Lei da Nacionalidade ainda oferece dúvidas de inconstitucionalidade

 Lei da Nacionalidade ainda oferece dúvidas de inconstitucionalidade

(Créditos fotográficos: Lee Soo Hyun – Unsplash)

A proposta de Lei da Nacionalidade apresentada pelo governo à Assembleia da República (AR) foi aprovada, a 24 de outubro, sem maioria, em sede de Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias (CACDLG), implicando, por se tratar de uma lei orgânica, a necessidade de os partidos que apoiam o governo negociarem com os partidos da oposição, com vista à obtenção da maioria qualificada de 116 votos a favor, entre os 230 deputados em efetividade de funções, para passar na votação final global, agendada para 28 de outubro.

(Créditos fotográficos: Pedro Correia – Unsplash)

Mercê da oposição manifestada pelo Partido Socialista (PS), pelo Livre, pelo Partido Comunista Português (PCP) e pelo Bloco de Esquerda (BE) no debate na especialidade, o partido Chega teria de se juntar ao Partido Social Democrata (PSD), ao partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) e à Iniciativa Liberal (IL) para que a proposta fosse aprovada. Porém, não havia garantias de que o partido de André Ventura o fizesse.

No conjunto, os partidos da direita aprovaram o aumento do prazo de residência para quem pretende obter a nacionalidade portuguesa: o prazo passa de cinco anos para sete anos, no caso de cidadãos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ou da União Europeia (UE), e para dez anos, nos restantes casos.

O PSD entregou uma alteração de última hora, que vai ao encontro de uma das propostas do Chega, que estabelece como condição de atribuição da nacionalidade que o requerente tenha “capacidade para assegurar a sua subsistência”. Efetivamente, o Chega tinha defendido que os requerentes não deveriam estar, no momento do pedido, dependentes de apoios sociais ou de subsídios. Os dois partidos aprovaram essa alteração.

A direita, com a abstenção do Chega, conseguiu fazer passar o fim do regime de naturalização para descendentes de judeus sefarditas. O PS ainda tentou alterar a sua proposta para que se aplicasse a estas pessoas o mesmo regime de que beneficiam os cidadãos da CPLP e da UE (prazo de sete anos de residência), mas sem sucesso.

(Créditos fotográficos: Nate Holland – Unsplash)

A pena acessória de perda de nacionalidade, que será introduzida no Código Penal (CP), em lei à parte, acabou aprovada na CACDLG. Tal pena acessória afeta os cidadãos naturalizados que mantenham dupla nacionalidade e que tenham sido condenados nos dez anos após a aquisição da nacionalidade “em pena de prisão efetiva de duração igual ou superior a quatro anos”. O líder do Chega, André Ventura tinha garantido que não aprovaria a proposta do PSD para impor a perda da nacionalidade, pela prática de vários crimes a cidadãos naturalizados, se isso dependesse da decisão de um juiz. Mas o seu partido acabou por viabilizar a alteração.

António Rodrigues, vice-presidente da bancada do PSD.
(psd.pt)

Após a votação, o PSD pediu sentido de responsabilidade aos partidos para que a Lei da Nacionalidade fosse aprovada, em votação final global, por maioria qualificada. Aos jornalistas, António Rodrigues, vice-presidente da bancada do PSD, referiu que “é necessário que cada um tenha a consciência do que vai fazer, no momento da votação, decidindo entre não ter um dispositivo legislativo ou termos, de facto, uma regulamentação efetiva de acordo com aquilo que temos estabelecido”. Por conseguinte, num recado ao Chega, deixou um apelo ao sentido de “responsabilidade de todos aqueles que vão estar envolvidos na votação”. “Entendemos que é preferível ter uma disposição, mesmo que não se concorde, inteiramente, com ela, do que não ter disposição nenhuma”, frisou o vice-presidente da bancada do PSD.

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A 28 de outubro, a AR aprovou, em votação final global, as alterações à Lei da Nacionalidade, com votos a favor do PSD, do CDS-PP, da IL, do Chega e do deputado do Juntos pelo Povo (JPP). O PS, o Livre, o BE, o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e PCP votaram contra. Assim, as alterações à Lei da Nacionalidade obtiveram 157 votos favoráveis e 64 contra, resultado que representa maioria superior a dois terços, quando apenas precisava de uma maioria absoluta de 116 dos 230 deputados, como já foi explicado.

A versão final inclui a reformulação apresentada pelo Chega, segundo a qual  perde a nacionalidade quem a obtiver por meios manifestamente fraudulentos.

Ribeira, no Porto. (Créditos fotográficos: Tayan Lima – Unsplash)

A obtenção da nacionalidade será possível só ao fim de 10 anos de residência legal, no país, ao fim de sete anos, para cidadãos da CPLP e da UE. E, entre outras mudanças, existirá a obrigatoriedade de comprovar, por teste ou por certificado, conhecimentos suficientes da língua e da cultura portuguesas, da História e dos símbolos nacionais. Será também necessário apresentar garantias de meios de subsistência para quem reside em território nacional.

Os requerentes de nacionalidade não podem ter sido condenados, por sentença transitada em julgado, a “pena de prisão igual ou superior a dois anos”.

As crianças nascidas em Portugal só terão nacionalidade, caso “um dos progenitores resida legalmente em território nacional, há pelo menos cinco anos”. E acaba a naturalização dos nascidos em Portugal, filhos de estrangeiros que se encontrem ilegalmente no país.

A par da votação das alterações à Lei da Nacionalidade, o PSD, o CDS-PP, o Chega e a IL aprovaram, em votação final global, uma alteração ao CP, em que se prevê a possibilidade de o juiz aplicar, como pena acessória, por crimes graves, a perda da nacionalidade.  

(Créditos fotográficos: Omar Ramadan – Unsplash)

De acordo com a versão final da lei, o juiz pode aplicar a pena de perda de nacionalidade portuguesa “ao agente que tenha sido condenado em pena de prisão efetiva de duração igual ou superior a quatro anos”. “Quem for condenado na perda da nacionalidade, como pena acessória, pela prática dos crimes referidos […] só pode requerer a sua reaquisição, nos termos gerais, definidos na Lei da Nacionalidade, dez anos após o decurso do prazo de cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das penas respetivas” (mudança que o PS considerou cedência do PSD ao Chega). Porém, a pena poderá ser aplicada, se os factos forem “praticados nos dez anos posteriores à aquisição da nacionalidade e [caso] o agente seja nacional de outro Estado, o que, imediatamente, deixa de fora a possibilidade de um cidadão se tornar apátrida, em consequência dessa pena. Inicialmente, a sanção de perda da nacionalidade por crimes graves fazia parte da proposta do governo de revisão da lei nacionalidade, mas o PSD e o CDS-PP decidiram autonomizá-la, para evitar que os riscos de inconstitucionalidade inerentes a essas alterações atingissem toda iniciativa legislativa do executivo.

O Chega pretendia que a perda da nacionalidade se estendesse por um período de 20 anos – e não de dez –, e que fosse automática e não uma pena acessória decretada por um juiz.

As bancadas da esquerda parlamentar votaram contra e o PS sinalizou que a sanção de perda da nacionalidade pode representar violação dos princípios constitucionais.

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Em suma, as regras apertam para estrangeiros que pretendam a nacionalidade portuguesa. As alterações aprovadas na AR – que têm de passar na avaliação do Presidente da República (PR), que decidirá pela promulgação, pelo envio ao Tribunal Constitucional (TC) ou pelo veto político –, preveem ajustes nos prazos, novos critérios de aprovação e mudanças na atribuição de nacionalidade à nascença para os filhos.

Como vimos, o prazo de espera para requerer a nacionalidade portuguesa é alargado, o que molesta o requerente.  

Lisboa (Créditos fotográficos: Erin Doering – Unsplash)

Os estrangeiros que requeiram a nacionalidade terão de comprovar conhecimentos da Língua Portuguesa – critério que a lei atual já exigia –, mas passam a ter de comprovar conhecimentos da cultura, da História e dos símbolos nacionais, através de um “teste ou certificado”. Terão, ainda, de assinar uma “declaração solene de adesão aos princípios da República” e de apresentar garantias de meios de subsistência.

Os requerentes de nacionalidade não podem ter sido condenados, por sentença transitada em julgado, a “pena de prisão igual ou superior a dois anos”. Caso isso aconteça, o pedido pode ser rejeitado. E, em relação à perda da nacionalidade, a lei inclui uma reformulação do Chega, pela qual perde a nacionalidade quem a obtiver por meios manifestamente fraudulentos.

A par da votação das alterações à Lei da Nacionalidade, foi aprovado um aditamento ao CP, que prevê a possibilidade de o juiz aplicar a perda da nacionalidade, como pena acessória, por crimes graves. Na prática, pode perder a nacionalidade quem tenha sido condenado a pena de prisão efetiva igual ou superior a quatro anos.

Coimbra (Créditos fotográficos: Antonio Sessa – Unsplash)

Também há mudanças a assinalar na atribuição de nacionalidade à nascença para filhos de estrangeiros. Os pais passam a ter de residir legalmente no país, há pelo menos há cinco anos, quando, até agora, só era necessário viver, há um ano, em Portugal, independentemente do estatuto legal. Acaba, portanto, a naturalização dos nascidos em Portugal filhos de estrangeiros que se encontrem ilegalmente no país.

Em relação aos descendentes de portugueses, é alargada a atribuição de nacionalidade de netos para bisnetos, desde que cumpram “requisitos de ligação efetiva” a Portugal.

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Num discurso ao país, depois da aprovação das alterações à Lei da Nacionalidade, o primeiro-ministro afirmou que o governo executou uma “reforma estrutural” para resolver “a grave situação” criada pela “política de imigração descontrolada” dos últimos anos.

Questionado sobre se teme que o diploma seja travado em Belém ou no TC, Luís Montenegro respondeu que “o sistema político tem regras de funcionamento”. “Nós não mandamos, nem muito menos intervimos, no processo de reflexão e [de] leitura política e jurídica de Sua Excelência o Sr. Presidente da República. Respeitamos, como sempre, aquilo que será a sua apreciação e respeitaremos aquela que for a sua decisão”, declarou, adiantando que o governo apresentará, em breve, a Lei de Retorno e reforçando a ideia de que “ser português não é uma mera conveniência, e que não pode haver portugueses de ocasião”.

Ministro da Presidência, António Leitão Amaro.
(portugal.gov.pt)

Momentos antes de a lei ser aprovada na AR, o ministro da Presidência, mostrando-se satisfeito, disse que a lei está “melhor do que a proposta que entrou” e falou do contributo da sociedade civil e dos partidos, que permitiu “reforçar a solidez constitucional”. Se o governo mantivesse uma lei da nacionalidade facilitista, a “mudança demográfica” decorrente do aumento de imigrantes, conjugada com os pedidos de cidadania, “geraria uma substantiva mudança na composição da comunidade política”, nos próximos anos, afirmou António Leitão Amaro.

O governante criticou a posição do PS, com uma declaração polémica: “Facilitaram a entrada de cerca de um milhão de pessoas e, agora, querem facilitar a entrada da nacionalidade a um milhão de pessoas. Parece que o PS quer acabar o trabalho de reengenharia demográfica e de reengenharia política do país, lançada com a manifestação de interesse.”

José Luís Carneiro, secretário-geral do Partido Socialista.
(ps.pt)

A posição do governante gerou pedido de retratação, por parte do líder do PS, e motivou a interpelação o deputado Pedro Delgado Alves, na AR, acusando Leitão Amaro de “quebra de lealdade democrática”, por “imputar a outras forças objetivos partidários e políticos como reengenharia social demográfica, para efeitos de vantagem própria”. “É algo que é grave, com ecos polidos da teorias da grande substituição, que ficam mal a qualquer pessoa, sobretudo a um ministro da República”, declarou o deputado, considerando a posição do ministro uma variante da teoria da substituição protagonizada por conspiracionistas, como Tucker Carlson, que acusa os democratas de promoverem a imigração para substituírem os eleitores brancos.

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Tendo em conta os anseios de vários constitucionalistas e de entidades que redigiram pareceres, muitas das dúvidas enunciadas há mais de um mês mantêm-se.

Para minimizar os riscos de inconstitucionalidade que podiam atrasar a entrada em vigor da lei, o PSD e o CDS-PP dividiram a lei em duas, colocando a sanção acessória de perda de nacionalidade num aditamento ao CP. Porém, o aditamento que cria a pena acessória, por decisão do juiz, inclui uma longa lista de crimes, além de crimes contra o Estado, como crimes contra a integridade física ou tráfico de estupefacientes.

Teresa Violante, professora convidada da NOVA School of
Law. (novalaw.unl.pt)

Teresa Violante, professora convidada da NOVA School of Law, considera que a perda de nacionalidade é “inconstitucional”. Notando que vários países legislaram esta questão, para casos de terrorismo, diz que tal argumento não é decisivo para se considerar que a Constituição da República Portuguesa [CRP] autoriza a “diferenciação entre portugueses de origem e naturalizados”, e refuta quem se “refugia” no artigo 26.º, porque “parte da privação de cidadania esbarra no princípio da igualdade” (artigo 13.º). Por outro lado, a quantidade de crimes constantes do aditamento torna passível a “violação do princípio da proporcionalidade”.

Contudo, há quem não veja problemas constitucionais com a perda da nacionalidade. Jorge Bacelar Gouveia, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, lembra que, no artigo 26.º, a CRP “admite a perda da nacionalidade, embora nunca se tenha legislado nesse sentido”. E recusa que haja discriminação, porque “tem de ser uma desigualdade manifesta” e “não é a mesma coisa uma pessoa que se naturalizou há sete anos e um português de origem”.

Jorge Bacelar Gouveia, professor catedrático da
Universidade Nova de Lisboa. (novalaw.unl.pt)

Em setembro, o Conselho Superior da Magistratura (CSM), a Ordem dos Advogados (OA) e vários constitucionalistas mostraram-se preocupados com a sanção acessória da perda da nacionalidade, destacando potenciais violações dos artigos 4.º e 13.º da CRP. Todavia, Bacelar Gouveia admite que o Estado tem o direito de exigir a quem deseja a nacionalidade que, se está cá a residir, demonstre condições para ser nacional, desde que não seja de forma desproporcional”, e que as exigências sobre a capacidade de subsistência sejam mais apertadas do que na Lei de estrangeiros, pois “uma coisa é ser nacional e outra é ser estrangeiro residente”.

Já Teresa Violante critica a indeterminação no requisito e o facto de não especificar a dependência da obtenção da nacionalidade “nas prestações sociais, sobretudo, as que se referem ao regime previdencial”, pois os estrangeiros a residir legalmente no país fazem descontos obrigatórios e, como tal, têm direito aos subsídios e à Segurança So­cial.

Catarina Reis de Oliveira, ex-diretora do Observatório das
Migrações. (cienciavitae.pt)

Catarina Reis de Oliveira, ex-diretora do Observatório das Migrações, diz que, “quando há nacionalidade, não há substituição”, porque se trata de “cidadãos”. E, advertindo que o “regime de suspeição permanente em que os imigrantes passam a estar é corrosivo da coesão social”, sustenta que o PSD mudou de posição, ao aprovar a lei com a direita radical.

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Não ficamos mais portugueses, nem temos puro-sangue português (não há disso). Teremos lei discriminatória, que envergonha, com nacionais de primeira e de segunda, com prazos de espera desproporcionados. Abolimos o ius soli. A pena de perda da nacionalidade é comparável a hipotética perda da adoção, se o filho adotivo merecer castigo. No caso de judeus sefarditas, nega-se a reparação feita à expulsão histórica e, no de cidadãos da UE e da CPLP, é a rutura unilateral de compromissos. Ora, se em direito, in dubio pro reo, em política, in dubio pro dignitate

Portanto, a meu ver, o PR deveria enviar o diploma ao TC ou vetá-lo politicamente.

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03/11/2025

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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