Crise de fome está a atingir o Sudão do Sul por causa da guerra

 Crise de fome está a atingir o Sudão do Sul por causa da guerra

Uma mulher comprava comida no mercado em Bor (estado de Jonglei), onde o PMA fornece dinheiro que as pessoas podem usar para adquirirem comida em várias lojas do mercado. Esta fotografia, datada de 23 de março de 2022, foi captada no Sudão do Sul, em Bor, no estado de Jonglei. (Créditos fotográficos: WFP – news.un.org)

O Programa Alimentar Mundial (PAM) da Organização das Nações Unidas (ONU), na avaliação da segurança alimentar, revela que 90% das famílias que regressam ao Sudão do Sul (perto de 300 mil pessoas, nos último cinco anos) estão em insegurança alimentar moderada ou grave e que os dados de rastreio recolhidos na fronteira revelam que cerca de 20% das crianças com menos de cinco anos e mais de um quarto das mulheres grávidas e lactantes estão subnutridas.

A maioria dos que fugiram dos combates e atravessaram a fronteira do vizinho Sudão com o Sudão do Sul são sul-sudaneses que “estão a regressar a um país que já enfrenta necessidades humanitárias sem precedentes”. “Estamos a ver famílias a trocar um desastre por outro, a fugir do perigo no Sudão, para se verem a braços com o desespero no Sudão do Sul”, afirma Mary-Ellen McGroarty, diretora do PAM no Sudão do Sul, advertindo que o PAM não dispõe de “recursos para prestar assistência vital aos que mais precisam”.

 Mary-Ellen McGroarty, diretora do PAM no Sudão do Sul.
(© World Food Program USA)

Em todo o Sudão do Sul, o PAM tem um défice de financiamento de 536 milhões de dólares, para os próximos seis meses, e só conseguiu chegar a 40% das pessoas em situação de insegurança alimentar com assistência alimentar até 2023.

Os Sul-sudaneses “atravessam a fronteira apenas com a roupa do corpo” e alguns são vítimas de roubo e de violência na viagem, segundo o PAM, que teme epidemias na estação das chuvas.

Depois de se ter tornado independente do Sudão, em 2011, o Sudão do Sul mergulhou na guerra civil que fez quase 400 mil mortos e milhões de deslocados, entre 2013 e 2018. O acordo de paz, assinado em 2018, previa o princípio da partilha do poder entre os rivais Salva Kiir e Riek Machar, no âmbito de um governo de unidade nacional. Porém, as tensões e a violência continuam a assolar o país mais jovem do Mundo, rico em petróleo, mas onde a maioria da população vive abaixo do limiar da pobreza.

(Créditos fotográficos: Daniel Dickinson – CC BY-NC-ND 2.0 – pt.aleteia.org)

Já no Sudão, a guerra iniciada, a 15 de abril, entre o exército, liderado pelo general Abdel Fattah al-Burhan, chefe do Conselho Soberano de Transição, e as Forças de Apoio Rápido (FAR – na sigla inglesa, RSF) de Mohamed Hamdan Dagalo, seu antigo adjunto no organismo que assegura o poder desde o golpe de Estado de 2019, já fez cerca de 7500 mortos, segundo a Armed Conflict Location & Event Data Project, e desalojou mais de cinco milhões de pessoas – 2,8 milhões das quais fugiram da capital Cartum, palco de incessantes ataques aéreos, de fogo de artilharia e de combates de rua.

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Cartum, que não conhecia a guerra desde a sua conquista por Mohamed Ahmed Al Mahdi, em 1885, tornou-se o principal teatro de guerra entre as RSF e as Forças Aéreas do Sudão.

(acleddata.com)

No final de março passado, havia algum otimismo na capital, parecendo que os envolvidos nas negociações que deveriam reorientar o processo de transição democrática estavam amadurecidos. Com efeito, tinha sido anunciado que o dia 1 de abril era a data para a assinatura do acordo que reorientaria o processo; o 6 de abril, para a assinatura do texto constitucional transitório; e o 11 de abril, para a apresentação do governo civil de transição.

Nas ruas, afirmava-se que os líderes do movimento islamita se tinham reunido com a cúpula do exército para bloquear o processo e que se poderia esperar um golpe de Estado. Ao mesmo tempo, os media locais noticiavam a deslocação de 60 mil soldados das RSF, para o seu acampamento militar em Soba, o seu posicionamento ao redor da base das Forças Aéreas do Sudão (FAS – SAF, na sigla inglesa), em Méroe, a 436 km a norte da capital, e outra concentração de tropas em El Fasher, a capital do Estado do Darfur do Norte.

Cartum, a capital do Sudão, que não tinha conhecido a guerra desde a sua conquista por Mohamed Ahmed Al Mahdi em 1885, tornou-se o principal teatro de guerra entre as Forças de Apoio Rápido e as Forças Aéreas do Sudão. (Direitos reservados – setemargens.com)

Os meios de comunicação começaram a noticiar discrepâncias entre as SAF e as RSF, no atinente ao processo de integração das segundas nas primeiras, para formar um exército único. As SAF defendiam que o processo deveria culminar numa liderança única para as forças armadas, corporizada por Abdel Fatah Al-Burhan, atual chefe do exército, ao passo que as RSF queriam um civil como autoridade última e comando supremo das forças armadas.

As RSF veiculavam, havia meses, a narrativa de que o exército regular (SAF) representava o regresso ao regime islâmico, opunham-se à transição e perfilavam-se como garantia de êxito do processo democrático. Embora a sua posição não pareça muito credível, pois Hameidti, líder das RSF, apoiou Burhan, líder das SAF, no autogolpe de Estado de outubro de 2021, que suprimiu a figura do primeiro-ministro e bloqueou o acesso à presidência do Conselho Soberano de Transição da componente civil. E foi este discurso que lhes pareceu justificar um golpe de Estado para depor Abdel Fatah Al-Burhan, pois, como refere o jornalista Osman Mirghani, as RSF e alguns civis da plataforma do Comité Central para a Mudança e a Liberdade tinham até preparada a lista de ministros para o novo governo.

Abdel Fatah Al-Burhan, atual chefe do exército. (Créditos fotográficos: File Photo – aa.com.tr)

As RSF eram milícias conhecidas como “janjawid” que operaram no Darfur, ao serviço de Omar Al-Bashir, presidente do Sudão, entre 1989 e 2019, em operações de limpeza étnica contra as tribos negras da região – acusação que levou o Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, a condenar o presidente deposto, que dotara as RSF de entidade jurídica como parte integrante do exército, para operações ordinárias e para alguns serviços secretos de operações extraordinárias, com competência especial para o controlo de fronteiras.

Quando o exército depôs Omar Al-Bashir, devido à pressão popular (Revolução de 2019), as RSF traíram o seu mentor e envolveram-se no novo governo de transição. O seu líder, Mohamed Hamdan Dagalo “Hameidti”, foi nomeado vice-presidente do Conselho Militar de Transição (Presidência da República), que lideraria o processo. Então, as RSF tinham só 20 mil soldados, mas controlavam minas de ouro no Darfur e no Kordofan Ocidental.

(Créditos fotográficos: AFP/Getty – mundonegro.es)

O governo civil liderado pelo primeiro-ministro Abdallah Hamdok, que surgiu como resultado do início do processo de transição, em agosto de 2019, iniciou a reforma dos serviços secretos, que tinham sido responsáveis por torturas e crimes inconcebíveis no novo Sudão a construir. Porém, era preciso redefinir o seu papel e limitá-lo ao fornecimento de informações ao governo.

O general Abdel-Fatah al-Burhan confiou às RSF o desmantelamento dos antigos serviços secretos. E as RSF aproveitaram o ensejo para ocupar os apartamentos, edifícios e infraestruturas onde funcionavam os serviços secretos e incorporaram alguns dos membros na sua estrutura.

O líder das RSF, Hameidti, foi responsável pelas negociações com diferentes partes no conflito do Sudão e representou o país em visitas internacionais, incluindo uma visita a Vladimir Putin, em Moscovo, a 9 de fevereiro de 2022, com um avião cheio de barras de ouro, como relatou o New York Times. A sua dimensão internacional, não limitada à região de Darfur, o seu poder e a sua ambição eram cada vez mais evidentes. A exploração de minas de ouro sob o seu controlo e outras atividades das empresas registadas em nome de outros membros da família e a permissividade do general Burhan permitiram-lhe aumentar o seu ordenado e o tamanho do seu exército, que chegaria aos 100 mil soldados.

No coração da confrontação estão dois homens: o líder militar sudanês Abdel Fattah al-Burhan e o comandante das forças paramilitares de apoio rápido (FAR), Mohamed Hamdan Dagalo. (cnnportugal.iol.pt)

O general Burhan foi responsável pelo treino militar dos soldados de Hameidti no Darfur, no início do século. Juntos, enviaram tropas para o Iémen, para combater os Hutis em nome dos governos financiadores da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos (EAU), estando sediadas, neste último país, as contas bancárias das empresas de Hameidti e dos familiares, e orquestraram o autogolpe de outubro de 2021 que expulsou os civis do governo de transição, quando se preparava a entrega de Omar Al-Bashir ao TPI.

Nenhum dos dois estava interessado em que o ditador deposto falasse, nem podia aceitar, tranquilamente, que um governo civil pusesse em risco a sua impunidade e os grandes interesses económicos que o exército e a família de Hameidti administram. E é verdade que a componente civil, inicialmente unificada contra a ditadura, se dividiu em dezenas de elementos opostos onde o interesse pelo bem comum se perdia sob um véu de interesses particulares e de pontos de vista opostos.

Apesar de tudo, Hameidti, afirmando publicamente, nos últimos meses, que o autogolpe fora um erro, distanciava-se do companheiro de batalha e falava abertamente em prol da componente civil do processo de negociações.

Bombardeios causam morte e destruição à capital do país, Cartum. (Créditos fotográficos: Mahmoud Hjaj/Anadolu Agency via Getty Images – cnnbrasil.com.br)

A assinatura do acordo de referência não ocorreu. O conflito armado eclodiu em dois cenários: em Soba, ao sul de Cartum, e na base militar de Méroe, local estratégico para o exército sudanês, porque de lá poderiam partir os caças para desequilibrar os combates. As RSF não possuem força aérea. Em poucas horas, os soldados de Hameidti ocuparam o palácio presidencial, os aeroportos internacionais de Cartum e de Méroe e a sede da televisão nacional e cercaram o quartel-general do exército, onde Burhan resistia ao comando das SAF e quase foi capturado e morto.

O exército sudanês foi apanhado em falso. E os soldados das RSF, embora não tivessem passado por uma academia militar, eram mais experientes no combate corpo a corpo, devido às recentes experiências na zona Este da Líbia, ao lado do exército de Khalifa Haftar, no Darfur e no Iémen, contra os Hutis, sempre com o financiamento dos EAU.

A capital do Sudão tornou-se, pois, o principal teatro de guerra entre as RSF e as SAF. Durante a revolução, o povo sudanês saiu às ruas e arriscou a vida para exigir um governo civil. Ficou muito entusiasmado quando Abdallah Hamdok iniciou o seu percurso como primeiro-ministro do novo governo de transição. Porém os comités de resistência de bairro continuaram a sair às ruas, a exigir justiça pelos crimes perpetrados pelas SAF e pelas RSF contra os manifestantes na revolução popular de 2019. E, quando, em outubro de 2021, Burhan e Hameidti assumiram o controlo do país, os comités continuaram a protestar, exigindo que ambos renunciassem e abrissem caminho a um governo completamente civil. O seu ponto fraco terá sido a falta de proposta alternativa bem articulada, mas o tempo demonstrou que a sua desconfiança em relação aos dois grupos estava muito bem fundamentada.

O povo sudanês saiu às ruas e arriscou a vida para exigir um governo civil. (Créditos fotográficos: AFP – horadopovo.com.br)

Após testemunharem de perto como, em poucos dias, as RSF destruíram estações de abastecimento de água e eletricidade, saquearam casas, universidades, ministérios, escolas, bancos, lojas, violaram centenas de mulheres, raptaram e não hesitaram em liquidar os cidadãos que se lhes opusessem, e mesmo odiando os militares, os jovens dos comités optaram por estes últimos, em vez de pensarem num país governado pelos primeiros. E a guerra do Sudão, oculta por cúmplice véu de silêncio, espalhou-se por várias regiões do país, causou mais de seis milhões de deslocados e destrói infraestruturas, vidas, sonhos e projetos.

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Entretanto, a Amnistia Internacional (AI), já a 3 de agosto, no relatório “A Morte Chegou à Nossa Casa: Crimes de Guerra e Sofrimento dos Civis no Sudão”, denunciou “crimes de guerra generalizados” no Sudão, desde o início dos combates entre as RSF e as SAF.

O relatório documenta a morte de civis em ataques deliberados e indiscriminados, assim como casos de violência sexual contra raparigas de apenas 12 anos, ataques a hospitais e igrejas e pilhagens generalizadas. Algumas das violações dos direitos humanos ali documentados, como os ataques a civis, constituem crimes de guerra, sustenta Agnès Callamard, secretária-geral da prestigiada organização não-governamental de defesa e promoção dos direitos humanos, vincando que “os civis, em todo o Sudão, sofrem um horror inimaginável a cada dia que passa”, enquanto as duas forças militares “competem imprudentemente pelo controlo do território”.

Sul-sudaneses (Créditos fotográficos: Reuters / Mohamed Nureldin Abdallah – m.redeangola.info)

A espiral de violência no Darfur lembra “a campanha de terra queimada das décadas anteriores, por vezes envolvendo os mesmos atores”, diz o relatório. E a tática da terra queimada consiste em destruir tudo o que for útil ao inimigo, no avanço ou na retirada.

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Há quem diga que o número de mortos, feridos e deslocados será maior do que na Ucrânia. O certo é que a Ucrânia, o Médio Oriente (sobretudo, o conflito Israel-Palestina) e o Sudão são grandes desafios para a ONU, em 2024.

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12/10/2023

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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