Falar de música
Falar de música é tão estimulante como ouvir música. Duas notas breves para esta crónica.
O escritor, primeiro peruano e agora espanhol, Mario Vargas Llosa (com 87 anos) anuncia uma nova novela na qual se fala de música. “Dedico meu silêncio”, é o novo romance do Prémio Nobel da Literatura (em 2010), e que chegará a todas as livrarias de língua hispânica, a partir de 26 de outubro, editado pela Alfaguara. Trata-se de um romance ambientado no Peru, sobre um homem que sonhava com um país unido pela música e que enlouqueceu, ao querer escrever um livro que contasse sobre isso.
Este romance aparece quatro anos depois de “Tiempos Recios” (“Tempos Difíceis”, que, em tradução livre seria um homónimo da ficção de Charles Dickens, tendo sido editado com os títulos “Tempos Duros” e “Tempos Ásperos”), no qual o autor mistura ficção e ensaio para falar sobre um assunto que o obcecava há anos: a Utopia.
Neste romance, a Utopia é um território cultural com a música peruana como núcleo e pretexto: “A valsa, nascida nos becos de Lima, integrou o Peru. Aqui conto essa história, e com ela agradeço um amor secreto que me acompanhou durante toda a minha vida: o que sinto pela música crioula e, principalmente, pela valsa do meu país.”
“Le dedico mi silencio” (no título original) conta a história do especialista em música crioula Toño Azpilcueta e a sua descoberta de um virtuoso violonista, Lalo Molfino, cujo talento parece confirmar todas as suas intuições: que o profundo amor que sente pelas valsas, pelas marineras, pelas polcas e pelos huaynos peruanos tem uma justificação social, como regista uma nota informativa da própria editora: “Talvez o que acontece é que a música crioula é, na realidade, não apenas uma marca de um país inteiro e uma expressão daquela atitude muito peruana da huachafería (a maior contribuição do Peru para a cultura universal, segundo Toño Azpilcueta), mas também algo muito mais importante: um elemento capaz de provocar uma revolução social, de derrubar preconceitos e barreiras raciais para unir todo o país num abraço fraterno e mestiço.”
A música peruana – e já não falo da música inca, também não da música tocada e fruto da inspiração europeia – é extremamente rica, na qual se destaca, fundamentalmente, a valsa (peruana), que encontra neste territorio latino-americano uma nova vida, uma nova expressão e novas características, que se reflectem nas letras, as quais são poeticamente belas e sugestivas.
As valsas peruanas são cantadas e as letras descrevem, entre outras temáticas, a vida rica e agitada da cidade de Lima, que foi capital do Vice-Reino do Peru (em Espanhol, Virreinato del Perú), de 1542 a 1824, e os seus costumes. Entre as mais belas, refiro apenas duas: La Flor de la Canela e El Plebeyo.
Numa breve pesquisa na enciclopédia livre Wikipédia, ficamos a saber que a valsa peruana ou valsa crioula é um género musical originário do Peru, dentro da música crioula e afroperuana que se desenvolveu em Lima e em grande parte da costa peruana nos séculos XIX e XX. O canto solista, ou no duo acompanhado por violões e depois com pianos, era parte fundamental nas reuniões ou jaranas [festas animadas ou buliçosas] nas casas particulares da sociedade peruana. Foi, precisamente, nestes espaços, que se desenvolveu esta música. As valsas mais antigas são de fins do século XIX e inícios do XX e são conhecidas como valsas da Guardia Vieja (“velha guarda”). O tempo e a prática popular da tradição oral fizeram com que se perdessem os nomes de alguns autores. No seu “Libro de oro del Vals Peruano”, os musicólogos Raúl Serrano e Eleazar Valverde assinalam os mais importantes compositores da Guardia Vieja, entre outros: José Sabas Libornio-Ibarra, Julio Flórez e Juan Peña Lobatón.
E o que pensava o autor da obra “Utopia”, Thomas Morus, sobre a Música? A esse respeito, encontro um interessante fragmento do artigo ensaístico “Utopías sonoras: escollos y peligros de músicas idealizadas”, de Ricardo Miranda, publicado em Novembro de 2020, na revista académica de investigação Figuras, o qual transcrevo, em tradução livre: “No esboço que Holbein desenhou com o objectivo de retratar Thomas Morus e a sua família – durante os dias um pouco menos agitados que o chanceler passou na corte de Henrique VIII –, podemos ver o contorno de uma viola de gamba que foi pendurada numa das paredes do quadro: o instrumento poderia ser um sinal de que, para Morus e para a sua família, a música desempenhava um papel importante e quotidiano nas suas vidas. Como se sabe, a pintura nunca foi concluída, mas, em 1593, Rowland Lockey, ao pintar o retrato baseado no esboço de Holbein, anotou cuidadosamente a presença do instrumento e, de facto, colocou dois artefactos – viola de gamba e alaúde – na margem esquerda da sua tela. Certamente, a pintura de Lockey é – mais do que um testemunho – uma homenagem, um acto político. Por isso, é interessante notar que nele, a respeito do esboço de Holbein, os instrumentos musicais se multiplicam e no seu silêncio lançam a nossa pergunta: o que Morus pensava sobre a música?”
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O Festival de Salzburgo
No dia 20 de Julho, começou a 102.ª edição do Festival de Salzburgo, que este ano lembrou e prestou homenagem ao dramaturgo e cofundador do festival, Max Reinhardt, de quem se comemora o 150.º aniversário do seu nascimento e oito décadas da sua morte. Até ao dia 31 de Agosto, a cidade austríaca constitui o cenário de oito óperas e de cinco concertos da Filarmónica de Viena.
O poeta e dramaturgo Hugo von Hofmannsthal, o compositor Richard Strauss, o director Max Reinhardt, o cenógrafo Alfred Roller e o maestro Franz Schalk são considerados os fundadores do festival. O primeiro Festival de Salzburgo abriu, oficialmente, em 22 de agosto de 1920, com a encenação de Reinhardt da peça, de Hofmannsthal, “Jedermann”, ao ar livre, em frente da fachada da catedral da cidade. E, como uma tradição, a peça é encenada todos os anos no mesmo local, abrindo oficialmente o Festival.
Max Reinhardt (1873-1943) foi um dos grandes encenadores europeus aos quais o teatro moderno deve o seu grande aporte intelectual como produtor e encenador do teatro austríaco, tornando-se famoso pelas suas grandes produções. As suas experiências apresentaram-se em diversas formas e estilos teatrais. Na montagem da pantomima religiosa “O Milagre”, reformou o interior de um teatro, a fim de dar a impressão de uma catedral. Famosa foi a sua encenação da peça, de William Shakespeare, “Sonho de uma Noite de Verão”, que mais tarde realizou no cinema. Em 1920, fundou o Festival de Teatro de Salzburgo, na Áustria. Max Reinhardt, por ser de origem judaica, quando os nazis tomaram o poder, emigrou para os Estados Unidos da América, naturalizando-se cidadão norte-americano, em 1940.
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Duas recordações de Lima
No ano de 1971, viajei com um grupo de 12 companheiros a Manizales, na Colômbia. Íamos como grupo de teatro universitario da minha cidade, Concepción, para participar no mais famoso festival de teatro desse país. Foi necessário atravessar Peru e o Equador para alcançarmos o nosso destino. No autocarro que nos transportou, de Santiago para Lima, travei amizade com o motorista, o senhor Quispe, o qual, em sinal de simpatia para com o nosso grupo, nos convidou a ficar (a todos!) na sua casa, tanto na ida como no regresso. Nessa ocasião, tive também a possibilidade de conhecer uma das mais distintas marionetistas peruanas, Marcela Marroquín, herdeira de um legado familiar de teatro de fantoches e marionetas, que, ao morrer no ano de 2015, nos deixou esta breve frase: “No pasen un día sin crear.”
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Nota:
1 – “La Flor de la Canela” é considerada, por muitos peruanos, como uma espécie de hino, sendo também a valsa peruana mais executada no Mundo. A autora, Chabuca Granda, dedicou essa canção a Victoria Angulo de Loyola, mulata, nascida em Barranco, em 21 de Julho de 1891, onde passou a infância.
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31/07/2023