Dia Mundial do Apagão (de cerveja na mão)

 Dia Mundial do Apagão (de cerveja na mão)

(Créditos fotográficos: Artem Maltsev – Unplash)

Um dos problemas da vida do emigrante é perder os eventos que acontecem no nosso país: casamentos, batizados, aniversários. São anos de memórias partilhadas nas quais a distância não nos permite marcar presença. Para bem ou para mal, estamos desligados da realidade local.

(Imagem gerada por IA – imagine.art)

Também perdemos situações únicas como, por exemplo, o mega-apagão no dia 28 de abril, quando Portugal e Espanha estiveram sem eletricidade durante meio-dia. Visto de longe, o evento – ainda sem causa definitiva – não me pareceu problemático. Chegaram-me memes sobre pessoas a fazer churrascos antes que a carne se estragasse e a ter de beber cerveja enquanto (ainda) estava fresca. Vi pessoas que tiveram uma oportunidade para desligar a Internet e conectar-se com quem está mais próximo. Entretanto, lá estava eu, no Reino Unido, sem desculpa para deixar de trabalhar. Não é justo.

(Imagem gerada por IA –firefly.adobe.com)

Contudo, se o problema tivesse continuado por vários dias, a situação poderia ter sido dramática. As pessoas foram a correr a comprar papel higiénico – reflexo dos tempos da covid-19 –, mas mais preocupante seria a falta de água ou de comida não perecível. Não é fácil de aceitar, mas a nossa realidade pode ser desligada facilmente. Quem é que já está preparado para esta realidade? Os Norte-americanos, já em modo pré-apocalíptico, e, até, com direito a publicidade. Prova disso foi que, umas semanas antes do apagão, tinha visto um anúncio dos Estados Unidos da América dedicado a produtos que ajudam a sobreviver ao colapso da civilização. O sítio eletrónico 4Patriots, entre outras coisas, vende geradores solares que muito teriam ajudado durante o apagão (compre um e receba outro, mais pequeno, de oferta, promoção a decorrer enquanto escrevo esta crónica), purificadores de água, três meses de rações de emergência por 699 dólares (com validade de 25 anos) e kits de proteção contra pulso eletromagnético (naturais e não só). Quando vi o anúncio, pensei que esta gente é mesmo maluca. Depois do apagão, não sei.

(Imagem gerada por IA –firefly.adobe.com)

Inspirado por este incidente, fui ver a minha despensa e – fora umas latas de atum e feijão, arroz (que não teria onde preparar) e alguns molhos picantes – as minhas reservas não aguentariam muitos dias. Para me preparar melhor, fui à procura de sugestões dos especialistas. Felizmente, encontrei um folheto do governo da Suécia que indica preparativos em caso de guerra ou de crise, com uma seção dedicada à preparação caseira. A lista é grande: água (engarrafada, pelo menos três litros por dia), aquecimento (fontes de calor não dependentes de eletricidade), comunicação (rádios a pilhas e pilhas), comida (enlatados, comida não perecível), dinheiro (várias denominações) e muito mais (lanternas, pilhas, papel higiénico). Falhei em todas estas áreas. Tivesse chegado cá o apagão e eu teria sido mais um na fila do supermercado a tentar pagar com cartão. Fica complicado sobreviver ao apocalipse num apartamento, mesmo apenas para manter reservas para uma semana, o mínimo recomendado pelos Suecos. Aliás, se comprasse comida para três meses, ia passar todo o tempo a navegar as latas até chegar ao frigorífico.

(Imagem gerada por IA –firefly.adobe.com)

Questões básicas de sobrevivência à parte, o que um apagão também traz é um encontro duro com a realidade de que dependemos muito das outras pessoas. A Internet liga quem está longe, mas cria barreiras com quem está mais próximo fisicamente. Carregamos num botão e uma encomenda aparece magicamente à nossa porta ou comida quente chega em meia hora sem nenhum esforço. Nem vemos a cara de quem entrega. A Internet encurta as distâncias e facilita o contacto, mas, como se nota numa emergência, a proximidade vale muito. O manual do governo sueco regista isso e indica que é importante conhecer os vizinhos, partilhar e trocar coisas com eles, em caso de necessidade, e – se a ansiedade for demasiado grande – falar com eles para reduzir a tensão. Na verdade, ajudar os outros a estar preparados até ajuda a criar um propósito na pior das situações. Os cinquenta rolos de papel higiénico dão jeito, mas não fazem companhia.

(Imagem gerada por IA – freepik.com)

É por isso que, no meio de um incidente desta magnitude, o que me deu mais inveja foi não partilhar esta experiência com quem vive na Península Ibérica. Sem Internet nem eletricidade, foram obrigados a viver aqui e agora. Tiveram de interagir com as pessoas por quem passam no corredor ou no elevador e a quem não se diz mais do que um “bom dia”. Conhecer e estar interessado por quem nos rodeia é uma arte cada vez mais perdida. Portanto, proponho a criação do Dia Mundial do Apagão porque, às vezes, desligar é mesmo a melhor forma de voltar a ligar.

Este feriado não oficial aconteceria uma vez por ano, mas sem aviso prévio. As pessoas estariam sempre à espera do tal dia sem eletricidade. Estariam melhor preparados: a lanterna e a botija de gás sempre à mão. Quando não quisessem trabalhar, sonhariam com o apagão. Falariam com os vizinhos porque nunca se sabe se não ficarão fechados com eles no elevador no tal dia. E quando o dia chegar, desligarão, logo, o telemóvel e acenderão o grelhador. Porque a melhor maneira de viver o fim do mundo será, certamente, em boa companhia e com uma cerveja na mão (enquanto houver).

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05/06/2025

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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