Impressões geográficas de uma viagem aérea Dubai-Pequim

 Impressões geográficas de uma viagem aérea Dubai-Pequim

Airbus A380 (pt.wikipedia.org)

A deslocação entre os Emirados Árabes Unidos e a capital da China tem a duração aproximada de sete horas e trinta minutos e percorre uma distância de 7858 quilómetros. Atendendo à clareza destes indicadores, parece tudo dito. Na verdade, não é assim.

(pt.dantful.com)

Entra-se no avião. Depois de devidamente sentado no lugar, o passageiro torna-se um corpo imóvel que se movimenta numa experiência que começa por ser topológica, considerando que existe um ponto de partida e um ponto de chegada.

Entre um e outro ponto, vive-se um território de espera, com momentos de entretenimento, de sono, de alimentação, de trabalho, de leitura, de escrita ou de um simples alheamento, num contexto que nos transporta para longe, da mesma forma que nos aprisiona num espaço curto e regulado.

Nessa espera de imersão num tempo que é, em simultâneo, uma cronologia que vai avançando e uma suspensão do contacto com o solo que habitualmente pisamos, aquele território pessoal é transitório e restrito. Naquela cadeira, o viajante miniaturiza os movimentos e emoldura-se num espaço exíguo e numa pequena mesa amovível na qual deve acondicionar as refeições que vão sendo servidas, mas também os livros, um caderno ou um computador.

Este é um território efémero, que se dissipará em poucas horas, mas é também um território flexível, sempre que a ordem que regula aquele cosmos móvel permita que o passageiro se levante e percorra alguns metros do corredor.

Porque a cabina de um avião é um espaço estratificado por muros internos, estas experiências variam com a posição do assento, algures entre a classe económica e os setores mais exclusivos.

(Créditos fotográficos: Wenhao Ruan – Unsplash)

Para que nos mantenhamos orientados, mas, igualmente, para atenuar a tensão, a máquina vai compartilhando dados quantitativos: a altitude, a velocidade, a hora no aeroporto de destino, a distância-tempo vencida e a que falta percorrer.

Em simultâneo, é possível acompanhar a cartografia da viagem. Numa sequência de mapas automáticos e coloridos, com diferentes escalas geográficas, o passageiro tem acesso a representações codificadas da hipsometria e da geomorfologia, da sucessão das terras continentais e dos espaços marítimos, das linhas políticas divisórias e de uma rede de pontos selecionados que nos sinalizam cidades, no geral, desconhecidas, que não vemos nem sentimos.

No ecrã fixo nas costas da cadeira da frente, é possível procurar as imagens captadas pelas câmaras exteriores. Sem nada que nos desperte a atenção, geralmente, deparamo-nos com um panorama nebuloso e indecifrável.

(Créditos fotográficos: Alexander Schimmeck – Unsplash) 

Por isso, nesta experiência de um espaço-tempo suspenso, somos pouco sensíveis à rugosidade da superfície terrestre percorrida. Atravessamos o Golfo Pérsico (ou Arábico), cruzamos fronteiras e entramos no espaço aéreo do Irão e do Paquistão. Percorremos a cordilheira dos Himalaias, entra-se em território chinês, algures perto do deserto de Taklamakan e encostamo-nos à fronteira com a Mongólia, mais a norte. Apesar disso, sendo escassa a perceção desses mundos que sobrevoamos, ignoramos e desvalorizamos as vidas e os ritmos, as populações, as paisagens, as harmonias e os conflitos, as discórdias e os caminhos lentos que existem dez mil metros abaixo dos nossos pés.

Imagem de satélite dos Emirados Árabes Unidos. (pt.wikipedia.org)

Acompanhando os mapas, que nos mostram topónimos em Inglês e em Árabe, a viagem parece tornar o planeta mais pequeno e acessível. Contudo, nesta compressão de espaço-tempo, o encolhimento faz-se também pela supressão dos interstícios e das regiões percorridas que, ao longe, se simplificam e transfiguram num mero espaço de trânsito.

(Direitos reservados)

Esta viagem traz-nos outras geografias, desdobradas e transcendentais. Se degustarmos um copo de vinho, é possível que, naquele momento e àquela altitude, nos filiemos a alguma paisagem vinícola francesa. Se abrirmos um livro que temos connosco (“O que eu ouvi na barrica das maçãs”, de Mário de Carvalho1), podemos regressar ao Portugal dos anos oitenta e noventa do século passado. Se o passageiro se fixar no ecrã e aceder ao menu de entretenimento, as escolhas são variadas e as experiências multiplicam-se.

Nesta rota, enquanto se sobrevoa uma Islamabad distante, impercetível e inexistente para aqueles que partiram dos Emirados Árabes Unidos, é possível vivenciar as temporalidades e as espacialidades de uma representação cinematográfica que nos territorializa no século XIX de uma ilha como a Islândia (por exemplo, “Godland” (“Terra de Deus”), realizado por Hlynur Palmason, em 2022).

Ali, naquela época, um jovem religioso dinamarquês viaja para construir uma igreja que promova a difusão da fé. Para isso, com passos lentos e compassados, atravessa os terrenos ásperos, gelados e inseguros daquela região remota.

Filme “Terra de Deus”, dirigido por Hlynur Palmason. (mubi.com)

Se o padre proveniente da Dinamarca sente, sob os seus pés, o pesado solo islandês, o viajante imóvel que se desloca do Dubai para Pequim pousa os sapatos no chão almofadado da cabina aérea e levita, suspenso numa corrida contra uma distância-tempo que, minuto a minuto, vai diminuindo, deixando o destino final mais perto.

Quando a aterragem se avizinha e o avião inicia a descida, torna-se mais nítida a perceção do aeroporto que se acerca. Por comunicação sonora, o passageiro é informado sobre a meteorologia que o espera na capital da China: a temperatura, a nebulosidade, a existência ou não de precipitação. Entre o Dubai e Pequim, sobretudo nalgumas épocas do ano, esta é uma viagem entre fusos horários, mas também entre climas e estados de tempo distintos.

Com a aproximação, regressamos a um solo do qual estivemos ausentes. Nos últimos minutos, o pessoal de cabina entrega-nos o documento da imigração para preenchimento, recordando-nos que, nos próximos minutos, deveremos entrar numa fronteira de soberania.

(Créditos fotográficos: Jeffry S.S. – Pexels)

Os limites políticos transpostos nas últimas horas, e que pouco nos afetaram, voltam a notar-se. Para acedermos ao país de chegada, é preciso mostrar documentos, partilhar dados pessoais e esperar pelo veredicto de quem faz o controlo disciplinar daquela barreira.

Dos mais de duzentos passageiros que fizeram o trajeto, nem todos se sujeitarão aos mesmos canais de regulação e de vigilância. Estas viagens expressam a desigualdade entre aqueles que, deslocando-se no mesmo avião, se diferenciam pela nacionalidade e pela robustez do passaporte.

Ainda assim, naquele momento, todos aterram em Pequim. De fora desta equação ficam aqueles, mais de 90 % da Humanidade, que nunca realizaram uma viagem aérea internacional ou que entraram num aeroporto.

Como nota final, partilha-se esta ideia. Viajar para longe não significa uma experiência plena, e contínua, de contacto com os lugares e os ambientes que vamos atravessando. Viajar para longe pode ser, apenas isso, um salto entre um ponto e outro, a cerca de oito mil quilómetros de distância. Acima de tudo, uma viagem não é uma experiência em linha reta, nem será nunca uma experiência unidimensional.

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Nota:

1 – Editado pela Porto Editora, em março de 2019.

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06/03/2025

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João Luís Fernandes

Geógrafo. Professor do Departamento de Geografia e Turismo da Faculdade de Letras de Coimbra. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares (CEIS20) da Universidade de Coimbra.

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