“Do Laboratório à Cozinha”

 “Do Laboratório à Cozinha”

(Créditos fotográficos: Alyson McPhee – Unsplash)

Vinte e quatro anos depois da jubilação, eis-me a publicar mais um livro em que se fala de açordas, migas e outros comeres, como diziam os rurais alentejanos no tempo em que, como adolescente, pude conviver com eles. Nos três anteriores, “Com Poejos e Outras Ervas”, “Açordas Migas e Conversas” e “Com Coentros e Conversas à Mistura”, além de receitas culinárias, fala-se “de tudo e mais alguma coisa”, da crónica à ficção, da Mineralogia e Geologia à História e à Filosofia, das Artes à Sociologia. Neste livro, síntese dos anteriores, a que se acrescenta o que fui editando na minha página do Facebook apenas das muitas confecções aprendidas e criadas, todas elas da gastronomia alentejana ou nela inspirada.

Capa de Francisco Bilou, com base numa fotografia de Jerónimo Heitor
Coelho. (Direitos reservados)

Durante 44 anos, primeiro como aluno, depois como docente e investigador nas universidades de Lisboa e de Paris, no domínio das rochas sedimentares e dos seus minerais, o laboratório, com recursos à Química e à Física, foi uma constante na minha vida. Um laboratório foi, ainda, o que, respondendo a uma solicitação do saudoso professor Orlando Ribeiro, criei no Instituto de Geografia da Faculdade de Letras de Lisboa, onde a investigação em Sedimentologia estava na base da Geomorfologia.

Quando o limite de idade me arrumou, contra a minha vontade, na “prateleira dos reformados e pensionistas”, toda a parafernália laboratorial que, por amor à arte, por assim dizer, me entrara no coração, parece ter encontrado continuidade e conforto na da cozinha. Gobelets, provetas e erlenmeyers viraram tachos, panelas e frigideiras; cloretados, oxidados e sulfatados tomaram o lugar dos refogados, guisados e estufados; átomos e iões foram substituídos por bagos de ervilha e por feijões; a torneira com água fria e quente é a mesma, os queimadores de gás do fogão passaram a bicos de Bunsen e o forno fez as vezes da estufa.

(Imagem gerada por IA – artguru.ai)

Acontece que, em criança de 9,10 e 11 anos, era eu que, a mando da minha mãe, ia ao talho e ao mercado municipal, com o recado bem metido na cabeça, comprar o peixe, as hortaliças e a fruta. Ia também à mercearia, em busca do arroz e das massas, do feijão e do grão, do açúcar e da farinha, da manteiga e do azeite, nesse tempo, tudo a granel, aos quilos e meios-quilos, litros e meios-litros. Com essa experiência, aprendi a relacionar os produtos que trazia para casa com as confecções que vinham à nossa mesa, numa família de pai, mãe, seis filhos e uma tia viúva, irmã da minha mãe, uns 18 anos mais velha do que ela. Acontece, ainda, que muito cedo ganhei interesse pela cozinha e que a minha mãe teve gosto e paciência para me ensinar os rudimentos que me permitiram caminhar “pelo meu pé”, descobrir o que fui descobrindo e criando o que o acaso fez surgir, sempre inspirado na cozinha tradicional alentejana.

Nos anos em que fui profissional a tempo inteiro, mais precisamente, entre 1961 e 2001, sempre gostei de, aos fins-de-semana, feriados e períodos de férias, me entreter na cozinha. Nos outros dias, trabalhei naquilo em que me tornei profissional. E com que gosto! Com tanta entrega e tanta obsessão que costumava dizer estar sempre em férias, modo eufemístico de dizer que nunca me lembrava delas. Nos três anos que vivemos em Paris, no 5ème arrondissement, Rive Gauche, a Isabel e eu, alugámos um apartamento com uma pequena, mas funcional, kitchenette, íamos ao mercado na Rue Mouffetard, tal como os nossos vizinhos, e cozinhámos o tempo todo, ora um, ora outro.

O “5ème arrondissement de Paris”, também chamado “bairro do Panteão”, abriga um grande número de grandes escolas e universidades parisienses: École Normale Supérieure, École Polytechnique, École Nationale Supérieure des Arts Décoratifs, La Sorbonne, etc. (sunlocation.com)

Este outro livro, certamente o último que farei, encaro-o como um poema à gastronomia alentejana, como arte colectiva e ancestral de um povo que aprendeu a tirar das ervas, que a Natureza pôs à sua disposição, os aromas e os sabores que a caracterizam.

Importante atractor do já chamado turismo gastronómico, a gastronomia regional é um pilar da identidade da área territorial a que se refere e um património cultural que valoriza a relação entre a mesa e a sociedade locais. A gastronomia oferece ao viajante verdadeiras experiências muito pessoais e autênticas dos locais por onde passa, uma vez que sentar-se à mesa para almoçar ou jantar é uma necessidade de todos os dias. E a verdade é que quem viaja procura, cada vez mais, experiências que liguem os locais visitados ou a visitar às respectivas raízes culturais, e os “sabores” são uma parte importante dessas raízes. É por isso que, no dizer do colunista gastronómico espanhol Xavier Domingo (1929-1996), “los libros de cocina son materia prima para historiadores, sociólogos, psicólogos, filósofos e incluso – termina com humor – para cocineros”. Sabemos que a gastronomia representa uma fatia importante do turismo cultural e também sabemos que este está intimamente ligado ao turismo rural, pela relação que tem com a agricultura e a pecuária, que estão na base dessa mesma gastronomia.

(Imagem gerada por IA – new.express.adobe.com)

Quem me conhece sabe que cozinhar tem sido para mim um hobby, à semelhança de outros, como a bricolage, a escultura, a pintura e, ultimamente, a escrita. Não sendo gastrónomo, gosto de ler sobre gastronomia, a “nona arte”, como a distinguiu o conhecido gastrónomo, escritor e jornalista Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949), além de que aprecio, e muito, os bons sabores e gosto de “pôr as mãos na massa”, no dizer de José Quitério (1942-), o jornalista fundador da secção de gastronomia do semanário Expresso.

Revejo-me nas palavras de Alfredo Saramago (1938-2008) que escreveu, em 1994: “O homem que gosta de cozinhar é um ser social por excelência.” E é isso mesmo que eu sei que sou. Com efeito, é em confraternizações de amigos e familiares que mais gosto de cozinhar.

“Do Laboratório à Cozinha” é um apanhado de ideias e sugestões passadas a escrito, cujo objectivo é dar a conhecer confecções caseiras, muito simples, vindas de pais e avós, amigos e conhecidos, citadinos e rurais, quase sempre com a marca mais ou menos visível da grande província que é a minha. Não indica quantidades nem tempos, nem se preocupa com os modos de preparação. Neste propósito, destina-se a toda aquela ou a todo aquele que conheça os rudimentos da cozinha, deixando a cada um a liberdade de fazer delas o que melhor entender.

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20/02/2025

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A. M. Galopim Carvalho

Professor universitário jubilado. É doutorado em Sedimentologia, pela Universidade de Paris; em Geologia, pela Universidade de Lisboa; e “honoris causa”, pela Universidade de Évora. Escritor e divulgador de Ciência.

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