Dia Mundial do Teatro: teatro e liberdade

 Dia Mundial do Teatro: teatro e liberdade

O escritor norueguês e vencedor do Prémio Nobel da Literatura, em 2023, Jon Fosse é o autor da mensagem do Dia Mundial do Teatro de 2024. (Créditos de imagem: theguardian.com)

Em 1962, o Dia Mundial do Teatro foi comemorado pela primeira vez pelo Instituto Internacional de Teatro (ITI). Seis décadas depois, continua a ser comemorado, anualmente, no dia 27 de Março pela comunidade teatral internacional. Uma das comemorações mais importantes deste dia é a circulação da Mensagem Internacional do Dia Mundial do Teatro, através da qual, a convite do ITI, uma figura de reconhecimento mundial partilha as suas reflexões sobre o tema Teatro e Cultura de Paz.

(© Educação Artística – youtube.com)

Enquanto esperávamos pela mensagem deste ano, atrevi-me a escolher momentos de teatro identificados com a Liberdade, dado o facto de este ano celebrarmos os 50 anos de uma nova era na História moderna de Portugal: o 25 de Abril de 1974, que depôs o regime ditatorial do Estado Novo, no poder desde 1933, e que foi liderado pelo MFA (Movimento das Forças Armadas), fortemente apoiado pela população.

De entre as grandes conquistas do 25 de Abril, destacamos o retorno da democracia, o nascimento e a descolonização e independência de novos países africanos (Guiné-Bissau foi o primeiro dos territórios ultramarinos a alcançar a independência, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique) e, mais tarde, no Sudeste Asiático, Timor-Leste. E também o nascimento e a consolidação das regiões autónomas dos Açores e da Madeira.

Mas o conceito de “liberdade”, tão profundamente arraigado no homem, está presente nas mais antigas tragédias gregas, como encontramos em “Prometeu Agrilhoado”, atribuída ao dramaturgo grego Ésquilo, do século V a.C. No centro do drama, estão as consequências do roubo do fogo cometido por Prometeu e a sua subsequente punição por Zeus.  

(Direitos reservados)

Em “Édipo-Rei”, peça do teatro grego antigo escrita por Sófocles, por volta de 427 a.C. Considerada por Aristóteles, na sua “Poética”, como o mais perfeito exemplo de tragédia grega. Encontramos o tema da libertação numa dupla relação com a cidade/polis e a personagem central. Quando o protagonista se liberta do seu passado ignoto, liberta também a cidade, que anteriormente tivera libertado da esfinge sangrenta. Agora, a luta é contra a peste que assola a cidade ceifando vidas e animais, devastando e tornando a terra estéril e seca.

Em “As Troianas”, tragédia de Eurípides, apresentada nas Dionísias Urbanas de –415.   “Troianas” era a terceira tragédia de uma trilogia temática, relacionada com a Guerra de Tróia. Após a queda de Tróia, as mulheres são escravizadas e aguardam o embarque para os novos lares.

“Oréstia” foi encenada pela primeira vez em 458 a.C. e foi vencedora
do primeiro prémio nas festas dionisíacas de Atenas. (marcosmucheroni.pro.br)

Encontramos este tema na trilogia mais completa de autoria de Ésquilo, que chegou até nós, “Oréstia”, de 458 a.C., da qual falta apenas a peça satírica que completava uma teatrologia sobre o tema da guerra de Tróia. É a única trilogia completa de algum dramaturgo grego descoberta pelos estudiosos modernos. Consiste nas peças “Agamémnon”, “Coéforas” e “Euménides”. Juntas, estas obras narram a sangrenta história da família de Agamémnon, rei de Argos.

E ainda temos as tragédias “Medeia”, de Eurípides; “Electra”, também de Eurípides e, mais tarde, entre outras, a peça “Electra”, que integra a trilogia “Electra e os fantasmas”, de Eugene O’Neill (“Mourning becomes Electra”).

E como não mencionar uma das mais belas tragédias de amor e de liberdade, a “Antígona”, de Sófocles?

Pormenor de “Antigone donnant la sépulture à Polynice”, de Sébastien Norblin (1825). (virtual-illusion.blogspot.com)

Também na comédia “Lisístrata”, a famosa comédia de Aristófanes, escrita e encenada em Atenas, no ano de 411 a.C. Na peça, as mulheres gregas, lideradas por Lisístrata, personagem feminina de carácter forte, decidem por votação avançar com uma greve sexual para forçar uma negociação de paz, a fim de acabar com a Guerra do Peloponeso (guerra entre Atenas e Esparta). A luta das mulheres, no entanto, provocará uma batalha entre os sexos.

Caminhando no tempo e geograficamente na Península Ibérica, encontramos dois grandes momentos sobre o tema. Um diz respeito a “O Alcaide de Zalamea”, peça dramática de Calderón de la Barca (1600–1681), aparentemente encenada em 1636. Esta peça narra o drama vivido na localidade estremenha de Zalamea de la Serena, quando por ali passaram as tropas espanholas durante a Guerra Portuguesa. O capitão Dom Álvaro Ataíde, personagem de origem nobre, está alojado na casa do rico fazendeiro local, Pedro Crespo (mais tarde, alcaide da cidade), cuja linda filha Isabel sequestra e viola.  

Quando Pedro Crespo tenta remediar a situação, oferece bens a Dom Álvaro para que este se case com Isabel, a quem Dom Álvaro rejeita por ser uma vilã, ou seja, de baixa condição. Na peça, é contada a vingança do prefeito Pedro Crespo, que mata Dom Álvaro, o arrogante capitão que sequestrou sua filha.   Esta reacção não é percebida como resultado da aplicação de um código rígido e bárbaro, mas como uma reacção justa que será aprovada pelo rei.

A peça “O Alcaide de Zalamea”, considerada um dos símbolos da literatura espanhola, foi apresentada na cidade de Lisboa, em Maio de 2017, no Instituto de Cervantes, visando promover aquela região espanhola, enquanto espectáculo de interesse turístico internacional. (pmemagazine.sapo.pt)

Um outro grande momento, neste contexto temático, associa-se a “Fuenteovejuna”, tida como uma peça do “século de ouro” espanhol, da autoria do dramaturgo Lope de Vega. É considerada como a melhor da sua vasta obra dramática. foi escrita, em três actos, por volta de 1612-1614 e publicada, em Madrid, no ano de 1619. Baseada num acontecimento histórico, o enredo passa-se na cidade de Fuenteovejuna, em Córdova, na época dos Reis Católicos (1474-1516). O drama é apresentado com um protagonista colectivo (os habitantes da cidade), que, em “união do povo contra a opressão e o abuso”, decidem fazer justiça.

Peça “Fuenteovejuna”, de Lope de Vega. (muchoteatro-lmmr.blogspot.com)

Em Portugal, destacamos a figura ímpar de Gil Vicente (c. 1465–c. 1536). Toda a dramaturgia de Gil Vicente é uma obra de liberdade. De liberdade temática e de liberdade na construção linguística, assim como na criação de personagens e dos argumentos.  São, geralmente, apontados como aspectos positivos das suas peças, a imaginação e a originalidade evidenciadas; e, igualmente, o sentido dramático e o conhecimento dos aspectos relacionados com a problemática do teatro.  De 1502 (data da representação de o “Monólogo do Vaqueiro” ou “Auto da Visitação”) até 1536 (ano de “Floresta de Enganos”), o dramaturgo português averbou 44 peças, das quais 15 são em Língua Portuguesa, 11 em Castelhano e as restantes 18 em ambos os idiomas.

“Monólogo do Vaqueiro”, pintura de Roque Gameiro.
(pt.wikipedia.org)

De todas as mensagens já escritas e divulgadas, quero lembrar uma, a breve e poética do actor britânico Richard Burton, de 1974, que começa assim: “Hello, out there.” Ou seja, “Olá, aí fora.” Uma frase simples, que é o título de uma peça americana de William Saroyan1. Uma frase simples que explica por que o teatro existe. A peça de Saroyan é sobre uma conversa entre um homem na prisão e uma mulher do lado de fora. E de como, nessa conversa, o teatro é um processo aprisionado pelo tempo que fala para fora, para as pessoas.

Não importa quão vanguardista, estranho ou familiar seja um evento, ele tem uma breve vida própria.

Reis e trabalhadores, coronéis e lojistas podem assistir a uma peça juntos, porque ela fala para todos eles – por um tempo.

O teatro é criado por aqueles de nós num mundo que não consegue subjugar o impulso de dizer: “Olá!” O teatro é aquele momento da nossa vida em que nós, os artistas, somos responsáveis pela verdade. É a verdade disfarçada por um manto brilhante ou uma barba falsa.

Eu sou um actor. Os actores usam as suas máscaras ao serviço dessa verdade oculta.

Em todo o mundo, seja um filme para 50 milhões de pessoas ou uma peça para 50 pessoas, todos os da arte e do ofício do teatro têm o propósito de dizer: “Olá, aí fora!”

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Nota:

1 – William Saroyan (1908-1981) é um escritor e dramaturgo dos Estados Unidos da América, de ascendência arménia. Quando jovem, participei na montagem de uma das peças deste autor, “A Formosa Gente” (“The Beautiful Pélope”).Saroyan escreveu 22 peças, sendo uma das mais reputadas “The Time of Your Life”, que ganhou o New York Drama Critics Circle Award e o Pulitzer Prize, em 1939.

William Saroyan (avim.org.tr)

“Se há algum desejo que tenho, é mostrar fraternidade humana. Esta é uma óptima afirmação, e pode parecer um pouco afectada. Normalmente, um homem tem vergonha de dizer algo assim. Temos medo [de] que as pessoas sofisticadas se riam de nós. Mas não me importo com isso.”, escreve William Saroyan, em “Setenta Mil Assírios”, numa de suas primeiras histórias.

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01/04/2024

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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