“Hardcore” saudita

 “Hardcore” saudita

Neymar ganhará 80 milhões de euros por temporada e terá direito a escandalosas mordomias. (Créditos fotográficos: AFP)

Aviso: o que a seguir se descreve tem bolinha. É hardcore do 1.º escalão. Pode ferir a sensibilidade dos leitores. Por ser cruel e sórdido. O filme tem como protagonista Neymar, a mais recente estrela da indústria da bola contratada por um clube da Arábia Saudita. Um reino tirânico que não hesita em matar os seus opositores1. Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro, é o seu algoz-mor.

Contratado ao Paris SG, Neymar chegou na sexta-feira (18 de Agosto) a Riade e foi apresentado, na tarde de sábado, como reforço do Al Hilal. A fotografia foi conseguida antes da dita apresentação, enquanto o avançado brasileiro conversava com Jorge Jesus. (record.pt)

O jogador brasileiro, que trocou o clube francês Paris Saint-Germain (PSG) pela equipa orientada pelo “mister” Jorge Jesus, vai ganhar 80 milhões de euros por temporada e desfrutará de mordomias verdadeiramente pornográficas. Anote, por favor: habitará uma casa com 25 quartos2, terá um motorista disponível durante 24 horas em todos os dias da semana, um avião privado e contas pagas nas folgas. A mansão está recheada de uma piscina de 40×10 metros e de instalações de três saunas. Cinco funcionários, a tempo inteiro, satisfarão todas as exigências da vedeta. Neymar foi brindado ainda com três carros topo de gama: um Bentley Continental GT, avaliado em cerca de 275 mil euros; um Aston Martin DBX, que custa cerca de 270 mil euros; e um Lamborghini Huracán, avaliado em cerca de 350 mil euros.

O reino saudita, que tem a segunda maior reserva de petróleo e a sexta maior reserva de gás natural do Mundo, é despótico. O monarca concentra em si todo o poder: legislativo, executivo e judicial. Neste país, não há eleições e os partidos políticos são proibidos. De acordo com o Índice de Democracia de 2010, criado em 2006 pela revista The Economist, o regime saudita era o sétimo mais autoritário do Mundo, entre os 167 países avaliados na pesquisa. Na avaliação mais recente, divulgada em Fevereiro de 2022, o Democracy Index 2021 reportou que a Arábia Saudita ocupa a 150.ª posição entre os 167 países sujeitos a este escrutínio de cinco critérios, como regista a Wikipédia: processo eleitoral e pluralismo, funcionamento do governo, participação política, cultura política e liberdades civis, com cada um dos itens recebendo notas que vão de 0 a 10.

O regime autoritário deste reino aplica leis bastante restritivas às mulheres. (Créditos fotográficos: AFP/AFP – exame.com)

Neste regime autoritário, quem ousa contestar é torturado e silenciado; as mulheres e os trabalhadores são cidadãos sem direitos. Esta realidade “hardcore” explica o meio milhão de euros que o futebolista brasileiro Neymar da Silva Santos Júnior receberá por cada historiazinha que publique a tecer loas ao país dos seus patrões.

Convenhamos: a lavagem em curso pode surtir mais efeito do que aquela que foi protagonizada pelo vizinho Catar, que acolheu, em 2022, o primeiro Mundial de Futebol realizado no Médio Oriente3. Por ser mais duradora e ter ao seu serviço detergentes de comprovada eficácia, como o futebolista francês Karim Mostafa Benzema, Neymar ou Cristiano Ronaldo.

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Notas:

1 – O jornalista Jamal Khashoggi foi morto no consulado da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia. Segundo o jornal turco Yeni Safak, que citou fontes policiais, Khashoggi, um crítico do regime do seu país, foi torturado, mal entrou no consulado, a 2 de Outubro de 2018.

O jornalista saudita Jamal Khashoggi durante uma entrevista, em
23 de Janeiro de 2016, em Riad, na Arábia Saudita. (Créditos
fotográficos: The Asahi Shimbun / Getty Images – theintercept.com)

O jornalista tinha ido, ali, tratar de assuntos burocráticos relacionados com o casamento que estava prestes a contrair com uma mulher turca. Mal chegou à representação diplomática, Khashoggi foi atacado por 15 carrascos. O jornal turco garante que Khashoggi foi interrogado sob tortura. A sua cabeça e os seus dedos foram cortados. A selvejaria aconteceu na presença do cônsul-geral em Istambul e de outros diplomatas.

Um relatório da CIA, tornado público em 2021, concluiu que “o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohamed Bin Salman, aprovou a operação em Istambul”. O jornalista saudita foi editor-chefe da Al-Arab News Channel e editor do jornal progressista Al Watan. Em 2017, exilou-se nos Estados Unidos da América e passou a escrever uma coluna mensal no Washington Post. (Fonte consultada: Wikipédia)

2 – A mansão é suficientemente grande para acolher, em total privacidade, Jair Bolsonaro e a sua prole. De resto, o antigo presidente do Brasil tem boas relações com a ditadura da Arábia Saudita, que ofereceu à sua mulher jóias avaliadas em três milhões de euros. Bolsonaro não declarou o mimo saudita ao fisco brasileiro e, colocado perante a acusação, viu-se obrigado a devolver as jóias à procedência. Reveja, aqui, o vídeo de apoio de Neymar ao candidato derrotado por Lula da Silva.

3 – Pelo menos, 6.750 trabalhadores morreram na construção e na reabilitação dos oito estádios que acolheram os jogos do “Mundial”, como informa o jornal britânico The Guardian.

(Créditos fotográficos: DR – rtp.pt)

A Amnistia Internacional e a organização não-governamental Human Rights Watch admitiram, contudo, que o número possa ter sido bem mais elevado. A maioria dos trabalhadores envolvidos eram migrantes da Índia, do Paquistão, do Nepal, do Bangladesh e do Sri Lanka, os quais receberam salários de miséria e foram sujeitos a condições profundamente desumanas.

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21/08/2023

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Soares Novais

Porto (1954). Autor, editor, jornalista. Tem prosa espalhada por jornais, livros e revistas. Assinou e deu voz a crónicas de rádio. Foi dirigente do Sindicato dos Jornalistas (SJ) e da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto (AJHLP). Publicou o romance “Português Suave” e o livro de crónicas “O Terceiro Anel Já Não Chora Por Chalana”. É um dos autores portugueses com obra publicada na colecção “Livro na Rua”, que é editada pela Editora Thesaurus, de Brasília. Tem textos publicados no "Resistir.info" e em diversos sítios electrónicos da América Latina e do País Basco. É autor da coluna semanal “Sinais de Fogo” no blogue “A Viagem dos Argonautas”. Assina a crónica “Farpas e Cafunés”, na revista digital brasileira “Nós Fora dos Eixos”.

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