Filme “Ainda estou aqui” (2024)

 Filme “Ainda estou aqui” (2024)

O filme provoca os espectadores a refletirem sobre a memória e a resistência, a partir das experiências maternas de Eunice Paiva para proteger a família na ditadura. (lunetas.com.br)

As cartografias do desaparecimento e um domocídio no Brasil da Ditadura Militar (1964-1985)

O filme é oportuno. Ainda que seja visto no conforto de uma sala de cinema na Europa do século XXI, a obra de Walter Salles é uma experiência que nos interpela e assusta. Esta é a distância entre as sociedades abertas, que uma parte da população europeia parece querer colocar em causa, e as sociedades fechadas do controlo biopolítico, da vigilância e da supressão das liberdades individuais e coletivas.

A Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) terá as suas particularidades, mas personaliza este mundo disciplinar que intimida e cativa a sociedade civil.

Produzida a partir de acontecimentos factuais – a prisão, em 1971, do antigo deputado Rubens Paiva – esta representação cinematográfica realista centra-se na tragédia do “desaparecimento”.

O filme conta-nos a história real de Eunice Paiva, uma mulher que, durante 40 anos, procurou a verdade sobre o desaparecimento do seu marido, o deputado Rubens Paiva. (Eunice Paiva: Realidade e ficção – Arquivo pessoal e Divulgação/Globoplay – aventurasnahistoria.com.br)

Após a captura, no Rio de Janeiro, pouco se soube do paradeiro do ex-deputado. Vítima de violência, correu a notícia de que teria sido assassinado. O corpo nunca foi recuperado.

Sentados na sala de cinema, assistindo aos horrores da Ditadura Militar brasileira, recordamo-nos da obra do sociólogo Gabriel Gatti, com uma investigação que vai dos detidos-desaparecidos, às cartografias difusas do abandono e da dissipação.

Gabriel Gatti (Tere Ormazabal / Universidade do País Basco).
(milenio.com)

Nos regimes políticos que se impõem pela força, mas também nos interstícios de democracias imperfeitas, em espaços prisionais da América do Sul ou do Médio Oriente; nas florestas e áreas de montanha da Colômbia; nas águas do Mediterrâneo ou nas regiões desérticas do Saara ou do Sul dos Estados Unidos da América (EUA); nalgumas clínicas espanholas do franquismo ou nos campos de refugiados da Europa; nos lugares de guerra da Sérvia e da Bósnia-Herzegovina, durante os conflitos dos anos 90; nos gulagues russos ou nas geografias de destruição dos campos de prisioneiros da Alemanha nazi, em diferentes momentos e circunstâncias, este é um universo de seres humanos que se dilui e desaparece, sem rasto nem registo.

Dissidentes e inimigos políticos, etnias perseguidas, crianças, combatentes e migrantes indesejados, a lista de desaparecidos é grande, diversificada e estende-se por diferentes contextos históricos e geográficos.

A lista de desaparecidos é grande, diversificada e estende-se por diferentes contextos históricos e geográficos. (Créditos fotográficos: UNICEF/UNI83735/Markisz – unicef.org)

O acontecimento representado por Walter Salles mostra-nos que a temporalidade destas tragédias pessoais e familiares se alonga para além da queda do regime autoritário. O tempo suspenso do desaparecimento não tem fim.

Neste caso, a espera pelo atestado de óbito, com o qual o Estado brasileiro admite o crime, estendeu-se até à década de 90. Apesar disso, o drama existencial de uma família marcada por um momento disruptivo – o aprisionamento do marido e pai, prossegue, sem um ponto final.

Na perspetiva mais restrita da Geografia, o filme “Ainda estou aqui” faz-nos deter nalguns pontos.

Primeiro, nos espaços subterrâneos da violência, nos calabouços ocultos por muros e localizações dissimuladas. Mesmo durante a ditadura, exerce-se um poder explícito, mas também se constrói uma máquina de brutalidade escondida dos olhares públicos.

Depredação da sede do Sindicato dos Metalúrgicos, em 1964. (pt.wikipedia.org)

Segundo, nas estradas. A omnipresença da disciplina tem uma face visível no controlo de quem se movimenta, nas barreiras que interrompem rodovias e túneis e encostam os condutores e os passageiros a uma parede.

Terceiro, na casa invadida e vasculhada. Após vigilância demorada, atenta e encoberta da residência, o deputado foi capturado no domicílio. Depois disso, alguns agentes intrometem-se naquele território de intimidade familiar, tocando objetos, abrindo gavetas, remexendo fotografias.

Quarto, no domocídio (“a morte da casa”) ou na perda de um lugar afetivo. Terminada a esperança do regresso ao passado, a família abandona o Rio de Janeiro, despede-se da casa onde viveu momentos felizes e muda-se para São Paulo.

Cena de “Ainda estou aqui”. (Créditos fotográficos: Divulgação / Alile Dara Onawale – oglobo.globo.com)

Quinto, na despedida da praia, na Zona Sul do Rio. Apesar do sobrevoo dos helicópteros e da circulação de veículos militares pela marginal, a praia era uma heterotopia de normalidade e convívio e um território de exceção e tranquilidade para a família e respetivo círculo de amigos.

Praia Flamengo, da Zona Sul do Rio de Janeiro. (invexo.com.br)

Do Rio de Janeiro para São Paulo. Da cidade do sol e da praia, para a selva de betão, assim se demonstra, com essa desterritorialização imposta, como as territorialidades são instáveis e transitórias.

Como pano de fundo, fica-nos um quadro do que significa viver sob um regime opressor.

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10/02/2025

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João Luís Fernandes

Geógrafo. Professor do Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade de Letras de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra.

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