Farinha do mesmo saco: a propósito da eleição de Trump
Já aquando das eleições em França, a questão era basicamente apresentada na mesma, como agora nas presidenciais norte-americanas, no universo da comunicação: o eleitorado, sobretudo dirigindo-se a sectores de maior massa crítica, teria de escolher entre o que estava (leia-se: os faustosos fautores da “globalização” neoliberal) e os “neocons” (neoconservadores) populistas, fascizantes às claras ou fascistas às escondidas, como Donald Trump.
À partida, esse desiderato, parece uma questão com sentido, mas não é. Trata-se da mais completa falácia. O crescimento dos populismos fascizantes (quando não fascistas tout court) decorre, justamente, do abandono de amplos sectores populacionais do mundo do trabalho à sua sorte, os quais – à falta de alternativas de esquerda “radical”, que outrora propunham uma destruição total do modelo em vigor, e da rendição da social-democracia aos “encantos” do neoliberalismo – viram-se sem baú de esperança e se viram para a extrema-direita. Esta insinua promessas, que não vai cumprir, atractivas por falta de quaisquer outras que incluam imensos sectores que somam à sua exclusão económico-social a exclusão de representatividade e mesmo de discurso que lhes seja dirigido e contenha as suas grandes aflições. Não são solução para nada. Mas o que se lhes apresenta do outro lado nada é.
Assim, mesmo depois da clamorosa derrota do Partido Democrata, muito mais do que uma vitória de Trump, a facilidade com que permanece o discurso maniqueísta e reducionista de uma escolha unívoca, no sentido de dois pólos e nada mais, acentua-se. Os “derrotados” (porque derrotados sem comas são os povos propriamente ditos, numa ou noutra “solução”) tornam essa imensa mole humana numa “cambada de burros”, escondendo que, primeiro, essa “burrificação” resulta das suas políticas de um entretinimento de massas degradado e degradante e de uma suposta cultura mais elaborada a falar em circuito fechado, de si para si mesma, sobre temas que não são os prioritários para essa mesma maioria de excluídos; e, segundo, porque nem todo o voto ou o voto todo – no singular e na expressão colectiva – na extrema-direita é decorrente da ignorância: uma parte dele é um grito de protesto, por muito mau que seja o amplificador escolhido. Mas porque não teve outras escolhas. Pelo menos, em que pudesse acreditar: esta é que é a verdade.
De resto, se atentarmos na política externa sob a presidência de Joe Biden fica tudo ainda mais claro. Ela tomou em mãos o projecto Cheney (dos “neocons”) para fragmentar a Rússia – principalmente, para garantir a prevalência do petrodólar sobre o ouro e afastar os BRICS (grupo de países de mercado emergente em relação ao seu desenvolvimento económico) e, em segundo, conseguir o enfraquecimento da União Europeia (através da prevalência de câmbio internacional do dólar sobre o euro), e, assim, aumentar-lhe o grau de dependência económica, política e militar dos Estados Unidos da América (EUA).
Nisto, o Partido Democrata, sob esta liderança, cumpre em absoluto, em política externa, o programa ideológico e estratégico dos “neocons”. Aliás, já sob a presidência de Barack Obama, em contraponto a alguns aspectos de política keynesiana interna, correspondeu, no plano externo, uma das mais agressivas e “interventivas” fases da agressão norte-americana a países soberanos, ao contrário da administração Trump, aquela onde menos intervenções militares externas terão existido.
Pode custar dizê-lo, mas é factual. Talvez porque, neste particular, o registo histórico mostra-nos que, tendencialmente, as presidências republicanas são mais moderadas na agressividade externa. Não se gosta? Mas é verdade. Não porque sejam “melhores”, mas pela sua matriz política identitária. Isto é, talvez, porque é “axialmente” isolacionista na economia e, consequentemente, menos virada para o domínio directo de uniformização “comportamental” dos mercados externos, antes os esmagando por via financeira e de exclusão da produção de consumo mundial.
Acresce que, neste contexto – tal como no Processo Revolucionário em Curso (PREC) em Portugal, o Centro Democrático Social (CDS) dizia-se pelo personalismo socialista (conceito difícil de entender) – as direitas “centristas”, hoje e um pouco por todo o Ocidente, vão-se contaminando pelos discursos mais reaccionários da extrema-direita. E se, nesse PREC, quem não integrasse o socialismo (mais moderado ou mais radical, mais alinhado com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS – ou com a China ou com a Internacional Socialista, mais tradicional ou mais alternativo) corria o “risco” de ser olhado como fascista, hoje, não se ser neoliberal é sinal de se ser comunista ou por lá muito perto. Até na terminologia se nota isso: a caracterização do sistema político dominante no Hemisfério Norte (e, muitas vezes, formalmente adoptado no Hemisfério Sul) é nomeado como “democracia liberal”, substituindo-se à designação tradicional de “democracia representativa”. Suponho mesmo que, não pondo a autoria, a transcrição de algumas partes, significativas, de discursos de Winston Churchill ou de Charles de Gaulle ou da Democracia Cristã italiana, arriscam-se a ser, nesta actual ordem mundial, identificada pelos “comentaristas” de serviço na comunicação social e nas redes sociais como expressão ideológica comunista!
Aliás, também o deslizamento ingénuo das esquerdas, num todo, para a direita é visível na mudança, em menos de sete anos, da distanciação de Jean-Luc Mélenchon, na segunda volta das eleições presidenciais francesas e no engajamento nas eleições legislativas mais recentes. Entre a recusa de uma escolha entre Marine Le Pen e Emmanuel Macron, salvaguardando um programa-outro para médio prazo, e o Front de Gauche recomendar o voto táctico em Macron, nos círculos onde as esquerdas não tinham possibilidade electiva, há uma abdicação de autonomia, pelo menos, nas próprias convicções de êxito, dessas esquerdas como um todo. E como esta abdicação não se centrou em mais do que uma opção táctica, é claro que teve como “prémio” a escolha de incidência governativa de Macron não nesses recentes compagnons de route, mas na inclusão dos seus adversários da extrema-direita.
De resto, esta mesma ambiguidade na recusa de uma clarificação de comunhão programática, também nos EUA, se plasma em Bernie Sanders. Ele vem, agora, dizer – e bem – que não devia espantar o facto de as classes trabalhadoras terem abandonado o Partido Democrata, pois este as abandonara antes, mas não teve a lucidez suficiente, anterior, para se distanciar da liderança representada por Harris-Biden nesse mesmo partido. Talvez o único que a tenha tido, embora com uma posição muito discutível, ainda que em nome da Paz, foi Robert Kennedy Júnior. Mas isso levar-nos-ia para um assunto que exige uma longa exposição e, ainda assim, auto-interrogativa.
Certo é que a escolha entre “neocons” e neoliberais é uma ilusão. A grande falácia (do que ainda é dominante: um modelo neoliberal de escala globalizada, globalizante e globalizadora) é uma forma de esconder que – e reconheço que muitos se autoconvencem mesmo de que não – são farinha do mesmo saco dos únicos “opositores alternativos” que, como tal, admitem: os “neocons”. Mas são. Escolha real – para se opor ao que une de essencial uns e outros e o que, eleitoralmente, o mundo do trabalho rejeita, “caindo” nos braços da extrema-direita – seria um programa da social-democracia, que seja, de facto, aliado à democracia cristã (recuperada e de votos renovados postulados do social-cristianismo) e mesmo integrando as esquerdas “radicais” (na base do reconhecimento por estas da necessidade imediata de aceitar um “compromisso histórico”), com a flexibilidade ideológica, de todas as partes, para pôr como prioritária a recuperação dos excluídos e dos abandonados deste “establishment”. Não apenas, nem principalmente, para captar os votos, mas para devolver-lhes a esperança, o sentido de justiça e o direito a serem tomados em conta.
De resto, este “establishment” (o que está e quer ficar numa política de “ou nós ou o dilúvio”), protagonizado por dirigentes políticos e também por jornalistas (?) e intelectuais (?), apenas se distingue, em termos de resultados de fundo, dos populismos de extrema-direita nas matérias de costumes (e até ver) e no “nojo” que sente pelo povo-povo, enquanto o outro se mistura com ele para igualmente o espoliar. Mesmo em questões como a imigração, o que distingue uns e outros são timings: os “neoliberais” consideram que servem para “importar” mão-de-obra escrava quando é necessária e os “neocons” insistem em a exportar quando é excedentária. Mas isso também, em pormenor, requer uma reflexão própria mais ou menos longa e tratada com coragem. E não com trejeitos wokistas, que roçam um paternalismo neocolonialista e alimentam o regresso ao discurso colonialista.
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Nota do Director:
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14/11/2024