Lembranças dos poetas Gabriela Mistral e Pablo Neruda

 Lembranças dos poetas Gabriela Mistral e Pablo Neruda

Gabriela Mistral (elfikurten.com.br)

(libros.unam.mx)

Passam 80 anos da atribuição do Prémio Nobel de Literatura à poeta Gabriela Mistral. A Academia Sueca destacou a escritora chilena, em 1945, “como merecedora pela sua poderosa poesia lírica, que fez do seu nome um símbolo das aspirações idealistas de todo o mundo latino-americano”.

Numerosas actividades de carácter literário em vários países do Mundo celebram a escritora chilena que elevou a sua humilde voz a nível mundial. De origens muito modestas, Gabriela Mistral destacou-se na literatura poética como uma voz exemplar nascida das raízes mais profundas do seu país, onde o mítico, o telúrico e o espiritual encontraram uma justa conjugação lírica.

Saliento um artigo no qual é citada a biógrafa Carla Ulloa Inostroza, autora do livro “Gabriela Mistral en México – La construcción de una intelectual (1922-1924)”1. A também professora da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM) disse, em entrevista ao La Jornada, que Mistral se tornou parte do México, onde trabalhou, na Secretaria de Educação Pública (SEP), durante 21 meses, de 1922 a 1924. Quando terminou essa estância, a poeta continuou a representar esta nação. O México acolheu a escritora chilena Gabriela Mistral (1889-1957), o que foi essencial para ela a nível intelectual, como poetisa, artista, professora e diplomata. Deu-lhe uma plataforma para “mostrar os seus talentos” sem a qual nunca teria ganho o Prémio Nobel de Literatura, que recebeu em 1945, como afirmou a doutorada em estudos latino-americanos.

Projecto ou maqueta do monumento a Gabriela Mistral, intitulado “Lucila”. (cultura.gob.cl)

Na Praça Itália, no coração de Santiago do Chile, foi inaugurado um monumento de autoria das artistas Norma Ramírez e Mariana Silva, chamado “Lucila”, em referência ao nome real da também educadora, Lucila Godoy Alcayaga (que adoptou o pseudónimo literário Gabriela Mistral).

Gabriela Mistral e ex-alunas do Liceo de Punta Arenas, em 1919. (pt.wikipedia.org)

No Chile, como educadora, Gabriela Mistral partiu de Valparaíso em direcção a Punta Arenas, em 8 de Fevereiro de 1918, tinha apenas 27 anos. E a intensidade dessa experiência austral marcou o resto da sua vida e da sua obra.

Gabriela Mistral e  o poeta, crítico e tradutor sueco Anders Sterling,
durante a cerimónia de entrega do Prémio Nobel, em 1945.
(pt.wikipedia.org)

Sem dúvida alguma, Gabriela Mistral foi uma pioneira no seu tempo. A sua visão de ensino chamou a atenção do seu amigo Pedro Aguirre Cerda, futuro presidente do Chile e, naquela altura, ministro da Instrução Pública. Ele enviou-a para a província de Magalhães (extremo sul do Chile) como directora do liceu feminino de Punta Arenas. Foram dois anos que marcaram a sua vida e a dos Magalhânicos: Gabriela conectou-os com o resto do Chile, no início do século passado, e contribuiu para desenhar a sua identidade regional.

Fazendo realidade o provérbio ou a citação bíblica de que “ninguém é profeta na sua terra” (Lucas 4,24), Gabriela foi pouco querida no seu país de origem e só muito mais tarde foi, realmente, valorizada pela sua obra poética e também pelo seu trabalho diplomático e educador na América Latina. No seu discurso de agradecimento à Academia Sueca, Gabriela Mistral irmanou as línguas espanhola e portuguesa: “Por uma fortuna além do meu controlo, sou neste momento a voz directa dos poetas da minha raça e a voz indirecta das nobilíssimas línguas espanhola e portuguesa. Ambas se regozijam por terem sido convidadas para o convívio da vida nórdica, tudo isso auxiliado pelo seu folclore e poesia ancestrais.

Que Deus mantenha intactos o património e as criações da Nação exemplar, sua façanha de preservar os imponderáveis ​​do passado e atravessar o presente com a confiança das raças marítimas, conquistadoras de tudo.”

Pablo Neruda foi vítima da ditadura militar chilena. (rfi.fr)

A reedição do tomo IV da “Poesia Completa”, de Pablo Neruda (1959-1968), por parte da editorial Seix Barral, reabre o debate sobre um dos autores mais lidos e discutidos do século XX2.

É variado leque das obras reeditadas: do canto amoroso à política, da autobiografia à contemplação da Natureza, sem esquecer as controvérsias que, ainda hoje, dividem os seus leitores apaixonados e os seus detratores.

“Tenho fome da tua boca, da tua voz, do teu cabelo, / e ando pelas ruas sem comer, calado […]” Neruda transforma, assim, o íntimo em épico. Matilde Urrutia – a sua última companheira – é a sua musa final e dialoga com a geografia chilena.

Pablo Neruda, em 1963. (pt.wikipedia.org)

Também se incluem nesta reedição referências à Ilha Negra – de notar que é um espaço à beira-mar e não uma ilha – nas quais a casa é quase autobiográfica, em paralelo com a exaltação amorosa, o poeta constrói um imaginário ligado à Isla Negra, seu refúgio em frente do Pacífico. Ali, construiu uma casa que também foi o seu arquivo. Em “Uma casa na areia”, obra poética de 1966, Pablo Neruda descreve-a como um espaço onde convivem mascarões de proa, conchas marinhas e colecções insólitas. A paisagem torna-se parte da sua identidade, quando escreve: “Enquanto a magna espuma de Ilha Negra, / o sal azul, o sol nas ondas te molham, / eu contemplo os trabalhos da vespa /empenhada no mel de seu universo. […]”

A minha geração teve a sorte de conviver com Pablo Neruda (de nome próprio: Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto), sem o afastamento nem a distância que se poderia pensar com uma figura tão relevante. Lembro o seu discurso na minha cidade – Concepción – quando se apresentou como candidato presidencial, em 1970. Mais tarde, renunciaria a esta candidatura para dar passo à formação da Unidade Popular, coligação partidária de esquerda que conquistou a Presidência do Chile, com Salvador Allende.

Pablo Neruda foi um dos poetas mais prolíficos da literatura
chilena. (memoriachilena.gob.cl)

Do discurso de Pablo Neruda na Academia Sueca, em Estocolmo, no âmbito da cerimónia de entrega do Prémio Nobel da Literatura, em 1971, relembro o seguinte: “[…] Há exatamente cem anos, um pobre e esplêndido poeta, o mais atroz dos desesperados, escreveu esta profecia: ‘À l’aurore, armes d’une ardente patiente, nous entrerons aux splendides Villes’ (Ao amanhecer, armados de uma ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades).

Acredito nesta profecia de Rimbaud, o vidente. Venho de uma obscura província, de um país separado de todos os outros pela sua talhante geografia. Fui o mais abandonado dos poetas e minha poesia foi regional, dolorosa e chuvosa. Mas sempre tive confiança no homem. Jamais perdi a esperança. Por isso, talvez tenha chegado até aqui com a minha poesia, e também com a minha bandeira.

Em conclusão, devo dizer aos homens de boa vontade, aos trabalhadores, aos poetas, que todo o futuro foi expresso nessa frase de Rimbaud: só com uma ardente paciência conquistaremos a esplêndida cidade que dará luz, justiça e dignidade a todos os homens.

Assim, a poesia não terá cantado em vão.”

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Notas:

1 La Jornada – Gabriela Mistral halló en México la plataforma para “lucir sus talentos”

2 Pablo Neruda: amores, militancias y culpas en la etapa final de su vida

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11/09/2025

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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