Fernando Mora Ramos: “Caldas é a nossa Sierra Maestra”

 Fernando Mora Ramos: “Caldas é a nossa Sierra Maestra”

Fernando Mora Ramos com Franco Ceraolo (cenógrafo de cinema), no Clube Naval da Graciosa, ensaios de “Mulher de Porto Pim”, de Antonio Tabucchi. (teatrodarainha.pt)

É obra: faz este mês de março 40 anos que o encenador e ator Fernando Mora Ramos criou o Teatro da Rainha. Com um percurso de trabalho e de formação feito em Itália e França, e ainda nas margens dos grandes centros, Fernando Mora Ramos assume que aquilo que verdadeiramente o move é um certo espírito de “guerrilha, essa vontade de rumar contra o conservadorismo e as ideias feitas, a cristalização da vida em percursos de vazio e ostentação pechisbeque”.

Nestes tempos muito marcados, como diz, por uma “barbárie pimba”, alerta, a meio da conversa, para o facto de que “o teatro é um fenómeno muito complexo e mais velho do que a Igreja Católica”. Daí, argumentar: “Devíamos ter um Papa e um Vaticano do teatro, além das reservas de ouro.”

É com este desassossego que o Teatro da Rainha se apresenta e mantém ao longo de tantos anos. Com sede nas Caldas, a companhia revela um percurso consistente e sem concessões de gosto, assumindo-se como um coletivo de repertório – que o tem levado à cena em centenas de espetáculos, em itinerância pelo país e estrangeiro. Este, o pretexto para a demorada conversa – como devem ser todas as escutas jornalísticas – com o diretor artístico do Teatro da Rainha.

Daí, a inevitável revisitação aos “sonhos” e utopias cénicas pós-25 de abril, às experiências de descentralização cultural e teatral, ao questionamento sobre a existência ou não de políticas públicas de cultura – e de teatro – em Portugal.

Mas este foi também o reencontro entre dois amigos de longa data, aqui representando papéis diferentes – jornalista e encenador – que a transparência jornalística impõe que se explicite e torne claro, e por tal motivo se decidiu que, ao contrário do que é habitual nos rituais mediáticos, mantivéssemos a informalidade de trato que pontua o nosso relacionamento, sem deixar, todavia, qualquer pergunta por fazer.

Fernando Mora Ramos com José Carlos Faria e Fábio Costa (ao fundo), vendo-se também os actoresTiago Moreira (de costas) e Hâmbar de Sousa, em ensaios de “Jorge Patego ou o Marido Humilhado”, uma comédia de Molière. (teatrodarainha.pt)

sinalAberto – Comecemos pelo óbvio e pelo que nos trouxe a este encontro: 106 criações em 40 anos de atividade. Muito telegráfica e contabilisticamente falando, é o balanço do Teatro da Rainha. Tantos anos e espetáculos depois desse momento fundador da companhia, o que é que mudou mais: o país ou a oferta teatral?

Fernando Mora Ramos – Diria que o país mudou muito. Quando começámos, e para mim isso significa 1975, em Évora, o nosso propósito era o de uma ação integrada num processo democrático. Digo 75 porque em 85, quando iniciámos a segunda fase da descentralização – aquela que beneficia do balanço produtivo em termos prospetivos dos erros dos dez primeiros anos de teatro pós-abril –, o que estava em jogo era ainda o efeito propulsor (roubado ao Berlinguer, que dizia que o da revolução de outubro se esgotara) da revolução de abril. De lá para cá, com a integração europeia primeiro e depois com a direitização do universo da política partidária que agora nos conduz ao fascismo e ao neofascismo aliados à inteligência artificial (diz o José Gil), os sinais de regressão democrática são aterradores.

Fernando Mora Ramos com José Carlos Faria e Victor Santos, em “In Tenebris / Tróika City”, poemas e canções de Bertolt Brecht.(Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

sA – Mas, quando começas por falar de Évora, referes a ideia de uma ação integrada. Não foi concretizada?

FMR A integração foi ainda um momento de aprofundamento do fazer e das condições do fazer, mas entre nós, não se deu. Isso teria significado uma estruturação das capacidades de criação, das entidades de criação, semelhante à dos países europeus de longas tradições teatrais, a Itália (com os seus Stabile), a Inglaterra (com um sector público fortíssimo) a Alemanha (com os teatros nacionais dos estados) e a França (com os centros dramáticos e os nacionais). Claro que também há exemplos interessantes no Norte da Europa, mas não se comparam às tradições destes outros que referi, mesmo pensando em Ibsen e em Strindberg – obviamente, temos o Dramaten, dirigido por Bergman, mas não temos aquela profusão de teatros franceses que a descentralização anticentralista em França, país macrocéfalo, trouxe. Hoje, lamentavelmente, voltamos em força à macrocefalia por outras vias – por exemplo, Avignon, o festival, é uma espécie de acontecimento parisiense na província, um événement chique e frick.  Claro que as tradições são relevantes, pois integram o que poderíamos dizer pertencer a uma identidade de imaginário de país, são formação cultural cívica – as crianças inglesas sabem de Hamlet e de Ofélia, de Julieta e de Romeu, sabem sonetos de amor; e as francesas conhecem Esganarelo e Tartufo, o Misantropo e Dom João.

José Carlos Faria e Paulo Calatré, em “Fragmentos para Teatro – II”, de Samuel Beckett. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

Repara: Shakespeare, Molière, Goldoni, Marivaux, Kleist, Goethe, etc., e, mais tarde, Pirandello, Brecht, Beckett, Crimp, etc., estiveram na esteira do que, no pós-guerra, obrigou os tais países europeus a dimensionar as estruturas de criação de modo antifascista, estruturas da democracia, e também para responder às necessidades da, entretanto, afirmada disciplina da encenação – surge com André Antoine, com Stanislavski e vem dos Meininger… O que não aconteceu, por exemplo, também na Grécia, que ficou lá para trás como nós, mesmo tendo sido o farol dos universos teatrais europeus; e, infelizmente, também para a vizinha Espanha, que não esteve à altura da tradição do Século de Ouro, de Cervantes, de Calderón de la Barca, de Tirso de Molina, de Lope de Vega e de Lorca e Rafael Alberti.

José Alegria e Rosário Gonzaga, na peça “Arlequim Polido pelo Amor”, de Marivaux. (Créditos fotográficos: Nuno Finote – teatrodarainha.pt)

sA – E Portugal?

FMR Portugal mudou no sentido de manter irrelevante uma atividade que será sempre esteio da democracia, mas em que há muita borbulha e espuma. Há pouco enraizamento de uma mentalidade crítica e cultural nascida de uma intensa atividade participada – era Jorge Sampaio que falava muito de uma “democracia participada”, essa democracia é uma democracia cultural, não no sentido de que as pessoas ostentem citações de uma via culturalista, mas no sentido de interiorização no dia a dia e nas práticas de opinião pública de uma sensibilidade artística opinativamente crítica, livre – isso implica entrar em força nas escolas e no quotidiano que se vive, nos media e nas programações dos grandes equipamentos culturais entregues, hoje, à barbárie pimba, a bailes de bombeiros e a concursos de dinheiro, eletrodomésticos e automóveis.

“O país está na fossa, não há espaço para a atividade crítica da arte do teatro e há conformação de certas equipas ao interesse venal vigente. A oferta teatral diminuiu. Mesmo multiplicando-se as pequenas organizações teatrais, um pouco por todo o lado, o número de espectadores diminuiu, há mais gente a fazer – muito mais gente – e menos gente a ver. Há muitos mais fazedores e muito menos espectadores do que houve em certos momentos dos últimos 50 anos”

sA – E, todavia, a linguagem, mas, sobretudo, as grandes personagens do teatro vivem na nossa realidade política quotidiana.

FMR Exatamente. Não esquecer que o complexo de Édipo e de Electra vêm desta linguagem, o complexo de Hamlet, também assim conhecido, e que ser Tartufo designa, hoje, uma característica de certos políticos conservadores que vendem uma exemplaridade moldada na vida pública e praticam outra bem diferente na vida oculta – a linguagem do teatro, da dramaturgia, há muito penetrou o universo da política. Estes males e descobertas antropológicas foram escrutinados e refletidos, trabalhados, repetidamente revisitados, pela dramaturgia grega, pelos mitos que abordou. Já Muller dizia que nos mitos gregos está tudo contido, do gesto de Édipo ao de Medeia (elas andam aí), aos comportamentos de Ajax e de Aquiles (que nos lembram os hípernarcisos de hoje, mal maior) ao rapto amoroso de Helena (veja-se a história dos reféns que também são razão de guerra), aos amores filiais como dever mítico, ao gesto de Orestes penetrando no palácio e vingando o pai, etc. Para não falar de Aristófanes e da sua Paz, questionando a fundo a guerra e a corrupção engendrada, o negócio das armas, dos seus Pássaros [, fortemente questionadores da democracia, justamente ao ponto de irem para as nuvens fundar outra cidade, pois Atenas era só corrupção – estes dois últimos espetáculos fizemo-los. 

Peça “A Paz”, da autoria de Aristófanes. (teatrodarainha.pt)

sA – Mas, quando no início eu te perguntava acerca das mudanças entretanto ocorridas, queria que falasses também da tua visão acerca da oferta teatral.

FMR O país está na fossa, não há espaço para a atividade crítica da arte do teatro e há conformação de certas equipas ao interesse venal vigente. A oferta teatral diminuiu. Mesmo multiplicando-se as pequenas organizações teatrais, um pouco por todo o lado, o número de espectadores diminuiu, há mais gente a fazer – muito mais gente – e menos gente a ver. Há muitos mais fazedores e muito menos espectadores do que houve em certos momentos dos últimos 50 anos. No imediato pós-abril, o fenómeno era extraordinário. Lembro-me de fazer em Montargil um Daniel Valdez, numa casa do povo, para 800 espectadores, mais os que estavam em pé do que os sentados. Nos anos 1999/2000, o balanço de um ano teatral era de um milhão de espectadores nas salas em que havia teatro. E o caminho poderia ter sido outro, se não houvesse esse preconceito liberal de que fazer Shakespeare ou Marivaux é “orientar” o gosto cultural e que, portanto, não cabe ao Estado “orientar o gosto” – mas, alguma vez o Estado orientou o gosto? Se o tivesse feito com um mínimo de iluminação democrática, isto é considerar a Cultura um bem público como a Saúde, os Portugueses saberiam os versos de Camões e não confundiriam Salazar com um capitão de abril, nem o 25 de abril com o 5 de Outubro, nem desconheceriam datas históricas nem personalidades essenciais da construção do nosso presente. Agora, dizem que fazemos “marxismo cultural”. Coitado do Gil Vicente que nasceu leninista, por certo.

José Carlos Faria e Isabel Muñoz Cardoso, na peça “O Herdeiro da Aldeia”, de Marivaux. (Créditos fotográficos: Joaquim António Silva – teatrodarainha.pt)

sA – Uma companhia de repertório, como é o Teatro da Rainha, é sensível a modas e às chamadas tendências de “mercado”, que é outra palavra para designar públicos e audiências?

Victor Santos em “Falatório do Ruzante que Veio da Guerra”, de
Ângelo Beolco (1985). (teatrodarainha.pt)

FMR Nem por sombras. Seguimos uma política de repertório assente na diversidade das estruturas dramáticas do legado, tanto do clássico, em sentido estrito, como do contemporâneo – cada texto tem uma organização interna em que o lugar do espetador é pressentido. E se o material da peça de teatro tem um lugar nodal, isso não significa que dessa prática não faça parte uma dimensão experimental. Nada mais interessante sob o ponto de vista experimental, de trabalho de ensaio, de tentativa, que, por exemplo, a adaptação de um texto clássico – pegar no “Falatório do Ruzante de volta da guerra”, de Angelo Beolco, e transportá-lo para a primeira guerra mundial, fundindo o “Ruzante” com o “Charlot das trincheiras”, foi uma cirurgia estética, dramatúrgica e cénica. E a guerra surgiu na sua dimensão monstruosa como algo que transcende os tempos e que está sempre em cena, na cena da História.

Outras dimensões desta prática de repertório têm também lugar, nomeadamente a conversão de textos que não são para cena em objetos teatrais e cénicos. Temo-lo feito, recentemente, com textos do grande clássico contemporâneo Alberto Pimenta.

Chegamos aos espetadores por vias diretas além das publicitadas, por via informativa além dos spots e outros, ao lado de uma política de reportório, praticamos uma política de públicos, de formação, de atração, de informação, de sedução. E essa é essencialmente, como o teatro, uma prática presencial.

“Passámos longas estadias em Lisboa. Houve um momento em que tivemos cinco espetáculos em Lisboa, num curto espaço de tempo – Caldas era a nossa Sierra Maestra. No auditório do BES, na Comuna, no Instituto Franco-Português, no Trindade, mais tarde, no Dona Maria, na sala chamada experimental. Isso afirmou rapidamente a companhia no plano nacional. Corremos o país e fizemos longas residências em cidades médias, Coimbra, Évora. E no Porto, inúmeras vezes. Em Braga, na Guarda, em Viseu, etc. E em muita pequena terra, muita terra sem nome, digamos assim, no Ciborro, em São Tiago de Rio de Moinhos, na Bufarda, por exemplo. Terras com nome, mas sem nome, no meu propósito aqui, isto é, cus do mundo”

sA – Centremo-nos, então, naquilo que é a circunstância da companhia: Caldas Rainha. Porquê fundar e instalar numa pequena cidade de província (para usar o termo lisboeta, quando se fala do resto do país), um grupo de teatro profissional, precisamente numa altura – 1985 – em que o furor da ação cultural pós-25 de abril se estava a esfumar?

FMR Foi a revolução a ditar a escolha, ainda foi a revolução, como tu dizes a esfumar os seus efeitos, mas ainda lá – nunca houve coincidência entre tempo histórico e políticas culturais ajustadas, a nossa política cultural, a sua ausência, os remendos que a compõem, é feita de acasos e casos, de acidentes e originalidades – estamos nós numa dada fase de maturação, estará a política vinda dos gestores estatais a fazer um pino qualquer, uma regressão, um avanço relativo, o que for – nunca houve linhas de coerência.

Ensaio de “Ajax, Regresso(s)”, de Jean-Pierre Sarrazac, com Fábio Costa, Nuno Machado, Isabel Lopes, João Costa, Beatriz Antunes e Marta Taveira. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

E foi o convite que me foi feito pelo então presidente da Casa da Cultura, José de Sousa. Ele disse-me: tens aqui uma sala, vem para as Caldas e crias uma companhia de teatro. Há inúmeras razões para que tenha acontecido.

A primeira foi ter existido Évora, antes, com o trabalho do Mário Barradas, no Teatro Garcia de Resende. Fiz parte dessa equipa pioneira. E esses anos de Évora e de Reforma Agrária foram as minhas universidades. Foram anos determinantes, por duas razões: por ter trabalhado num teatro à italiana e conhecido a sua maquinaria e magias – as limitações são o facto de trabalharmos num cenário fixo, a sala mais a sua arquitetura decorativa – e por ter apanhado o início da criação de uma atividade profissional no meio de um deserto, de um ambiente cultural precário e até limitado pelas lógicas preconceituosas, pelas ideias que “o teatro é isto e não aquilo”, pelo amadorismo que agora regressa em força.

“[…] o ponto de vista que me levou a aceitar esse desafio – e tive outros, por exemplo, para codirigir a Cornucópia (a convite do Luís Miguel Cintra) e, mais tarde, do Ricardo Pais para fundar o DRAMAT – foi a seguinte: tens um local de trabalho, as Caldas serão, além de espaço de residência, a base da guerrilha da inseminação teatral nacional. Isso significava que parte essencial do nosso trabalho era em digressão, o que hoje é muito difícil. Houve um ano em que fizemos 100 espetáculos, sempre a circular”

sA – Isso do amadorismo dá pano para mangas, lá iremos. Primeiro, quero que me fales do Mário Barradas, com quem, se bem me lembro, já tinhas trabalhado na então Lourenço Marques, em 1973, enquanto jovem do Teatro de Estudantes da Universidade de Moçambique (TEUM), numa peça do Brecht, “A Exceção e a Regra”. E, anos depois, decides que é na companhia dele que vais fazer o teu tirocínio – posso dizer assim? – profissional. Fala lá desse tempo em que tudo parecia possível.

FMR Vindo da Escola do TNS (Teatro Nacional de Estrasburgo), a melhor da Europa naqueles anos 60/70, o Barradas quis fundar um centro dramático. Infelizmente, levou a “astúcia brechtiana” (um certo modo de se relacionar com os poderes centrais e locais) demasiado longe. E como sabia que os centralistas de “esquerda”, na altura, não viabilizariam a criação de um centro dramático em Évora (não havia massa crítica diziam, nem em Lisboa, digo eu agora), batizou de Centro Cultural (ele abominava os centros culturais, dizia que eram uma via errada, de curiosos fascinados por tudo e mais um par de botas, sem núcleo anímico competente possível) o que foi, desde logo, inversamente ao nome, na sua prática real, uma tentativa de centro dramático. Só em 1990, com muita insistência minha, passou a CENDREV [Centro Dramático de Évora].

Mafalda Taveira e Mariana Reis, em “Às Duas Horas da Manhã”, de Falk Richter.(teatrodarainha.pt)

A segunda é que, nas Caldas, tinha havido no CCC (Conjunto Cénico Caldense) um trabalho teatral amador de qualidade, fizeram o “Canto del Fantoche Lusitano” (de Peter Weiss) e “Morte e Vida Severina” (de João Cabral de Melo Neto), dois textos relevantes. E havia ainda um Grupo de Trabalho Teatral, orientado pelo meu amigo Peixoto [ator José Peixoto], a fazer o que se fazia, então, um pouco por todo o lado (a falta de reportório era substancial), “As Espingardas da Mãe Carrar”, o texto de Brecht sobre a Guerra Civil de Espanha e também o “[La Farce de Maître] Pathelin”, célebre farsa de autor anónimo e fundo medieval. Havia uma movida. E o José de Sousa também punha ao dispor do projeto teatral emergente, além da sala de câmara de 100 lugares, uma equipa: o saudoso António Plácido, o José Carlos e outros colaboradores. Era o essencial para começar. Mesmo sem dinheiro. Entre 1985 e 1989, saltámos de jovem companhia para o apoio regular do Estado.

Primeiro ensaio de mesa da peça “Às Duas Horas da Manhã”, de Falk Richter. (teatrodarainha.pt)

Outra razão forte era que o ponto de vista que me levou a aceitar esse desafio – e tive outros, por exemplo, para codirigir a Cornucópia (a convite do Luís Miguel Cintra) e, mais tarde, do Ricardo Pais para fundar o DRAMAT – foi a seguinte: tens um local de trabalho, as Caldas serão, além de espaço de residência, a base da guerrilha da inseminação teatral nacional. Isso significava que parte essencial do nosso trabalho era em digressão, o que hoje é muito difícil. Houve um ano em que fizemos 100 espetáculos, sempre a circular. Sempre na estrada como se diz no Rock, creio. Pelo que estávamos em toda a parte. Passámos longas estadias em Lisboa. Houve um momento em que tivemos cinco espetáculos em Lisboa, num curto espaço de tempo – Caldas era a nossa Sierra Maestra. No auditório do BES, na Comuna, no Instituto Franco-Português, no Trindade, mais tarde, no Dona Maria, na sala chamada experimental. Isso afirmou rapidamente a companhia no plano nacional. Corremos o país e fizemos longas residências em cidade médias, Coimbra, Évora. E no Porto, inúmeras vezes. Em Braga, na Guarda, em Viseu, etc. E em muita pequena terra, muita terra sem nome, digamos assim, no Ciborro, em São Tiago de Rio de Moinhos, na Bufarda, por exemplo. Terras com nome, mas sem nome, no meu propósito aqui, isto é, cus do mundo.

“Havia um bezerro atado a uma ponta de uma corda que, em risco de cair numa falésia, estava amarrado a uma cadeira em cena. A corda que o segurava entrava pela chaminé. Um jogo à Irmãos Marx. Só tenho pena de não ter conseguido fazer um cenário em lego que caísse todo, no fim, como o Buster Keaton faz num filme seu”

sA – É interessante como dissolves o teu eu num nosso que é coletivo. Queres, sucintamente, apresentar algumas dessas pessoas?

FMR Fizemos um longo caminho. Em 40 anos, fomos rejuvenescendo a estrutura, o elenco e as equipas e, ao mesmo tempo, alargando projetos e propósitos.

Essencial nestes anos foi o trabalho da Isabel Lopes como tradutora/atriz e dramaturgista. São mais de 30 peças traduzidas para uma perspetiva teatral precisa. Não são exercícios de literatura, são traduções para cena. É o teatro logo no texto orientado para as relações entre corpos, entre poderes presenciais antevistos – ser actriz e dramaturgista alimenta a prática da tradução. E dou exemplos dessas experiências essenciais: o trabalho de levantamento do “Ella”, em Coimbra, aqui dirigindo o ator, as traduções dos Becketts, de “A Última Bobina”, de “Jogo do Fim, da “Comédia”, etc.; e dos Crimp, de “[Definitivamente as] Bahamas” e “Play House”. Agora, de “Na República da Felicidade”. E também dos Marivauxs e outros, dos Molières, etc. Este trabalho em parelha alimentou a minha visão das coisas, muito influenciado, pela positiva, com a minha aprendizagem em Paris III [Universidade Sorbonne Nouvelle], como aluno de Sarrazac.

Isabel Lopes e José Carlos Faria, em “O Fim do Princípio”, de Sean O’Casey. (teatrodarainha.pt)

O trabalho com o José Carlos também me alimentou. Fui cada vez mais tendo noção, em resultado do nosso trabalho conjunto, do que deve ser, na minha prática, o lugar da cenografia. Hoje, estou muito virado para a ideia de “instalação cenográfica”, mais do que para a ideia de cenário. Fizemos coisas bonitas nesse aspeto: logo no “Ruzante”, seis propostas para um resultado – disso gosto muito, gosto pouco de vias únicas. E “O Fim do Princípio”, em que entra como actor também. O cenário era uma máquina de cena, uma porta batente e uma chaminé maquinada que punham a magia a funcionar. Havia um bezerro atado a uma ponta de uma corda que, em risco de cair numa falésia, estava amarrado a uma cadeira em cena. A corda que o segurava entrava pela chaminé. Um jogo à Irmãos Marx. Só tenho pena de não ter conseguido fazer um cenário em lego que caísse todo, no fim, como o Buster Keaton faz num filme seu.

Essencial também foi o trabalho da Ana Pereira, todos estes anos, com a sua gestão criteriosa e ajudando a encontrar soluções produtivas para a atividade criativa, ajudando no guarda-roupa, nas lógicas de resolução das escolhas dos materiais para as cenografias, no esforço diretivo e em tantas mais frentes de trabalho.

FMR Agora, a equipa é outra. Se a Isabel e a Ana estão no jogo e o José Carlos continua, a equipa rejuvenesceu e temos, na equipa diretiva, o Henrique Fialho que, vindo da prática ensaística e literária, do conto e da poesia, está, ao mesmo tempo, seduzido pela prática teatral, cada vez mais dentro deste mundo. Depois de duas peças escritas por ele e levadas por mim a cena, está a fazer a sua primeira encenação – o Henrique é filósofo de formação –, em resultado de uma longa oficina de escrita. E, no fim do ano, encenará “Órfãos”, de Dennis Kelly, uma peça extraordinária e difícil.

Ensaio de mesa de “Na República da Felicidade”, de Martin Crimp. Na
fotografia, vemos Fernando Mora Ramos com Maria Reis.
(teatrodarainha.pt)

sA – Mas um coletivo com estas caraterísticas tem de se renovar. Como tem sido esse processo?

Olha, neste momento, com o Manuel Portela, com a Cecília Ferreira e com a Elisabete Marques, realizámos “Quem Está Aí?”, peça oficinada a quatro mãos. O Manuel [Manuel Portela, antigo diretor do Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, e atual diretor da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, onde é professor catedrático] conheces bem. É uma experiência de escrita partilhada que se converte, agora, num espetáculo, que estreou a 6 de março.

E temos também na direção da estrutura o Hâmbar de Sousa, um actor/iluminador, também aqui uma mistura de aptidões profissionais que é feliz. Está na casa dos 30, é toda uma prospetiva…

E tenho uma equipa de intérpretes bestial, com o Fábio Costa, um ator de uma intuição genial, de uma competência inexcedível, há dez anos comigo, com a Mafalda Taveira, uma sensibilidade, com o Nuno Machado, o Tiago Moreira, a Inês Barros e outra malta que se junta, como a Marta Taveira, ao nosso trabalho e com quem trabalho há mais de dez anos também. É uma equipa de trintões a que se continuam a juntar os sessentões Isabel e José Carlos. Mesmo o Henrique já pisou o palco, para usar uma expressão da gíria.

Da esquerda para a direita: Mariana Reis, José Carlos Faria, Fábio Costa, Diana Palmerston, Yolanda Baptista, Marta Taveira, Nuno Machado e Isabel Lopes, na peça “Na República da Felicidade”. (© TUNA – TNSJ)

E, nas novas frentes de trabalho, além de um projeto formativo dirigido a crianças e adolescentes, temos, há anos, uma coleção de teatro em corealização com a Companhia das Ilhas. Já chegámos aos 20 livros, uma maravilha. O livro de “Quem Está Aí?” já saiu. E sairá, em breve, na coleção do TNSJ [Teatro Nacional São João], nas edições Húmus, o “Na República da Felicidade”, de Martin Crimp.

“Hoje, isto é tudo uma loucura, quanto mais projetos menos espectadores, mais coisas que se consomem na voragem do tempo, na rapidez. A lógica espetacular sobrepôs-se à lógica estruturante que ainda não foi realizada (é como o tal aeroporto de Lisboa, o primeiro projeto creio que faz 70 anos). Em vez de haver estruturas capazes de viabilizar projetos a integrar-se no território, tens acontecimentos espetaculares à procura de uma celebridade instantânea. Vai tudo com a espuma, covas no “deserto que cresce”. É uma bela expressão do Nietzsche”

sA – Quando da criação do Teatro da Rainha, fora de Lisboa e do Porto, eram praticamente inexistentes companhias profissionais de teatro. Recordo-me do CENDREV, em Évora, de O Bando, em Palmela, e do Teatro Experimental de Cascais, que é, logo ali, às portas de Lisboa e no prolongamento da linha do Estoril – mais nada. Porquê esta aposta que tinha tudo para dar errado?

FMR João, o CENDREV é uma invenção nossa. O Barradas, em desespero, quis que voltássemos a Évora. Eu tinha saído de Évora, em 1981, em conflito com ele. É o célebre conflito com o pai, com o mestre – tivemos pegas monumentais, de natureza sensível, estético-política, na Praça do Giraldo, muitas vezes, depois dos ensaios, noite dentro ou fins de tarde dentro. Até que um dia me disse: “Então, faz a tua.” E eu disse-lhe: “Sim, vou fazer.” Foram quase duelos, como em cena já tinha acontecido no “Medida por Medida”, quando ele fazia o Duque e eu o maldizente Lúcio, o extravagante, figura meio anarquista. Isso foi nessas datas de 80/81. Muito mais tarde, passados quase 10 anos, uma noite em Lisboa, aos Anjos, onde tinha casa, cantou-nos um gigantesco “choradinho” – noite muito agitada e bem bebida, mal fodida, digamos. Isto já em finais de 80. Nessa reunião, estava ele, por Évora – ele era Évora, nessa altura não existia mais ninguém com cabeça projetual, o Varela tinha saído – e estava, o Victor Santos e o Faria. Nós, pelo nosso lado, tínhamos o Edgar Marcelo, um colaborador importante, contra este regresso a Évora. Ele tinha a perceção de que havia um lado “golpista”.

Peça “In Tenebris”, de Bertolt Brecht, com José Carlos Faria e Victor Santos. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

Fundámos então o CENDREV, sigla que sugeri. E, nesses anos, além das criações CENDREV com “marca TR” (“A Ilusão Cómica”, “Clérigos e Almocreves”, “As Manias da Vilegiatura”, “Físicos e Índia”, “Um, nenhum e cem mil”, etc.) fizemos um conjunto de criações mantendo a autonomia jurídica enquanto Teatro da Rainha.

No entrementes, tentei lançar a ATO, Associação de Teatro do Oeste, e outros projetos.

sA – Ouvindo-te e sabendo que ainda andaste por Coimbra e pelo Porto, fica a ideia de uma espécie de andarilho teatral, borboletanto de companhia em companhia, de espaço cénico em espaço cénico.

FMR Em 94, estávamos na Lisboa 94, na Culturgest, a fazer o Pirandello, com “Esta Noite Improvisa-se”.

Antes dessa data, em 1993, estava em Coimbra, a fazer o “Ella”, eu mais a Isabel, que vinha de Évora, na “rodoviária dos falsos expressos”, aos dois dias por semana, pois aquela gente de Évora foi pouco generosa. Eu trabalhava com a Amélia Varejão, a mais destacada mestra de costura do teatro português, fazia de minha mãe. Era uma atriz interessante, uma bela mulher em cena (e fora dela), com a sua farta cabeleira, sem esses champôs de enchimento e volume, verdadeira, uma vida inacreditável – uma noite guardou o Agostinho Neto em casa, no Porto, estava clandestino…

Peça “Ella”, de Herbert Achternbusch, com Fernando Mora Ramos. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

E, logo a seguir, em 1995, fizemos em Moçambique o “De Volta da Guerra”, na Casa Velha [e Produções Olá], com o Mário Mabjaia e o Alexandre, com a Josefina e com o Machado da Graça e outros. Nessa altura – depois de Moçambique –, fui vice-presidente da Cena Lusófona.

Na verdade, quando aparecemos em 84/85, existia a Companhia de Teatro de Braga e não sei se O semeador [– Grupo de Cantares de] Portalegre. Évora, claro!

O São João surge mais tarde. No Porto, existia um TEP já esquecido do António Pedro, mas o teatrinho estava lá. Depois, venderam-no a um banco, creio. Era ali à frente do Abadia, o restaurante. É mais tarde que surgem outros teatros no território. Ah, já existia o Teatro das Beiras, na Covilhã! Era tudo muito precário e dependente de humores concursais muito limitados de finanças.

Hoje, isto é tudo uma loucura, quanto mais projetos menos espectadores, mais coisas que se consomem na voragem do tempo, na rapidez. A lógica espetacular sobrepôs-se à lógica estruturante que ainda não foi realizada (é como o tal aeroporto de Lisboa, o primeiro projeto creio que faz 70 anos). Em vez de haver estruturas capazes de viabilizar projetos a integrar-se no território, tens acontecimentos espetaculares à procura de uma celebridade instantânea. Vai tudo com a espuma, covas no “deserto que cresce”. É uma bela expressão do Nietzsche.

“Ter 12 pessoas fixas na estrutura é viver um inferno salarial. É num controlo radical das despesas e na reciclagem que apostamos. A estrutura come uma percentagem maior do apoio, o que desequilibra as coisas, prejudicando o trabalho de criação. As montagens fazem-se reconvertendo cenários e guarda-roupa e recorrendo ao gratuito artístico. As encenações e as cenografias não são pagas”

sA – A companhia desfrutou de apoios locais, designadamente por parte da Câmara Municipal, para a sua instalação, nas Caldas, e para o seu funcionamento ao longo destes anos?

FMR Não no primeiro momento, mas ao fim de algum tempo – arrancámos com 400 contos (dois mil euros). E os primeiros cinco anos foram duros, até que, em 1989, tivemos apoio regular do Estado. Muitas vezes, não tivemos salário nem tínhamos dinheiro para os descontos para a Segurança Social.

Quando, em 1990, regressei a Évora e nos associámos ao CCE, as coisas com a Câmara também andavam mal.

Isso ajudou a fundar o CENDREV. Na altura, tinha estado nos Estados Gerais e, aí, surgira a ideia dos Centros Regionais das Artes do Espetáculo – foi um combate meu com o Rui Nery, que se decidiu assim. Eu batalhava pelo teatro. O Rui tinha uma perspetiva mais interdisciplinar, aliás, muito coerente também. Um centro dramático, no entanto, é a meu ver, continuo na luta, mais facilmente uma casa da música que uma Casa da Música será um centro teatral. Pelo que acabei por ir para Évora com dinheiro que lá se esgotara.

Ensaio de mesa de “Falatório do Ruzante que Veio da Guerra”, com Victor Santos, António Plácido, Fernando Mora Ramos, Isabel Roxo e, de costas, António Neves Pedro. (teatrodarainha.pt)

No regresso a Caldas, mais tarde, os apoios foram imediatos – aliás, foi o presidente Fernando Costa que nos convidou a regressar e nos deu logo casa, esta em que estamos – e, desde então, têm vindo num crescendo, numa lógica a caminho do sustentável. Ainda não estamos lá. Ter 12 pessoas fixas na estrutura é viver um inferno salarial. É num controlo radical das despesas e na reciclagem que apostamos. A estrutura come uma percentagem maior do apoio, o que desequilibra as coisas, prejudicando o trabalho de criação. As montagens fazem-se reconvertendo cenários e guarda-roupa e recorrendo ao gratuito artístico. As encenações e as cenografias não são pagas.

Contudo, temos relações de confiança e projeto com a autarquia. Já as tínhamos com as autarquias anteriores, do PSD [Partido Social Democrata]. Com o Dr. Costa, lançámos o novo edifício, em moldes que foram ganhando novas qualidades. Com o Dr. Tinta Ferreira, começámos o projeto do Espetáculo de Verão que, entretanto, se tornou um ritual caldense – espetáculo oferecido à cidade e realizado ao ar livre, que está sempre esgotado. Com a atual câmara, os apoios mantiveram-se e ganharam novas qualidades, assim como as colaborações.

sA – Tanto quanto sei, há muito que existe o projeto – e a obra creio já ter sido iniciada – de construção de um edifício de raiz para funcionamento da companhia. Em que ponto está o processo?

FMR Borregou, como se diz em arcaico. Houve problemas com as características do terreno e depois veio o confinamento. A empresa aproveitou para se pisgar. Isto depois de realizada uma parte importante da obra, isto é, a criação de um chão, após se descobrir que aquele espaço tinha sido um areeiro e que era meio movediço. A casa ia afundar como um navio.

Continuamos a combater para que a obra retome um caminho. Já fizemos adaptações e encontrámos um modo de viabilizar o edifício, arrancando por partes, por fases. Fazendo primeiro a sala de espetáculos e depois os espaços adjacentes, um anfiteatro e uma sala de ensaios. Como estamos em transição geracional em busca de uma coerência futura, espero que os que vierem, dentro de uns anos, não desistam do teatro e levem o projeto para a frente. Se, entretanto, avançar, melhor.

Fábio Costa em “Às Duas da Manhã”, de Falk Richter. (Créditos fotográficos: Margarida Araújo – teatrodarainha.pt)

sA – Falemos então de políticas culturais – ou da sua ausência – e do lugar do teatro nas cidades contemporâneas. Ou deveríamos antes usar a expressão “democracias insignificantes”?

FMR Falando do lugar do teatro numa política cultural, teríamos de gerar uma prospetiva, um horizonte de expectativa fundado num plano, já que não existe lugar nenhum para o teatro (a tal Inscrição de que fala José Gil), e teríamos de pensar em vários eixos de concretização: aquele que diz respeito ao teatro na educação geral e convencional, primária, secundária e superior; o que diz respeito ao teatro como missão cívica, como sociedade de praticantes na sua relação com a democracia; e teríamos de pensar na dimensão substantiva que é a do teatro como liberdade de expressão artística, como tradição e inovação, como arte independente e como legado fazendo parte – integrado – de um modelo democrático. A democracia só é adulta quando tem dentro de si mesma o que a escrutina e critica, seja com a crueza que for.

“Na atualidade, a confusão é com o mercado. Nem tudo é rendível sendo matéria espiritual, intelectual, sofisticada. No entanto, lá estão os comentadores do costume a anatematizá-lo, a falar de subsídio-dependentes e de outras cretinices despropositadas. Isto numa era de todos os subsídios, a começar pelas vacas europeias, francesas ou açorianas e pela própria política (os partidos são híper-subsidiados, apesar de ser através deles que os negócios se tramam), e a acabar no gasóleo agrícola e nas ajudas de custo chorudas aos burocratas do status quo, da involução na continuidade em que nos encontramos”

sA – E a Cultura, neste caso o teatro, pode ser um elemento enriquecedor desse processo de escrutínio?

FMR Sei que passamos a vida a falar da Grécia Clássica. Essa Idade de Ouro do fenómeno teatral reunia as condições determinantes e essenciais da sua existência, um lugar na sociedade, um mecenato de suporte, autores/atores com prestígio social para serem equiparados a visionários, a “profetas culturais”, um extraordinário edifício e um calendário de existência interior ao modelo de vida desses gregos que, com este paradigma, (co)existiram. Aí o seu lugar era notável, tanto no plano institucional como no plano social e crítico.

A crítica dos poderes e dos poderosos, a crítica da democracia, o exercício de uma liberdade livre – passe o exagero – tinha lugar nesses festivais de teatro que se realizavam, pelo menos, duas vezes por ano. Isto para além de ser um teatro que, apesar dos escravos, era tendencialmente para todos, incluindo os escravos. Era um momento de crítica política, a par com o que já era um parlamento – como alguém disse era “um outro da política”, a política por um meio que não era a política em sentido estrito, partidário e parlamentar, um “outro” que gerava debate e ponto de vista generalizados, uma opinião teatral como opinião pública.

Isabel Lopes em “A Paz”, de Aristófanes. (Créditos fotográficos: Margarida Araújo – teatrodarainha.pt)

Isso explica as comédias de Aristófanes, a crítica dos generais, a crítica da corrupção – ele que também ajudou a incriminar Sócrates –, como explica as tragédias que treinavam variações dos mitos que eram pertença intelectual e subjetiva de todos, todos conheciam, pois dentro deles viviam. Era uma cidade com um público de iniciados que ali encontrava, no teatro, o que não encontrava nessas outras formas de expressão política mais pertença de grupos de interesse e de lutas partidárias. O teatro realizava o que correspondia ao interesse geral.

Na atualidade, a confusão é com o mercado. Nem tudo é rendível sendo matéria espiritual, intelectual, sofisticada. No entanto, lá estão os comentadores do costume a anatematizá-lo, a falar de subsídio-dependentes e de outras cretinices despropositadas. Isto numa era de todos os subsídios, a começar pelas vacas europeias, francesas ou açorianas e pela própria política (os partidos são híper-subsidiados, apesar de ser através deles que os negócios se tramam), e a acabar no gasóleo agrícola e nas ajudas de custo chorudas aos burocratas do status quo, da involução na continuidade em que nos encontramos.

Portanto, e respondendo diretamente à pergunta, da mesma maneira que sem hospitais públicos não há Serviço Nacional de Saúde para todos, sem escolas públicas não há ensino qualificado nacional para todos. Sem teatros públicos não há serviço público teatral para todos.

Nuno Machado, Fábio Costa, Tiago Moreira, Mafalda Taveira e Beatriz Antunes, em “Às Duas da Manhã”, de Falk  Richter. (teatrodarainha.pt)

sA – A pergunta, como se depreende, estava ancorada no texto que  publicaste em 2009 – “Teatro português: para uma superação da insignificância” – no livro “Quatro Ensaios à Boca de Cena”, em que se discorre sobre o papel das artes, com o teatro como figura principal. Nesse texto, que é todo um programa de ação, falas, a certa altura, da pressa que “mata o pensável”. Suscitar a dúvida, apelar à reflexão são hoje atos de resistência, de quase rebeldia?

FMR Completamente de acordo. Parar para repensar, para criticar, para pôr em causa a pragmática que faz fluir os interesses negociais e especuladores, as mentiras sensacionalistas, os negócios por detrás da nuvem negra mediática do momento, no dia a dia – todos os dias, há atividade bolsista e a “economia” é a religião da hora produzida pelas fake news e outras manobras na hora.

Parar é pôr um pau na engrenagem dos negócios e é essencial, pois, sem parar não há distância e sem distância não há reflexão, pensamento. Os negócios comandam todos os presentes, o crédito, o financismo, o dinheiro que gera dinheiro e é avesso à economia real, à produtividade que tenha reflexo nas condições de vida dos humanos. A velocidade do clique comanda a corrida para o abismo. Gregory Motton escreve isso num monólogo em que fez um balanço do milénio e fala de nos dirigirmos a grande velocidade contra um muro, sem travões. Aí se fala do desrespeito pelos mortos como desprezo pela memória, esta afirmação de um tempo só superficial transformado em todo o real.

Já Bartleby dizia: “[…] preferia não o fazer.” E, muito antes, o arlequim do Goldoni, no “Amante Militar”, virava sempre à esquerda, quando diziam “direita volver”. Isso cria a confusão indesejada, a areia que emperra a máquina e que faz pensar. O cómico faz pensar, o gag destrona o preconceito, põe o prestígio balofo de rastos, sob a intensidade das gargalhadas à solta.

O modelo dominante é o do seguidismo inconsciente e maquinal, em nome dos paraísos imediatos, sexuais, automobilizados, de horizontes sem fim, de reencontro com uma Natureza imaculada que, entretanto, se destruiu e é inexistente. Está tudo poluído e a população mundial já excede os recursos naturais disponíveis. Claro, o trumpismo e outros sucedâneos e, antes dele, os berlusconhos, vão tratando de liquidar populações, de as mandar para a vala comum sempre aberta, ou de as meter em campos de sobrevivência precária inventados na hora. As propostas de uma Riviera para Gaza são elucidativas. E tudo dito sem qualquer pudor. Como se fosse líder de um pelotão de fuzilamento globalizado, assumindo um projeto de limpeza étnica – a besta desrespeita o Tribunal Penal Internacional e o melhor desta política liberal anterior, já de si tão limitada e destrutiva.

António Durães em “Letra M” (baseada na peça “O Lavrador da Boémia”, de Saaz Johannes Von Sazz), vendo-se ao fundo uma pintura de João Vieira. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

Na realidade, travar e parar são atos libertários, princípios de emancipação em processo. Não propriamente para desatar a partir tudo. Eles vivem bem com a destruição. Isso gera dinheiro, seguros, compensações. É economia e entra nos orçamentos. A capacidade de recuperar do que quer que sejam excessos é a arte destes políticos empresários, oligarcas – inventam compensações e indemnizações a torto e a direito, viradas para os seus bolsos ou dos próximos. Lembras-te da reforma agrária?

Interromper a ação, como no teatro, numa peça, é possibilitar esse olhar que se funda na observação do que, sendo normal, é afinal profundamente fabricado e estranho, não natural. Nós aprendemos isso com o “efeito de estranheza” brechtiano, desde os tempos antes de abril. Roland Barthes descreve muito bem esses processos de naturalização de tudo, aqueles processos que levam as pessoas a dizer: é assim, é a vida, sempre foi assim, assim será, essa monstruosidade de dizer “é natural”. O que, sabemos, é uma gigantesca mentira muito bem dissimulada. O real tem véus e maquilhagens, camadas de (in)transparência, de falsa transparência, de simulação.

“Mas, quando falamos de cultura falamos de quê? Da acumulação de citações num texto ou na boca de um tolo? Da biblioteca morta de um fanático das lombadas? Ou de qualquer coisa que, diariamente, nos espaços em que vivemos e convivemos, debatemos, trocamos posições acerca das coisas, nos incute uma capacidade de observação analítica, de passar da sensação à perceção e à análise, de modo que, numa esfera em que o pensável se torne conceito ou pré-conceito (o contrário de preconceito), pensemos de modo ativo, mudando de olhar acerca disto ou daquilo, gerando novas estratégias de mudança emancipadoras”

sA – O que dizes leva imediatamente a isto: uma democracia que se deseja qualificada e exigente deve ou não ser também exigente com a cultura que ela própria deveria gerar no seu seio?

FMR Claro. Isso seria uma democracia qualificada, a viver da própria crítica gerada no sistema democrático, isto é, uma democracia que interiorize o escrutínio da sua própria realização enquanto democracia. E não se trata da separação convencional dos três poderes, da sua autonomia relativa, da sua dita independência. Trata-se de uma qualificação generalizada das existências por via da integração do fenómeno cultural crítico na vida quotidiana, de pensamento autónomo e não manipulável. É essencial escapar à manipulação e à demagogia, aos populismos e ao gosto comercial dominante, ao ouvido dominado e ao olho colonizado, à agenda do mercado, às guerras civis regionais desportivas.

João Cardoso e Fernando Mora Ramos, em “A Morte do Dia de Hoje”, de Howard Barker. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

Mas, quando falamos de cultura falamos de quê? Da acumulação de citações num texto ou na boca de um tolo? Da biblioteca morta de um fanático das lombadas?

Ou de qualquer coisa que, diariamente, nos espaços em que vivemos e convivemos, debatemos, trocamos posições acerca das coisas, nos incute uma capacidade de observação analítica, passar da sensação à perceção e à análise, de modo que, numa esfera em que o pensável se torne conceito ou pré-conceito (o contrário de preconceito), pensemos de modo ativo, mudando de olhar acerca disto ou daquilo, gerando novas estratégias de mudança emancipadoras.

Isso, obviamente, exige essa interrogação, essa dúvida metódica, essa desconfiança não preconceituosa, mas astuciosa, essa aplicação do “efeito de estranheza” como início do ponto de vista.

E que temos nós pela frente? A conversão do cidadão em consumidor e do consumidor em fã, em sociedade de fãs e de protagonistas, de carneiros e de idolatrados, de massa acéfala e, por vezes, violenta e de “elites” corruptas e obcecadas pelas criptomoedas e pelo sobre-enriquecimento constante – estão obesos de fortunas e só pensam em enriquecer.

Nunca como agora a diferença entre os poderes legítimos e o gangsterismo foi tão esbatida.

sA – Deteto nas tuas palavras também a ideia de corresponsabilização dos cidadãos. Ou seja, um teatro com a dimensão crítica que referes, implica a presença de um espetador igualmente exigente e crítico.

FMR Uma cultura crítica, como a dessa imagem, porventura miragem – aqui como referência –, que temos do teatro grego, alimentaria, por certo, outra vida social e outra dinâmica de massas, com menos fenómenos massivos e mais fenómenos de escala não massiva e reflexiva. Em que espaços se gera pensamento? E não é apenas essa ideia de sair de uma sala de teatro a pensar no que se viu e que deixou impressões fortes que ficam. Althusser fala-nos disso num artigo no [livro] “Pour Marx”, dessa ideia do que que viu – creio que um Brecht e de um espectáculo de Strehler apresentado em Paris, em 1962, no Teatro das Nações, talvez o “El nost Milan”, de Bertolazzi – e que vai ficando e gerando essa passagem da reflexão, da efervescência mental para a posição mental, política.

Fernando Mora Ramos, na peça “A Morte do Dia de Hoje”, de Howard Barker. (Créditos fotográficos: Ana Pereira – teatrodarainha.pt)

Atualmente, pensamos outra coisa. O Joseph Danan, na sua tese de doutoramento, fala de um “Teatro do Pensamento”, que não é nem teatro de ideias nem, muito menos, teatro de tese. É um teatro que – na sala em que o fenómeno teatral acontece, num laboratório de troca enérgica e semântica entre dois corpos, o corpo cena e o corpo sala – faz gerar pensamento, isto é, desenvolve as impressões, sensações e intuições que formam a possibilidade do pensamento, um pensamento gerado pela ação cénica, pelo jogo entre os corpos dos atores/atrizes na sua relação com a sala. Do que se trata é de uma química entre corpos e energias fecundadas pela frase, pelo jogo dos atores em situação no espaço e como imagem presencial, imperfeita e poderosa, justamente pela imperfeição, pela precariedade – de um momento para o outro alguém em cena pode, por exemplo, ter um ataque cardíaco, uma branca, uma queda. Isso também influi nessa química intelectual e sensorial entre a sala e a cena. Estamos como no circo, muitas vezes, a ver como o ator pode cair do arame. E não queremos que caia. Isso alimenta a nossa presença na sala, o modo de observar/participar – há também um fazer dos espectadores que passa pela respiração e humores da sala.

“Às vezes, penso: desde que foi estreado o Hamlet, quantos Hamlets se fizeram, em quantas línguas e palcos e com que número de espetadores? O teatro é um fenómeno muito complexo e mais antigo do que a Igreja Católica. Devíamos ter um Papa e um Vaticano do teatro, além das reservas de ouro”

sA – Nesse sentido, é como se disséssemos que o teatro não deve pautar-se pelas leis do mercado.

FMR Nem o teatro, nem a ópera, nem os museus de arte contemporânea, nem a música contemporânea, nem o livro de ensaios, nem a ficção que não corresponde a uma moda dominante, a um vocabulário de circunstância, a um trabalho de imaginação culinário, nem tudo aquilo que não gera uma adesão programada pelos sistemas de criação de fenómenos massivos de mercado.

Eu sei que um Picasso é um ativo de mercado. Mas isso é nas artes plásticas e é atualmente, embora as esculturas do Richard Serra sejam transatlânticas e não caibam em cofres nem em paredes de colecionadores. A mesma coisa para o teto da ONU, do Barceló. Os colecionadores instalaram esse mercado ao ponto de lhe corresponderem zonas negras e, mesmo, uma zona de imitações bem-sucedidas no negócio. Agora, até já se diz que há imitações melhores do que os originais. O dinheiro vira tudo do avesso. O valor fetichizado e inflacionado é o capitalismo, não é a arte.

Lembremo-nos como Joyce teve de suportar um calvário de anos e anos até conseguir publicar o seu “Ulisses”, hoje considerado o livro de ficção mais genial de todos os tempos – de leitura muito difícil e, certamente, não hípermassiva, mas lido por muitos milhões de leitores. Esse processo, desse livro, levou décadas até ser realmente olhado como aquilo que é, uma obra-prima.

Ora, o teatro contemporâneo vive muito numa escala não massiva, de câmara, muitas vezes. Para cumprir uma função social relevante, a cena volta a cena todas as noites, o número de espetáculo corresponde à possibilidade de um número exponenciado de espectadores. Há espetáculos que estão muitos anos em cena. Numa política de reportório séria, eles voltam a cena, cumprem várias temporadas, vão tocando públicos diferentes. Não são um epifenómeno. São, justamente, um contrabalanço da cultura de mercado.

Às vezes, penso: desde que foi estreado o Hamlet, quantos Hamlets se fizeram, em quantas línguas e palcos e com que número de espectadores? O teatro é um fenómeno muito complexo e mais antigo do que a Igreja Católica. Devíamos ter um Papa e um Vaticano do teatro, além das reservas de ouro. Quantos Édipos desde que a peça foi estreada nos primórdios da racionalidade que esta atualidade despreza e destruiu?

“Não temos problemas de espetadores, não temos crise nenhuma. E se os meios e as possibilidades de entrosarmos com escolas e outros fossem menos limitados por burocracias e visões erradas, pelo funcionamento das próprias escolas, o nosso trabalho iria mais fundo”

sA – Mas deve o teatro estar alheado da sua circunstância, ou seja, dos contextos socioculturais e até económicos que o rodeiam?

FMR Jamais, em Francês, como disse o ministro. Deve é trazer aquilo que nunca se pensa, nem se vê, como naquela reconstrução artística, e está diante dos olhos, sendo relativa à vida que as pessoas sofrem e levam, mas que não compreendem para além da rotina e do ramerrame, da fugacidade.

Isabel Lopes, José Carlos Faria, Raquel Monteiro, Victor Santos e Carlos Borges, na peça “Médico à Força”, de Molière. (teatrodarainha.pt)

Nós jogamos tudo com o meio, com os diversos meios, com o nosso público mais atento, há muitos anos – em 40 anos, tocámos muita gente e há gente a seguir-nos desde então – e com os públicos potenciais. Houve experiências, aqui no concelho, que tocaram quase 10% dos residentes – hoje, a cidade é outra, há escolas primárias em que se falam 43 línguas, é uma realidade nova que temos de trabalhar. Essa experiência muito relevante fizemo-la com “Médico à Força”, do Molière. Corremos as freguesias. Mas olhamos cada criação como um projeto específico de espectadores, não como público-alvo naquele sentido do mercado, mas como parte de uma movida intergeracional. Tentamos sempre misturar gerações, não entrar em realizações monogeracionais, isso empobrece.

Isso não significa que não façamos ações específicas para escolas, mas aí o contexto é outro e existem professores a acompanhar os projetos. Vamos antes às escolas e fazemos debates depois dos espetáculos, conversamos com os jovens. O nosso público é muito diverso, toca todos os setores. E fazemos também espetáculos dentro das escolas. “Uma noite na biblioteca”, de Jean- Cristophe Bailly, o filósofo, encenada pelo Luís Varela, uma peça em que os livros eram personagens, foi ensaiada dentro da Escola Rafael Bordalo Pinheiro e estreou na sua biblioteca. Caldas não tem nenhuma biblioteca histórica, é pena. E nos tempos, como se diz em Moçambique, fizemos Gil Vicente para aquistas, população termal instalada nas termas, que dormia no hospital que tinha um número apreciável de camas. Acabaram com isso, os inteligentes do lucro e da gestão. Essas pessoas vinham em robe e em pijama ver o nosso trabalho vicentino. O mais curioso é que a língua vicentina encontrava naquelas pessoas uma ressonância vocabular. Conheciam palavras que, hoje, as novas gerações nem sonham que existem.

“Há uma cultura lúmpen por aí, com alcance massivo, coisa básica, literal, estupidificante, jogando com os baixos sentimentos das populações. E há mesmo um nicho de mercado, quer dizer, não é um nicho, é mesmo uma nave de catedral, que vive da conversão do que chamam ‘humor’ num negócio de piadas avulso. E lá vai atrás o tipo de gente que vai sempre atrás, que vai atrás dos que vão atrás”

Outras experiências fizemos. Por exemplo, receber os estágios do Curso Profissional de Teatro do Colégio Rainha Dona Leonor. Em dois anos seguidos, tivemos em casa uma quinzena de adolescentes para realizar um trabalho teatral connosco, Vicente e Brecht, no caso. E os estágios eram de seiscentas e tal horas, com cinco horas diárias, em mais de quatro meses. Dessa experiência vieram três raparigas para a profissão, porventura outras que desconheço. Entraram logo na ESTC [Escola Superior de Teatro e Cinema] creio até que eram quatro. E entraram entre 400 candidatos.

Não temos problemas de espetadores, não temos crise nenhuma. E se os meios e as possibilidades de entrosarmos com escolas e outros fossem menos limitados por burocracias e visões erradas, pelo funcionamento das próprias escolas, o nosso trabalho iria mais fundo.

João Cardoso e Fernando Mora Ramos, em “A Morte do Dia de Hoje”, de Howard Barker, em novembro de 2010. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

sA – Percebo o que dizes, mas no caso do Teatro da Rainha, a companhia pode construir o seu repertório sem atender às caraterísticas do local onde se insere, às pessoas a quem, em primeira instância, é suposto dirigir o seu trabalho?

FMR Esse é um falso problema dentro de problemas reais. Os níveis de entendimento de um texto-espetáculo são múltiplos. E não está escrito que o humor primário de um agricultor não seja mais capaz de ler certas coisas que o humor escolarizado de um pequeno-burguês que tenha cursado uma licenciatura qualquer. Hoje, tiram cursos e saem dos cursos impreparados em termos de domínio da língua, com um vocabulário diminuído e limitado. Isso impede-os de abarcar os [problemas] reais na sua diversidade, faltam palavras a uma elasticidade do pensamento. Esbarram com uma iliteracia tramada dentre de si mesmos.  Por vezes, palavras como “genuflexão” e “sovaco”, por exemplo, são-lhes alheias. É uma chatice ter de explicar que o sovaco é onde o suor ganha pior relevância odorífera.

Agora, isso não resolve o problema de quem tem a cabeça tão formatada e que só quer consumir um tipo de coisa, algo de que dependa que lhe traz uma sensação de pertencer a uma camada de pessoas. Fanatismo tem a ver com ser fã, com dependência, idolatria. Há uma cultura lúmpen por aí, com alcance massivo, coisa básica, literal, estupidificante, jogando com os baixos sentimentos das populações. E há mesmo um nicho de mercado, quer dizer, não é um nicho, é mesmo uma nave de catedral, que vive da conversão do que chamam “humor” num negócio de piadas avulso. E lá vai atrás o tipo de gente que vai sempre atrás, que vai atrás dos que vão atrás.

Com as crianças, as experiências são fenomenais. E também com os adolescentes, aqueles que têm nas cabeças um pensamento a estruturar-se. Aí, a agilidade mental é extraordinária. Os mais novos leem coisas absolutamente inesperadas. Cada espetáculo é um fenómeno singular. O que é o contrário do objeto mercadificado que é vendido para suscitar reações pré-programadas pelo marketing promocional. São opções que se repetem de modo urdido para terem o tal êxito assegurado, lágrimas que correm no mesmo sítio pelas mesmas razões.

Representação de “A Estação Inexistente”, de Luigi Pirandello e Rocco D’Onghia, com Victor Santos, Carlos Borges e Isabel Lopes. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

sA – O que dizes, liga-se diretamente com o ato criativo, com o pensar o espetáculo, com a escolha de um texto, de um autor. Como é que todo esse processo é feito, internamente?

FMR Sim, liga-se. Primeiro, há uma impressão de leitura inicial que não se desvanece. Comigo, ou há um coup de foudre ou não me meto. Essa primeira impressão é a de uma leitura, ou é a de imaginar um ponto de partida, ver uma imagem de migrantes no meio do mar prestes a que lhes suceda o pior. No caso de um texto, é geralmente uma mistura entre prazer de ler e incompreensão relativa. Se te toca fundo é porque não compreendeste tudo e porque o que lês mexe contigo, justamente porque não arrumas o lido numa gaveta que o sossego da compreensão possa abrir. E aquilo fica a laborar-te na cabeça. Um processo surge, uma efervescência. E esse mal-estar, ou bem-estar, não te larga, persegue-te. “Tens de fazer isto”, dizes-te. Ou: “Tens de te livrar disto, tens de pôr cá fora.”

Isto também gerou experiências não acontecidas. Andei anos com “A Tempestade”, de Shakespeare. Mas nunca tive meios de a fazer. O mesmo para certo Tchekhov, mas aí talvez venha a fazer. E, hoje, é impensável fazer “A Tempestade”, já se me foi aquilo que me desequilibrava. É como ter um cadáver na cabeça. 

Depois vais para palco. Quer dizer, no meu caso, muitas repetidas vezes, a Isabel traduz – seja do Inglês, do Francês, do Italiano ou do Espanhol – e andamos ali a conversar sobre a tradução, diariamente, por vezes, durante meses. Põe-me questões constantemente. Ainda agora, na preparação de uma “bomba” que faremos, a peça de Angus Cerini, um australiano, acerca de um parricídio cometido a três, mãe incluída. Tem sido uma inquietação constante. Depois vem o trabalho de mesa em que tentamos desacelerar aquela ideia de que já temos um prazo de estreia marcado. Quando isso se torna obsessão, corres para a data e diminuis a experimentação processual, precipitas, introduzes uma estúpida ansiedade que só deve surgir em cima da estreia, um certo medo produtivo.

Carlos Borges em “A Estação Inexistente”, de Luigi Pirandello e Rocco D’Onghia, em abril de 2006. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

Claro que na mesa já estás meio no palco, não é separado, como se tivesses uma fase de aula literária e depois os abismos do corpo. Não, a coisa começa na mesa e na mesa o palco mete-se, como no palco a mesa volta. É o teatro. Quando começas no palco, és surpreendido pelas coisas que os intérpretes fazem, como representam, como o presentam. Muitas vezes, isso contraria coisas “decididas” na mesa. Há uma dinâmica própria do jogo que altera as razões dramatúrgicas de dada maneira. Surgem outros sentidos. Essas contradições processuais são o modo motor do fazer. E as pessoas vão metendo dentro o que têm de dizer, vão maturando, dando consistência ao que fazem, tentando evitar clichês e modos mortos de abordar. O inesperado no jogo é central. O acaso também tem o seu papel. Mas nem tudo é previsível, mesmo que ao fim de centena e meia de espetáculos, no meu caso, não tenha quase nunca adiado uma estreia marcada e publicitada.

“Fizemos um Cervantes com a população e depois estreámos num terreiro em festa, acompanhados de pipas de vinho e de uma vitela barrosã assada na brasa. Estava toda a população da aldeia e o padre, na missa, disse que o teatro era obrigatório. Um padre do povo, claro. O Manuel João Vieira dirigiu no espetáculo a intervenção da banda do Rebordondo. É um exemplo extremo, mas cada caso é um caso”

sA – Mas esse processo, teoricamente falando, tem implícita a consciência do microcosmo em que a companhia se insere? Dito de outra maneira: se em vez das Caldas da Rainha, estivessem sediados em Lisboa ou no Porto, o que é que mudaria nos processos?

FMR Muita coisa mudaria pela simples razão de que o elenco seria outro, a equipa residente seria outra e os espectadores seriam outros. Trabalhei no Porto muitas vezes e em Lisboa também. O impacto do que fazes altera-se logo. No local Caldas, fica a coisa em Caldas, mesmo que tenhamos espetadores vindos de fora, particularmente de Lisboa. Mas foi o facto de sermos uma companhia nacional que nos atirou para onde estamos. Jogamos, obviamente, tudo nas forças que temos e levamo-las ao limite. É a obrigação de quem tem dinheiros públicos. Servir as populações. Se estivesse em Lisboa, talvez tivesse feito “A Tempestade”. Em Évora, quando fizemos “Medida por Medida”, em encenação do Barradas, foi o tempo e a circunstância que viabilizaram essa possibilidade e o facto de termos juntado duas companhias. Aqui, quando tenho mais de 30 pessoas em cena, tenho de recorrer a amadores e encaminhar o que se faz também para uma lógica de teatro comunitário. O que, aliás, fizemos uma vez ou outra. Olha, com o João Vieira na aldeia dele, em Anelhe. Fizemos um Cervantes com a população e depois estreámos num terreiro em festa, acompanhados de pipas de vinho e de uma vitela barrosã assada na brasa. Estava toda a população da aldeia e o padre, na missa, disse que o teatro era obrigatório. Um padre do povo, claro. O Manuel João Vieira dirigiu no espetáculo a intervenção da banda do Rebordondo. É um exemplo extremo, mas cada caso é um caso. O meio é determinante. Quando fazemos “10 Filhos da puta”[“Discurso sobre o Filho-da-Puta”], em Almada, do Pimenta, temos mais público que nas Caldas. O mesmo no Porto. Assim como outra diversidade sociológica de espetadores. Mas mais determinante do que isso é a sala, o teu teatro. Isso é vital.

“Os comités de avaliação deveriam ter meios para acompanhar de facto a atividade das companhias e deviam integrar pessoas muito conhecedoras de teatro, do que é o teatro. Já nos aconteceu ter uma avaliadora a perguntar se éramos de Leiria!”

sA – Trabalhar culturalmente nas periferias, como se infere das tuas palavras, é sujeitar o trabalho a uma invisibilidade maior. Invisibilidade mediática – além de que praticamente inexiste crítica de teatro – e invisibilidade junto do poder. De que forma sentem isto na pele?

FMR Fomos substituindo essa inexistência de massa crítica forjando uma massa crítica própria, ligada à companhia. Quer dizer: pessoas que se interessam pelo nosso trabalho e que o seguem há décadas e são escritores, pensadores, jornalistas. Eu desafio pessoas a escrever sobre o que fazemos. Temos de tirar partido das redes sociais. Isso criou um território diferente. Às vezes, até invento polémicas, já me aconteceu. A gozar com a penúria disto tudo, a penúria mental. São momentos de Carnaval.

Problema é, muitas vezes, o acompanhamento pelo Estado do nosso trabalho. Há júris a decidir isto e aquilo no absoluto desconhecimento do que fazemos. Esse aspeto tem melhorado relativamente. Os comités de avaliação deveriam ter meios para acompanhar de facto a atividade das companhias e deviam integrar pessoas muito conhecedoras de teatro, do que é o teatro. Já nos aconteceu ter uma avaliadora a perguntar se éramos de Leiria!

Por outro lado, travo, há décadas, um combate contra o centralismo e as suas perversões. Escrevi muito sobre isso. E, como disse atrás, somos uma companhia nacional e internacional, desenvolvemos projetos em Moçambique desde 1995. Ainda agora testámos um texto meu, “Um Corpo Estranho Dá ao Palco”, que é com um ator moçambicano e um português. Uma peça sobre a condição de existência de um migrante. Essa condição nacional inscreve-nos a espaços nessa existência mais notória que outros praticam constantemente, pois têm gente infiltrada nos media e pertencem a maçonarias específicas, dizendo assim.

Victor Santos em “O Coronel Pássaro”, de Hristo Boytchev. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

sA – Mas como alterar tantas regras e o modo de atuação dos poderes num país, onde 50 anos após o fim da ditadura, ainda não se consegue que a Cultura tenha 1% do Orçamento de Estado?

FMR É uma guerra constante. Essa coisa do um por cento é simbólica. Provavelmente, não se atreveriam a dizer dois por cento. Nunca me interessei muito por simbólicas. O que é necessário é que exista projeto da parte da democracia e que esse projeto desenhe um setor público. Tudo o mais deveriam ser os concursos atuais. Ninguém da profissão deve ficar de fora. Havendo estruturas públicas fortes, os grupos de “vão de escada”, muitas vezes, a fazer trabalho interessante, passariam a ter casa e casas. Feito o projeto, tal como se faz para a Saúde, façam-se os orçamentos. As metas abstratas podem mover as pessoas, mas não movem os decisores, a não ser no paleio demagógico. A estatística é a maior mentira que existe, é uma fake new permanente e permanentemente não escrutinada, argumento final.

“O humor é uma coisa triste que faz rir e de que nos arrependemos, por vezes, depois de rir. O piadismo é um uma série de piadas para forçar um riso que não mexe com o corpo, com nada. A verdadeira gargalhada é como um orgasmo do riso, tudo treme nas bases. Isso acontece com Chaplin, com Buster Keaton”

sA – E, no entanto, há espetáculos de stand-up comedy que enchem pavilhões com milhares de pessoas a rir de piadas brejeiras…

FMR É deixá-los estar. Isso só é problemático quando ocupam aqueles teatros que deviam fazer outro tipo de programação e excluem o que, por exemplo, são as estruturas com apoio sustentado. Os equipamentos sofisticados, feitos com dinheiros europeus, deveriam ter programações de grande nível cultural. Aos teatros comerciais o que é do comércio. Em Espanha, as indústrias culturais, como lhes chamam, estão no Ministério da Indústria. Em vez de programarem “A Flauta Mágica” ou “As Três Irmãs”, ou outras experimentações mais inesperadas, programam “O Pito da Sardinha”? O que fazer com isto? Nada contra o pito, nem contra a sardinha, mas cada macaco no seu galho.

Manuel Gil em “A Paz”, peça humorística de Aristófanes.
(Créditos fotográficos: Margarida Araújo – teatrodarainha.pt)

O sistema da piada é uma coisa morta, o riso é requentado, as piadas são miseráveis e o Português de fraco nível. Não todos, mas a maior parte é assim. E a falta de graça no papel da graça é tragicamente ridícula. Na maior parte, os piadeiros são intérpretes menores, são cabotinos e rígidos, fracos desempenhos. Há as excepções, como em tudo.

Humor na nossa arte é o de Molière e Aristófanes, de Beumarchais e Karl Valentin e por aí adiante. Pirandello tem uma teoria do humor no seu “Humorismo”, que diz que o humor é um desajuste entre a figura e o acontecimento, uma inadequação, uma velha muito velha passeando o batom no lábio como uma adolescente, um prestigiado senhor que tropeça e lá se vai a honorabilidade ostentada da pose anterior. O humor é uma coisa triste que faz rir e de que nos arrependemos, por vezes, depois de rir.

O piadismo é uma série de piadas para forçar um riso que não mexe com o corpo, com nada. A verdadeira gargalhada é como um orgasmo do riso, tudo treme nas bases. Isso acontece com Chaplin, com Buster Keaton.

sA – É sobre essa aparente contradição que gostaria de te ouvir: as últimas décadas foram marcadas por uma massificação da educação, inclusive universitária, por um maior acesso a conteúdos culturais – até há dirigentes políticos a falar nas gerações mais bem preparadas de sempre –, mas, depois, essa evolução parece não se refletir na exigência da qualidade democrática, da cidadania ativa e, por extensão, no crescimento substancial do público para o chamado teatro de repertório.

FMR Isso é um embuste para europeu ver – o António Costa era perito nisso, grande manobrador. Um disparate. Mais uma vez as estatísticas. Se esta malta tem outras competências, e tem, também tem outros problemas. Justamente, com a língua e com a preparação cultural que gera pensamento – engolem séries como pipocas, mas não leem, ou leem pouco, e isso é problemático – até a manualidade tem importância na construção do carácter, das emoções reflexas: há um estudo sueco que fala da necessidade de os miúdos escreverem com a mão.

Todavia, não é isso que vemos. Essa tal malta quer é subir rápido e ter dinheiro para um estadão determinado, que os modelos de consumo vendem. Não são críticos, são idólatras do high tech, dos objetos de consumo, mas satisfazem-se com muita coisa mediana. Muitos são vorazes e, ao mesmo tempo, acríticos, veja-se a cloaca em que se transformou o Parlamento. Estou a falar dos que chegam aos lugares e que o Pimenta define bem no seu “Discurso sobre o Filho-da-Puta”. Estão nas idades do poder.

A par disso, há uma imensa massa que anda aí, que não consegue ter dinheiro para ser autónomo, que não tem casa e que está com os pais, muitas vezes, até depois dos trintas. São infantis até muito tarde. Isso é muito triste.

Isabel Lopes e José Carlos Faria, na peça “Danos Colaterais do Amor e da Guerra”, de Bertolt Brecht e Kurt Weil. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

Mas que há uma iliteracia destes licenciados há. Ao mesmo tempo em que há cientistas geniais e matemáticos e pessoas a fazer caminhos brilhantes. Mas poucos, talvez em número apesar de tudo significativo (estou a falar dos que se movem por interesse próprio e não pelos que são apanhados numa rede), são os que se sentem atraídos pela movida cultural que não esteja na onda e que é realizada por essas companhias teatrais que estão por todo o lado. São centenas de projetos e estruturas mínimas, por artistas plásticos não renomados, por formações de música erudita e de câmara, música contemporânea. Só que, entretanto, apenas o que é sonante e visibilizado vive, in vídeo veritas.

Uma coisa curiosa é que o facto de descobrirem inesperadamente autores, no teatro, connosco, lhes coloca problemas verdadeiros e inesperados. Ainda agora, com o Falk Richter e com o Martin Crimp, isso aconteceu. Gente a querer ler esses textos.

“Faltam melómanos, viciados em teatro, cinéfilos, etc., nessas andanças da política que, deste modo, fica pequena, sem o estímulo do conhecimento e do conhecimento artístico. Essa basificação da política, a incultura com reflexo na ação política, elege o pragmatismo estatístico e negocial como eixo constante das decisões que, deste modo, não são enformadas por outra sensibilidade problemática”

sA – O problema, então, é maior, não é apenas do teatro, mas do lugar e do entendimento que se tem da cultura e, por extensão, da cidadania nas democracias contemporâneas. E a designação de “cultura”, digamos, tem as costas largas. Porque, para as estatísticas e estudos oficiais, um festival de música no verão, com nome de marca de cerveja ou de empresa de telecomunicações é culturalmente entendido e enquadrado da mesma maneira que uma criação no Teatro Nacional D. Maria II, no Teatro da Trindade ou no São João, para citar nomes muito conhecidos.

FMR Isso é verdade, mas esses teatros também se põem a jeito. Falta uma certa radicalidade aos projetos. No caso do Trindade, falamos de teatro comercial de um certo tipo, podemos chamar-lhe até repertório comercial. Sendo um equipamento dos trabalhadores, funciona como um teatro privado, de estrelas conhecidas do nosso minúsculo firmamento. Há fortes teatros comerciais em Londres, por exemplo, ou também em Paris, nos Campos Elíseos. Foram teatros que, a certa altura, até fizeram Beckett. O caso do Trindade só é possível num país sem projeto, sem projetos. É um teatro dos trabalhadores, por imitação dos teatros dos sindicatos, na Rússia, no tempo da nossa revolução. Creio que foi o Rogério Paulo que inventou essa situação do Trindade. Por certo, com boas intenções. Um reportório popular para os sindicalizados, para os sócios do INATEL. Mas a sua arquitetura é tão interessante que é mais interessante que a do Dona Maria. Os nacionais, esses, fazem outro tipo de coisas, mal ou bem, são outros projetos.

Fernando Mora Ramos, na peça “Danos Colaterais do Amor e da
Guerra”, de Bertolt Brecht e Kurt Weil, que foi estreada em 22 de abril
de 2004, na Sala Estúdio Teatro da Rainha. (Créditos fotográficos: Paulo
Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

sA – É muito curioso o que dizes, porque me conduz a uma questão que, a meu ver, está intimamente ligada com o que referes: a cultura geral da classe política e o seu próprio consumo ou não de bens culturais. E a isto liga-se diretamente a reconhecida baixa qualidade do próprio discurso político atual…

FMR Sem dúvida. No Parlamento, em vez de ver citado um autor clássico,  Séneca, ou um pensador da política, ou quem seja, assiste-se a esta inacreditável manifestação de grosseria, em que há criaturas chamadas deputados a achincalhar uma senhora deputada invisual chamando-lhe nomes sinistros. Mais baixo é impossível. Quem é esta gente? De onde vem? Se os elegem, quem são os que os elegem? Por que razão elegem pessoas tão violentas, agressivas e broncas? Em que país estamos hoje, 50 anos depois de abril? O Parlamento é uma casa de alterne?

Falando do centrão, o problema é mais grave. Têm sido poder, mas na realidade, à exceção do engenheiro Guterres e em tempos do Dr. Sampaio, nunca sentiram a necessidade de fazer na Cultura o que fizeram na Saúde e tentaram na Educação. E é uma pena que seja assim. Faltam melómanos, viciados em teatro, cinéfilos, etc., nessas andanças da política que, deste modo, fica pequena, sem o estímulo do conhecimento e do conhecimento artístico. Essa basificação da política, a incultura com reflexo na ação política, elege o pragmatismo estatístico e negocial como eixo constante das decisões que, deste modo, não são enformadas por outra sensibilidade problemática.

Isabel Lopes e José Carlos Faria, na peça “Danos Colaterais do Amor e da Guerra”, de Bertolt Brecht e Kurt Weil. (Créditos fotográficos: Paulo Nuno Silva – teatrodarainha.pt)

sA – Ainda bem que colocas em contraponto as ideias de complexidade e de simplicidade, porque me permite fazer a ponte para o seguinte: os grandes textos de teatro são sempre interpeladores. Isto é, são instigantes, tendem ao desassossego, a pôr em causa o que tínhamos como certo e absolutamente estável, a propor-nos novas pistas e caminhos, outras possibilidades de entendimento. Por outras palavras, estão ligados a uma determinada complexidade do pensamento, hoje pouco compaginável com o tal imediatismo e simplicidade de pensamento que apontavas há pouco. Como  olhas para isto?

FMR Estou completamente de acordo. Há textos que nos atravessam, que nos habitam. No teatro, esse saber de cor, de coração, que é decorar, é meter o texto na respiração, acioná-lo com o músculo cardíaco. Ainda tenha na cabeça o “Medida por Medida”, que fiz em 1976. Fiz Lúcio, o extravagante. Essa marginalidade da figura na peça, o seu furor gozão e crítico, vieram para ficar em mim. E aí por diante. Incorporamos os textos dando-lhes corpo. E o “Ella” continua cá.

“Estamos sempre em cena, as criaturas vivem dentro de um filme e ficcionam episódios, o virtual converteu-se no real, a imaginação foi engolida pelo ChatGPT. É a tal pós-Humanidade. Será? […] Já Vinaver, um autor francês, criou uma personagem, o Senhor Onde, professor do Collège de France (o mesmo de Foucault), que defendia que o que havia a fazer era escavar túneis, trabalhar na obscuridade como as toupeiras, na perspetiva de fazer esbarrondar tudo o que está por cima desses túneis. Toupeirar eis o gesto revolucionário”

sA – Outro aspeto curioso, que Vargas Llosa sublinha, aliás, em “A Civilização do Espetáculo”, é vermos como outrora os políticos gostavam de ser fotografados de braço dado com cientistas e dramaturgos eminentes, e hoje preferem ser vistos ao lado de estrelas de futebol ou de rock

FMR É a dominante eleitoral, a popularidade que funciona como capital de renda, a imagem que é um ativo financeiro. Vão todos atrás disso. E vem piorando esse lado das coisas. Na Coimbra 2003, de repente, o insulto à figura do presidente por alguém que vinha do entretenimento tornava clara essa inversão de valores. O poder dos mediatizados, dos célebres, é enorme. Eles são uma nova casta.

José Peixoto e Isabel Lopes, na peça “A Dança da Morte”, da autoria de Strindberg. (teatrodarainha.pt)

sA – É como se a vida, para referir Guy Debord, um autor a que por vezes  regressas, se reduzisse a um imenso e constante espetáculo. É como se o ato de pensar não fosse além de uma performance que fosse um fim em si mesma…

FMR Há esse narcisismo a tomar conta de tudo, o tipo que posa para a sua reflexão, como se o que pensasse, porventura pensasse, pudesse converter-se sempre num gesto autopublicitário, numa cena em que o sujeito é admirador de si mesmo, “és o maior”, parece dizer para si, enquanto engole fogo ou esgrime brilhantismo verbal – na Europa, isso é tremendo. E se há loucos que se estão nas tintas para a sua própria celebração instante, há muito sujeito comum que transpira vaidades. Isso mata, fecha o círculo, põe as ideias com dono. Estamos sempre em cena, as criaturas vivem dentro de um filme e ficcionam episódios, o virtual converteu-se no real, a imaginação foi engolida pelo ChatGPT. É a tal pós-Humanidade. Será? E não se escapa a isso a não ser na margem da margem. 

Já Vinaver, um autor francês, criou uma personagem, o Senhor Onde, professor do Collège de France (o mesmo de Foucault), que defendia que o que havia a fazer era escavar túneis, trabalhar na obscuridade como as toupeiras, na perspetiva de fazer esbarrondar tudo o que está por cima desses túneis. Toupeirar eis o gesto revolucionário. E isso é sempre na sombra e feito por pessoas que têm de se habituar ao escuro, a essa solidão guerrilheira. Neste espectáculo de Vinaver, dirigido por um encenador francês, Pierre Etienne Heymann, fiz de Vinaver. Estava quatro horas em cena. Uma construção notável acerca, justamente, dos inícios do marketing como nova ideologia empresarial. Grandes sessões de brainstorming sobre como vender papel higiénico, seduzindo as pessoas com paleio acerca da dupla folha e da cor negra. Essa da cor não pegou. Era todo um poema.

sA – Esse fascínio pelo marketing  lembra-me a “Carta Aberta… aos Poderes”, que o surrealista Artaud escreveu há um século,  em que já falava numa Europa cristalizada e mumificada, inclusive no interior das suas universidades. O que (não) andamos a fazer com tanto conhecimento acumulado?

FMR Cá está, a publicidade engoliu o que era a imaginação. Isto é, usou a imaginação verdadeira para a formatar, para a adequar aos consumos e a esse tipo de receção acrítico, realizando ousadas situações, inesperadas, mas sempre no sentido de a pôr ao serviço de estratégias de venda de mercadorias e não para diante de nada. Há que mitificá-los, aos objetos, dar-lhes um lado intangível, acrescentar-lhes essa dimensão fetiche, aquela que não corresponde a nenhuma realidade, mas acrescenta uma espécie de valor intangível, como acontece com os ícones dos nichos de oração, com os protagonistas de milagres. E fazem isso com tudo. Com o papel higiénico que te limpa o cu sem dares por isso e que te recompõe a pureza anal envolta em perfumes de alfazema. Com o automóvel que é um cavalo selvagem numa paisagem de montanhas íngremes e corpos nunca vistos de beleza e sensualidade sem limites, tudo a uma velocidade estonteante, levando a adrenalina aos cumes do gozo, etc.  

Isabel Lopes e Victor Santos, na peça “A Dança da Morte”, de August Strindberg. (teatrodarainha.pt)

Artaud chama a atenção para o excesso referencial e pomposo que mata a vida do espírito, chama a atenção para a doença lógica que resume tudo a uma racionalidade que nada explica senão o seu próprio caminho. É engraçado que Debord faz a defesa cerrada da lógica e explica que a falta dela introduziu este desnorte por onde tudo entra, este nivelamento de tudo pela mesma bitola sem conteúdo. A destruição do que é substantivo. Tenho dificuldade em entrar no pensamento de Artaud, mas percebo a vertigem surrealista e a dimensão poética e associal da loucura, dos atos e escrita que não se submetem a hierarquias e vivem de pulsão, de energia e delírio, de visões não domadas, de automatismos e associações inesperadas, de acasos e paradoxos. Creio que a crítica era a dessa vida sem vida por não haver lugar para a energia do espírito, nem vida do espírito. E era a crítica de uma sociedade conservadora e absolutamente incapaz de novidade, só capaz de monos e lógicas reverenciais, de importâncias.

“Nós vivemos muito na escola da força e da imposição, no nosso país. Ou, então, de uma certa estética pueril, amadora, sublinhativa e ilustrativa. É esse o desafio, de cada vez encontrar a singularidade do que vai surgindo”

sA – No caso da obra teatral, temos a complexidade da linguagem artística que, como diria o filósofo José Gil, não é uma linguagem que fale de si própria, na medida em que há uma coexistência de várias linguagens –verbal, corporal, etc. – que concorrem em simultâneo para a concretização do mesmo objeto artístico.

FMR Essa interdisciplinaridade é sempre singular. As associações que se realizam vivem, de modo concreto, em cada concretização cénica. Isso permite um campo ilimitado de transformação e de mudança. Cada objeto teatral tem a sua cifra. Beckett vive do dispositivo, imagina cenários que limitam corpos. Brecht faz grandes peças em que mete as disciplinas num diálogo dialético, falam umas com as outras, ele adota até a literarização da cena. Dá importância à cenografia, ao canto, à ruptura, à estrutura que corta a progressão emotiva e faz o seu comentário lúcido, historicizante. É um teatro da História. O de Beckett é um teatro da existência, do tempo de vida dos sujeitos, da visão testamentária; nascemos para morrer. Em Crimp, ainda agora, entrámos num tríptico que metia o que parecia ser uma peça de teatro convencional, mas não era uma cena familiar de Natal, metia depois uma longa segunda parte em que os atores se dirigiam ao público de modos diferentes, inspirada no “Insulto ao Público”, de Peter Handke, uma negação das categorias tradicionais do teatro e uma terceira parte meio estranha, em que um casal, longe de tudo, vivia o fechamento de uma relação quase de tortura, um huis clos. E, depois, há isso que referes, o corporal e o verbal que são uma mesma coisa, o gesto fala, a fala é corpo.  E aí as coisas complicam-se muito. Imaginar um corpo que seja capaz de vestir todas as metamorfoses é logo utópico. Os corpos carregam rigidezes e raramente leveza. Os grandes intérpretes conhecem essa relação da potência enérgica com a leveza.

Nós vivemos muito na escola da força e da imposição, no nosso país. Ou, então, de uma certa estética pueril, amadora, sublinhativa e ilustrativa. É esse o desafio, de cada vez encontrar a singularidade do que vai surgindo.

Carlos Borges, Victor Santos, Isabel Lopes e Octávio Teixeira, em “O Coche do Santíssimo Sacramento”, de Prosper Mérimée. (Créditos fotográficos: Margarida Araújo – teatrodarainha.pt)

sA – É inevitável também falar acerca da existência ou da inexistência de espaços de diálogo entre produtores culturais, companhias de teatro, encenadores, etc. Porquê a visibilidade de uma falta de entendimento e de propostas conjuntas sobre problemas comuns?

FMR Creio que ainda estamos naquela fase chamada intrauterina em que o que junta forças é mais sindical que artístico. Isso do artístico é tabu, não se discute, como naquela famosa frase: “Gostos não se discutem.” Gostos? Mas quais gostos? Que formação do gosto tem quem gosta? Gosta como? Gosta segundo uma perceção livre ou segundo um modelo que aplica até inconscientemente, ou seguindo o “grande costume.” Anda-se muito atrás do que outros andam atrás. E há essa necessidade de se somar a critérios dominantes. O contrário também é verdade, pessoas tão preocupadas em dizer coisas originais que só dizem banalidades. São problemas de pose e de afirmação social. Dou-me com muita gente e tenho parceiros preferidos, afinidades existenciais mais do que estéticas.

“O teatro que se faz é muito limitado, por razões culturais e de escala, de tamanho das estruturas e de formação das equipas. E entrou-se numa autossuficiência e convencimento, ao contrário do que se fazia em tempos – eu estudei em Itália, no Piccolo e em Paris III –, que tem feito o teatro regredir para um novo isolamento. Claro que há projetos e pessoas que romperam com isso. São, hoje, projetos europeus e mundializados, basta pensar no trabalho do Tiago Rodrigues, amplamente reconhecido”

sA – Assim de repente, além do Teatro da Rainha, ocorrem-me companhias profissionais que existem em Coimbra, na Covilhã, em Braga, em Évora, em Viana do Castelo, entre outras. Conversam entre vocês? Debatem e discutem formas conjuntas de fazer face a problemas e a dificuldades que, na generalidade, são idênticos?

FMR De forma bilateral e casuística. Há passivos que não se ultrapassam, por vezes, por razões éticas. Mas dou-me com muita gente, com muita gente nova a tentar aceder a uma atividade mais regular. O teatro que se faz é muito limitado, por razões culturais e de escala, de tamanho das estruturas e de formação das equipas. E entrou-se numa autossuficiência e convencimento, ao contrário do que se fazia em tempos – eu estudei em Itália, no Piccolo e em Paris III –, que tem feito o teatro regredir para um novo isolamento. Claro que há projetos e pessoas que romperam com isso. São, hoje, projetos europeus e mundializados, basta pensar no trabalho do Tiago Rodrigues, amplamente reconhecido.

sA – O que é que, diariamente, ainda te motiva a fazer teatro, a encenar peças, a ser um resistente ou, apropriando-me de uma expressão há pouco usada por ti, a seres um guerrilheiro de cena?

FMR É isso: a guerrilha, essa vontade de rumar contra o conservadorismo e as ideias feitas, a cristalização da vida em percursos de vazio e ostentação pechisbeque.

Isabel Lopes e Victor Santos, na peça “O Coche do Santíssimo Sacramento”, de Prosper Mérimée. (Créditos fotográficos: Margarida Araújo – teatrodarainha.pt)

sA – Mantendo-te fiel ou, pelo menos, ligado ao que te apaixona no ato de fazer teatro…

FMR Aprendi um teatro que assumia o “traço grosso” como uma necessidade comunicativa, um critério estético, junto dos espectadores sem cultura teatral. Isto nos princípios. Esse teatro era muito legível e, de algum modo, evitava a complexidade. Em Itália, com o mestre Strehler, fartei-me de ouvir falar de leveza (legerezza), categoria que Calvino também refere nas suas teses para o próximo milénio.

Na realidade, o mais violento, não pode ser apenas violência, pois é sobre a violência e não a violência. O que não significa falho de energia, significa é: condição referencial mesmo que seja presentação, mais que representação, ou alusão ou outro modo de evitar o ser à letra, o naturalismo, um modo parábola.

E se tenho uma religião chama-se “imaginar”. Imaginar sequências, relações no espaço, energia vocal, intensidades, profundidade e proximidade, escuro e claro, etc. Imaginar frases e imagens, situações comportamentais, jogo, tempos de ataque e durações, balanços entre coisas, entre imagens, uma que sai e outra que entra. E romper com o virtual, de repente, intrometendo algo bruto e real, em corte, transitoriamente. Nada se fixa, tudo se move. 

E se gosto dos clássicos é porque as suas qualidades são trans-históricas e atraem os amantes do que é subtil e são formalmente bem construídos. Mas detesto categorizações feitas para sempre, como se um clássico fosse uma marca que se publicitasse e não uma estranha humanidade por redescobrir. Tenho, agora, a obsessão do elementar, do trabalho com poucos elementos. Gosto dessa radicalidade do elementar. Isso tem exemplos para trás. Houve gente muito austera a combater a feira e as espetacularidades bombásticas. O palco nu, gosto disso, do vazio. E de ver cair a gota de água lá do alto da teia.  E cheguei a uma conclusão: o jogo é o núcleo essencial do gesto teatral, o primado do jogo, da contracena.

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06/03/2025

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João Figueira

João Figueira é doutorado em Ciências da Comunicação e professor de Jornalismo na Universidade de Coimbra. É autor de vasta bibliografia sobre jornalismo, editada em Portugal e no estrangeiro, e co-organizador da obra "As fake news e a nova ordem (des)informativa na era da pós-verdade". As questões ligadas com a História do Jornalismo e dos "media"; com a desinformação/manipulação; e com as relações entre Jornalismo e Democracia, constituem as suas principais fontes de interesse académico. Como jornalista, recebeu vários prémios e distinções, de que se destaca o Prémio de Reportagem/Jornalismo atribuído, em 1999, pelo Clube Português de Imprensa. É co-fundador do jornal "sinalAberto", tendo sido o seu primeiro diretor.

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