Lá vem o cidadão-cliente!

 Lá vem o cidadão-cliente!

(iela.ufsc.br)

Quando o famoso “neoliberalismo” estava em alta, lá pelo começo dos anos 1990, a ideia que circulou pelo país era a do cidadão-cliente, proposta por Bresser Pereira, então ministro do FHC (Fernando Henrique Cardoso)1. O lance era privatizar tudo e só teriam direitos de cidadão aqueles que pudessem pagar por isso.

A privatização é um assunto polémico. (fia.com.br)

O Chile aparecia como o exemplo perfeito. Lá, tudo estava privatizado e a mídia mostrava-o como o país modelo do capitalismo. Não era novidade. A turma do estado mínimo2 seguia as regras do chamado Consenso de Washington, que orientava, aos países da periferia, encolher o estado e abrir as portas para o dinheiro estrangeiro, aprofundando ainda mais a dependência. Foi quando o Fernando Henrique Cardoso3 começou a liquidação do país. Durante seu governo foram privatizadas 165 estatais, entre elas a gigante Vale do Rio Doce vendida por míseros três bilhões, quando rendia mais de dois bilhões por ano. Uma entrega absurda.

Luiz Carlos Bresser-Pereira (pt.wikipedia.org)

Naqueles dias, houve muita luta, mas, ajudado pela imprensa, o “bonitinho da burguesia” afirmava que a venda das estatais ajudaria o Brasil a pagar a dívida e a se desenvolver. E esse foi o discurso que venceu. As empresas foram entregues, só que a dívida aumentou. Passou de 153 bilhões para 850 bilhões, exatamente como os movimentos sociais apontavam. E durante o governo de FHC se desmantelaram empresas de telecomunicações, transporte e energia com a promessa de modernização. Obviamente, tudo isso passou para as mãos privadas e a modernização só foi possível para quem teve dinheiro para pagar. O tal do cidadão-cliente.

(itforum.com.br)

Com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, em 2003, a promessa era de que esse caminho iria se reverter. Mas não foi o que aconteceu. As privatizações continuaram. Começou com a privatização das estradas e, depois, Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) trouxe uma “inovação”, as chamadas parcerias público-privadas, que dava aos empresários a garantia de que, investindo no estado, caso desse prejuízo, o estado bancaria. O mundo perfeito para o setor privado. Nesse diapasão, vieram as parcerias para ferrovias e aeroportos, setores estratégicos da nação.

Os anos se passaram, vieram os governos de Temer4 e de Bolsonaro5 e a privatização seguiu caminhando. Foram reaproveitadas as “organizações sociais”6, que são empresas privadas travestidas de públicas, para administrar o serviço público. Tomaram conta de setores de assistência e de hospitais. Sob a aparência do público elas vão sugando os recursos e sucateando o serviço público, a ponto de a população implorar por um serviço privado. Então, quando tudo está destruído um empresário surge para “salvar” o serviço. Assim, vamos caminhando nessa novela de enredo ruim.

Agora, as tais Organizações Sociais estão sendo chamadas para gerir postos de saúde e até escolas. Tudo na mesma toada. Inocula-se a lógica privada e o serviço público deixa de ser universal. Em pouco tempo, o que era público se esfacela e o privado assume, salvando a pátria.

Cidade de São Paulo. (Créditos fotográficos: Joao Tzanno – Unsplash)

Em São Paulo já caminha a proposta de privatização das escolas públicas, para que “se modernizem”. Mas só na periferia, para “ajudar” os pobres. Esse filme já vimos. Elas até se modernizam, mas não serão para os filhos dos trabalhadores. Serão para os cidadãos-clientes. Tem dinheiro? Certo! Não tem? Está fora!
E assim o capitalismo avança, escondendo-se atrás de nomes pomposos como “neoliberalismo”, “modernização”, “globalização” e “eficiência”.

Lobo em pele de cordeiro. Não deu certo no passado e não dará agora, quando a falta de memória leva a população a novamente acreditar que é o serviço público o mal do país. Por aqui seguimos gritando e, infelizmente, sendo os arautos da desgraça. Apontamos os males que a privatização do serviço público traz, mas poucos escutam. Deixam-se levar pelo canto da sereia, até que sobrevenha a desgraça. E ela vem, sem lugar a dúvidas.

Qual a importância da privatização para o Brasil? (fia.com.br)

Neste novo ciclo de governo do PT esse processo se aprofunda e não vai demorar a que propostas mirabolantes de privatização ou do eufemismo “parceria público-privadas” voltem a dar as cartas.

A universidade tem sido um exemplo. Ano a ano, as instituições federais de ensino superior vêm perdendo verbas, sendo, com isso, destruídas. A coisa deve piorar até que a sociedade clame por privatização. Vejam que, em 2015, os valores de custeio chegavam a mais de 300 bilhões, e agora, em 2024, mal passam dos 150 bilhões. É um processo de aniquilamento por dentro que se aprofunda. E essa onda também faz com que ninguém mais queira saber de trabalhar numa universidade. Os salários são baixos e as condições precárias. É a velha lógica do sucateamento.

(Créditos fotográficos: Elaine Tavares)

Ao começar o mês de junho se completarão três meses de greve dos trabalhadores nas universidades, sem que o governo atue em consequência. Lula ironiza os trabalhadores: “Agora, vocês podem reclamar!”, e não oferece saída. Ou melhor, oferece sim, a saída é justamente a saída da universidade, para que ela se apequene ainda mais. Nos últimos anos, o número de trabalhadores que deixam os IFES em busca de melhores salários é grande. Poucos ainda querem fazer carreira na educação. A universidade parece desnecessária neste país que, cada dia mais, se torna um grande fazendão. Por aqui, só o agro é pop.

E assim se vai destruindo tudo o que é público. Buscando o cidadão-cliente. Então, quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça. E que se faça a luta.

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Notas da Redacção:

1 – Luiz Carlos Bresser-Pereira foi ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-1998) e Ministro da Ciência e Tecnologia (1999).

Retrato oficial de Fernando Henrique
Cardoso, datado de 1999. (pt.wikipedia.org)

2 – Como nos informa a Wikipédia, um Estado mínimo é aquele cujas funções são limitadas à protecção dos seus cidadãos contra a violência, o roubo, a fraude, bem como ao cumprimento de contratos. 

3 – Fernando Henrique Cardoso, também conhecido como FHC, foi o 34.° presidente da República Federativa do Brasil, entre 1995 e 2003.

4 Michel Miguel Elias Temer Lulia foi o 37.º presidente do Brasil, no período de 31 de Agosto de 2016 a 1 de Janeiro de 2019.

5 – Como também refere a enciclopédia livre Wikipédia, Jair Messias Bolsonaro é um militar reformado e político brasileiro, actualmente filiado no Partido Liberal (PL). Foi o 38.º presidente do Brasil, entre 1 de Janeiro de 2019 e 31 de Dezembro de 2022, tendo sido eleito pelo Partido Social Liberal (PSL), durante as eleições presidenciais de 2018. 

6 – Recorrendo novamente à Wikipédia, verificamos que, no Direito do Brasil, “organização social” (OS) é um “tipo de associação privada, com personalidade jurídica, sem fins lucrativos, que recebe subvenção do Estado para prestar serviços de relevante interesse público, como, por exemplo, a saúde pública”. A expressão “organização social” – diz ainda a Wikipédia – “designa um título de qualificação que se outorga a uma entidade privada, para que ela esteja apta a receber determinados benefícios do poder público, tais como dotações orçamentárias, isenções fiscais ou mesmo subvenção dire[c]ta, para a realização de seus fins”.

7 – IFES – Institutos Federais de Ensino Superior.

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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30/05/2024

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Elaine Tavares

Jornalista e educadora popular. Editora da «Revista Pobres e Nojentas», com Miriam Santini de Abreu. Integra o coletivo editorial da «Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos». Coordenadora de Comunicação no Instituto de Estudos Latino-Americanos da Universidade Federal de Santa Catarina (no Brasil).

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