recentes, como as intervenções tecnológicas, são grandes contribuintes para a rutura da ideia de naturalidade da família (embora inegável).
Os avanços tecnológicos, voltados para a reprodução assistida ou para a anticonceção, induzem processos de mudança, viabilizando escolhas, para evitar ou provocar a gravidez, o que não seria considerado meio natural, mas que não lesa totalmente a ideia de Natureza atribuída à família, como condição biológica do ser humano, idealização muito presente no imaginário social.
A família continua a ser a mediação entre o indivíduo e a sociedade; e a valorização do grupo explica-se pelos vínculos afetivos, e não só pela constituição e organização. A escolha da família justifica-se pela sua principal caraterística, o afeto, que é a principal força que explica a sua permanência na História da Humanidade. As diferentes organizações familiares constituem-se, privilegiando os vínculos afetivos, bem como os acordos e os interesses do grupo familiar.
Outro apontamento que remete para a identidade de família está aliado à hierarquia e aos valores, pois a família nuclear tradicional define claramente os papéis dos seus membros, os quais, se alterados, geram estranheza. As identidades, essencialmente dinâmicas, criam-se e recriam-se, no fértil terreno das diferenças, das alteridades, das diversidades, num verdadeiro jogo dialético, onde pulsam identidades construídas e atribuídas. A sociabilidade é uma exigência natural.
Podemos, assim, pensar que a identidade familiar surge como processo socialmente construído. Vem composta pelo conjunto de identidades indivíduas e que, ao reunirem-se, compõem a identidade familiar, podendo constituir-se a partir da análise sócio-histórica, carregada de subjetividade e de potencialidade, num movimento incessante em que os membros da família se constroem mutuamente.
Assim, a identidade familiar também poderá formar-se a partir da organização de grupos dispostos diferentemente, como pais solteiros, mães solteiras, casais recasados, casais do mesmo sexo e outras formas, sempre na combinatória de igualdade e de diferença, em relação a si mesmo e aos outros, conjugando o afeto e a capacidade de servir.
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Vem este arrazoado epistémico a propósito do lançamento do livro “Identidade e Família – entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade” (editado pela Oficina do Livro), cuja validade não discuto, até porque tem contributos de mais de uma vintena de pessoas, algumas das quais (não todas, obviamente) de crédito reconhecido. O livro, todavia, caiu mal, pela inoportunidade temporal num país político ainda no rescaldo de eleições legislativas que, realmente, não satisfizeram as forças partidárias a que estávamos habituados. Por outro lado, vieram à ribalta as ideias mais conservadoras defendidas por alguns dos colaboradores.
Porém, o que chocou mais a opinião pública foi o facto de a apresentação ter sido confiada ao antigo primeiro-ministro do tempo da troika, pela memória que perdura, sobretudo, nos que mais sofreram as agruras da austeridade. E reemergiram as ideias mais retrógradas de xenofobia, de racismo, de anti-imigração e de cristalização da direita radical política, económica e social.
A defesa da família nuclear monogâmica, constituída por homem e mulher com estabilidade e a durabilidade até à morte, onde possam nascer e crescer os filhos, é sustentavelmente defendida pela Igreja católica e por confissões religiosas afins, tal como a defesa da vida humana, desde a conceção até à morte natural. Ninguém esperaria que a Igreja católica, tal como outras religiões, defendesse o contrário, aliás porque têm esse direito, numa sociedade livre e pluralista, e sentem esse dever.
Todavia, a nível religioso, é de anotar que, embora Jesus Cristo instasse a um estilo de vida exigente e sem reservas (com base na profundeza da doutrina que era do Pai) vendo o homem (e a família) como criado à imagem e semelhança de Deus (uno e plural, identidade e comunhão), era extremamente acolhedor das pessoas, cujo pecado as tornava marginalizadas pela sociedade puritana (leprosos, cegos, prostitutas, adúlteras, publicanos, etc.), propondo uma sociedade verdadeiramente colhedora e inclusiva. No seu encalço, emerge a doutrina moral do Padre Bernard Häring e, agora, em modo exponencial, o Papa Francisco.
Por outro lado, no quadro da autonomia do poder político terrestre, é de exigir aos decisores que a todos considerem iguais perante a lei, sem quaisquer constrangimentos à liberdade e aos diversos estilos de vida, desde que não ultrapassem as linhas vermelhas do crime (não inventado).
Aliás, se formos sérios no olhar histórico, devemos atentar que a proibição do adultério atingia quase exclusivamente a mulher, por ofender o marido, do qual era propriedade. O libelo de divórcio, antes da vinda de Cristo, que exigiu o regresso à “pureza original”, era prerrogativa exclusiva do homem, que podia descartar a esposa, quando lhe conviesse. O onanismo, condenado na Bíblia (pecado que atormentava adolescentes) era condenado, porque Onã o praticou para não dar descendência ao irmão Er (que falecera), incumprindo a lei do levirato.
Entretanto, o purismo social e religioso alimentou, durante séculos, o bastardismo de poderosos e chutou o de pobres. Os casais régios coabitavam para obterem a descendência legítima, mas os reis e outros maridos tinham diversões extraconjugais. Pais (e patrões) ditavam com quem as filhas casavam. E muitas mulheres, com separação vetada, viveram autêntico inferno conjugal.
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A discussão do tema evidencia a emergência de novos sujeitos a disputar lugares, a reivindicar direitos e a realimentar costumes, tradições, modos de vida e de trabalho, trazendo um novo momento para a construção da identidade familiar, seja ela da forma que for constituída.
Sem desconsiderar a família como instituição natural, ela, social e historicamente, pôde assumir configurações diversificadas nas sociedades e no interior de uma mesma sociedade, conforme as classes e grupos sociais heterogéneos.
Assim, a inserção social faz-se pelas relações conquistadas, e preconizadas socialmente, sustentadas em amparos legais, agora necessários, tornando mais concretas as condições de viver em família, garantindo-lhe, na sociedade, identidade e espaço próprios. Por isso, as religiões, enquanto propõem os seus ideais, têm de estar atentas às novas realidades. E os decisores políticos e os agentes económicos, sociais e culturais devem formar profissionais capazes de identificar a importância da visibilidade e do reconhecimento da identidade de família na sua amplitude e as demandas postas e as que estarão por vir. A discussão põe em alerta as várias formas de viver a vida da população a que é preciso atender.
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Nota do Director:
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18/07/2024