Crónica de uma Mortágua anunciada
A flotilha Global Sumud saiu da Espanha em direção à Palestina. (sindrede.org.br)
Em democracia, o dever de qualquer representante eleito é, como o nome indica, representar os cidadãos. Seja nas autárquicas, nas legislativas ou nas presidenciais, votamos em quem promete políticas que nos parecem corretas. Eu sei, eu sei, numa realidade em que a política se tornou clubística, uns jogam à esquerda, outros à direita, o populismo aparece para criticar da bancada, não nos devemos esquecer de que deve existir alguma substância por trás dos slogans e dos lugares-comuns. Na origem da palavra “política” — do grego polis, ou “cidade” – está o segredo: as necessidades dos cidadãos começam em casa, não no estrangeiro.

Mendes – es.wikipedia.org)
No entanto, a política portuguesa parece ter-se esquecido disso, e poucos exemplos são tão claros como as acções da coordenadora do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, neste ano.
Já andava com a pulga atrás da orelha relativamente ao comportamento político de Mortágua como líder de um partido político desde a tomada de posse, após as últimas legislativas. Nas eleições de maio de 2025, o Bloco de Esquerda elegeu apenas uma deputada, menos quatro que nas eleições anteriores, e muito longe dos 19 que o partido conquistou em 2019. Não sei qual a leitura deste descalabro a comissão política do Bloco fez, mas o que, sim, vi foi a deputada/líder Mariana Mortágua de véu árabe aos ombros na noite da eleição. Em lugar de tentar entender por que é que o partido perdeu tanta expressão, Mortágua optou por se focar num tema de impacto limitado para o dia a dia dos Portugueses, um bom exemplo dos problemas de identidade da esquerda na política atual.

Façamos uma pausa antes de continuar, porque Gaza é um tema quente, em particular nas caixas de comentários das redes sociais. Obviamente, o que se passa em Gaza é um desastre humanitário. Que jornalistas, população civil e, em particular, crianças sofram e morram como têm morrido neste conflito é uma vergonha mundial. Portanto, o que está a acontecer no Médio Oriente é trágico e merece condenação da comunidade internacional. Aliás, tudo o que cidadãos façam para dar mais atenção neste tema é uma boa iniciativa. A diferença é que o/a líder de um partido não se representa apenas a si, representa também a intenção de quem votou nele. Ou nela, neste caso. E, quando o foco se coloca na questão internacional, é porque não se entenderam e ignoram os problemas domésticos.

Voltamos, então, a Mariana Mortágua. Se um partido não ganha votos, é porque as pessoas não votam nele. Básico, certo? E, se não votam nele, é porque as suas propostas políticas não estão a ser bem recebidas pela população. Então, perder uma eleição devia levar a uma leitura do que falhou, de entender qual é a visão do partido e ouvir as pessoas que costumavam votar nele e agora não. Ajustar ao que é importante para os cidadãos. Contudo, qual foi a opção da líder do Bloco? Em plena campanha para as autárquicas, decidiu ser mais importante fazer parte de uma “flotilha” que chegou a Israel para chamar a atenção sobre os problemas de lá. E muitos portugueses olharam para isto e ficaram a pensar: “E os problemas de Portugal?”
Não entendo por que razão um líder político escolhe um caminho que parece conduzir ao colapso do seu próprio partido. Mortágua poderia até ter suspendido o seu mandato de deputada e rumado como cidadã a Israel, está bem no seu direito. Não fazer isso, em particular como deputada única e durante uma campanha eleitoral, foi expor o seu partido à chacota que acaba por diluir os objetivos da “flotilha”. E os resultados nas eleições autárquicas não deixam enganar: o Bloco de Esquerda perdeu todos os vereadores que tinha e quase deixou de existir fora de coligações1.

Parlamento com uma t-shirt de Charlie Kirk.
(facebook.com/psfrazao)
Não se pense que este amor às causas internacionais é propriedade exclusiva da esquerda. Rita Matias, deputada do Chega, decidiu discursar no Parlamento com uma t-shirt de Charlie Kirk, um ativista de extrema-direita americano, baleado em setembro e novo mártir para alguns movimentos políticos. Ora, eu nunca ouvi falar de Kirk antes do assassinato – e aposto que a maioria dos Portugueses também não –, mas parece que os nossos políticos não resistem a tentar encontrar heróis lá fora, de causas que pouco importam em Portugal. É mais fácil do que ter de lidar com os problemas reais que se passam cá dentro. Rita Matias lá saiu do pódio sorridente como – diria a minha avó – se tivesse feito uma grande avaria. Não fez nada, fora a foto para o Instagram.
Vivemos, afinal, num teatro político digital, onde a empatia se mede em likes e o ativismo se confunde com encenação. É fácil cooptar temas de outros países e fingir que são importantes para Portugal. Outro exemplo: o tempo dedicado à lei que bane o uso de burcas em espaços públicos. Este tema até seria suficiente para outra crónica, mas é, de verdade, algo tão importante que merece a atenção – mediática e política – de todo o país? Ou será, apenas, mais uma distração dos problemas reais e sem solução fácil? Quando se presta atenção a coisas assim, fica sempre algo de fora. Melhor seria ter dedicado essa energia a melhorar o acesso à habitação ou o combate à pobreza. Mas, claro, o soundbyte não é tão bom.

O meu medo é que, enquanto os políticos andem a brincar aos heróis, as necessidades do povo continuem sem ser atendidas, o que, por sua vez, leva ao crescimento dos partidos populistas, reforçando os problemas que já existem.
Em outubro, Mariana Mortágua anunciou que não se recandidata à coordenação do partido. Entre outras coisas, citou que “a precipitação de sucessivas campanhas eleitorais tirou espaço e tempo à reflexão interna”. É bom ver um político a aceitar responsabilidades, mas melhor ainda seria ver algum tipo de pensamento estratégico. Afinal de contas, na “flotilha” também não houve tempo para reflexão política. Quando a política esquece a polis, quem ganha são os que se alimentam do medo – e a nação, essa, fica órfã ou nas mãos do populismo que apenas destrói e nada cria.
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Nota da Redacção:
1 – Numa breve pesquisa, apurámos que o Bloco de Esquerda (BE), mas em coligação, elegeu apenas uma vereadora, em Lisboa, segundo balanço interno. Porém, em listas próprias, o BE ficou apenas com deputados municipais em vários concelhos (como Porto, Coimbra, etc.) e em coligações conseguiu representação em assembleias municipais e de freguesia.
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Nota do Director:
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06/11/2025