Impressões da feira da Tocha

 Impressões da feira da Tocha

(© Marco Dias Roque)

Se algum dia precisarem de um abastecimento de sabedoria popular, vão à feira. Ao chegar à feira da Tocha, uma vila perto de Cantanhede, no distrito de Coimbra, ouvi logo um vendedor dizer a uma cliente: “Calma, não se enerve já, que ainda é de manhã!” Uma afirmação tão “zen” que quem a ouve nem precisa de saber o que é o taoismo.

Pouco depois, entre uns que chegam e outros que se vão embora, sai a piada fácil: “Já levas tudo?”, pergunta um. “Não, fica aí muita coisa”, responde o outro. Mesmo na “roulotte”das bifanas, entre copos de vinho branco uma feira é como um aeroporto, pode-se comer e beber a qualquer hora –, salta outra frase digna de registo: “Há dias melhores e dias piores, quem disser que é só vitórias está a mentir.” Quem fala assim, não é gago.

No meio de tanta gente e de tanta tenda, uma pessoa nem sem lembra de que a feira da Tocha ocupa – como tantas outras – um largo à frente da igreja que, num dia normal, não é mais do que um ponto de passagem ou uma zona de estacionamento fácil. (aldeiaolmpica.blogspot.com)

As feiras e os mercados, pontos para trocas comerciais com data definida e espaços dedicados, são uma inevitabilidade da sociedade. Mesmo quando se consegue produzir o mínimo para a subsistência, continua a ser necessário comprar coisas refinadas ou vender excedentes. À medida que as atividades se foram especializando – um faz roupa, outro vende batatas, logo, trocam produtos e ambos ficam satisfeitos –, oficializar estes encontros tornou-se obrigatório, nem que seja pelas questões logísticas. Portanto, mesmo que se veja como algo rústico – por comparação, por exemplo, com um centro comercial moderno –, uma feira é um pináculo da evolução. Centenas de pessoas reunidas num lugar, passando ao lado de bens em cima de bancadas que todos podem tocar – com o entendimento implícito de que podem mexer sem pagar, mas que não vão roubar –, representa quanto os humanos precisam de confiar uns nos outros para sobreviverem. É claro que esta ideia de “evolução social” se perde no meio da explosão de cores que é a feira e da cacofonia dos regateios entre vendedores e compradores. “Cuecas a cinco euros!” “Ó amigo, tenho aqui um casaco de pele de camelo, olhe que é o último!” E eu nem sabia que precisava de um casaco de pele de camelo.

No meio de tanta gente e de tanta tenda, uma pessoa nem sem lembra de que a feira da Tocha ocupa – como tantas outras – um largo à frente da igreja que, num dia normal, não é mais do que um ponto de passagem ou uma zona de estacionamento fácil. Fora algumas instalações permanentes para carne e vegetais, quem vende numa feira anda com a loja às costas. A variedade que trazem coloca qualquer centro comercial a um canto. Animais de pequeno porte, como galinhas, patos ou periquitos; árvores de fruto, couve e alface para plantar, ou quaisquer outros tipos de plantas; ferramentas ou alfaias para cultivo, ao par dos tachos e panelas, em alumínio ou de cerâmica; comes e bebes: bifanas, sandes de leitão ou frango assado e todos os bolos que se possam querer. Tudo isto ao lado de muita roupa. Não há centro comercial do Mundo de onde se possa sair com um pato debaixo do braço, com uma centena de cebolos para plantar e com um fato para ir a um casamento.

Almanaque português Borda d’Água.
(papelariagaleria.pt)

Entre os gritos dos vendedores, as cores das frutas e as texturas da roupa, uma feira é um caos controlado. Embora não pareça, existe uma ordem com espaço para operar nas entrelinhas e algumas zonas mais cinzentas. É o caso dos vendedores do  Borda d’Água, que passam por estes corredores ao ar livre a tentar vender o almanaque, desde sempre cheio de conselhos para agricultores em potência. Se o Borda d’Água é histórico, os vendedores que vi são de uma nova variedade, mal falavam Português e pediam uma moeda mesmo sem vender nada. Foi estranho ver pedintes que utilizam o almanaque como ferramenta de abordagem começando, até, no parque de estacionamento.

Na feira, em si, há também um tabu social ignorado temporariamente: muita da roupa é vendida por “ciganos”, uma parte da sociedade ostracizada em qualquer outro lado, mas aqui no seu elemento. O motivo, como sempre, é a chico-espertice. Nunca se sabe se a roupa é de origem mais ou menos ilícita – ao lado do casaco de pele de camelo, havia um da equipa de terra da empresa aérea KLM, por exemplo – e, portanto, de boa qualidade a preços apetecíveis. Os compradores, depois, podem ir ao café ler o Correio da Manhã e queixar-se das minorias e da criminalidade. Mas, a feira, enquanto a perceção for a de que quem compra sai beneficiado, é um espaço igualitário.

Feira de Cantanhede. (cm-cantanhede.pt)

Uma feira representa um pedaço de autenticidade num mundo cada vez mais estandardizado, um grito final de pequenos produtores e de comerciantes contra as grandes superfícies e as corporações. Cada tenda é um espaço único, com atendimento especializado. “Ó amigo, compre disto que é bom” ou “É pá, não temos, mas já encomendámos, para a semana já chega”. Na feira não há recibos e, por enquanto, o dinheiro ainda é rei. Os mercados são também o espaço ideal para começar a educar as crianças na fina arte de utilizar dinheiro. Como uma rapariga que vi na fila dos bolos, nervosa com a nota na mão e debaixo do olhar vigilante do pai, não fosse ela esquecer-se da encomenda. A transação correu bem e lá foi ela, sorridente, de saca na mão.

(© Marco Dias Roque)

Já diz o ditado que “quer queira quer não queira, o burro tem de ir à feira” e a verdade é que, durante séculos, era impossível viver sem passar pelos mercados, tanto a nível de consumo, mas também de comunidade. Era nestes aglomerados que se trocavam histórias e se ouviam as novidades, entre a venda de uma dúzia de ovos e a compra de uma nova enxada. Embora já nada seja o que era – nada o é, se é que alguma vez o foi –, dá gosto ver como algumas destas realidades continuam a existir. Nem que seja para comprar um litro de tremoços direto do produtor, que ainda nos dá uma mão-cheia, de borla. Nenhum centro comercial nos poderá oferecer essa experiência. Por isso, logo que surja a oportunidade, passemos por uma. Nunca se sabe se não aprenderemos alguma coisa.

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09/01/2025

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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