“Les Lettres de Mon Père”, de Agnès Limbo
(© Hervé Dapremont-RVB – maisonculturetournai.com)
Festival Internacional de Teatro de Marionetas do Porto (FIMP25)
Dois dados me aparecem na Internet sobre a data de nascimento de Agnès Limbo1, uma de 1951 e outra de 1952. Vou tomar esta última, pois é, também, o meu ano de nascimento. E ao contemplar o espectáculo que esta marionetista belga trouxe ao Festival Internacional de Marionetas do Porto 2015 (FIMP25), sinto-me plenamente identificado com o seu trabalho, interpretação e memória. No ano de1960, esta artista tinha oito anos quando os seus pais regressaram ao Congo Belga. Ela, a minha irmã e três irmãos foram viver com o tio Pierre, o irmão da mãe, padre de uma pequena vila e os meninos ficaram conhecidos como “as crianças do padre”.

Como podemos ler no programa do FIMP e do Teatro Nacional São João (TNSJ): “Eu queria contar o que senti nesse ano. Vivi coisas nessa altura que outras crianças podem estar a viver agora. Pais num território em revolta, países em luta, países em guerra e crianças lá longe, receosas de ficarem órfãs. Queria dar conta dessa menina que eu era e do rasto que este abandono deixou em mim. Esse sentimento era forte: eles deixaram-nos, depositaram-nos, entregaram-nos ao padre, de facto, abandonaram-nos…”
No palco, encontra-se um sofá vermelho, uma mesa, uma menina-marioneta e vários objectos que ajudam a contar a história desta menina, Agnès. Através de pequenas maquetas, em plataformas rolantes, Agnès vai compondo, ajudada pela sua memória (a qual às vezes hesita), as recordações do espaço e do tempo que foram a sua infância e a dos seus irmãos. As memórias religiosas unidas ao quotidiano, à sala de jantar e ao dormitório, ambos com as respetivas referências iconográficas a Nossa Senhora e ao Cristo Crucificado… Mas também não podia faltar o elemento imaginário dessa Africa distante e sofredora: um crocodilo ou lagarto que assombra o sonho das crianças. É um pesadelo que se repete, o pesadelo que foram os anos do colonialismo belga no Congo – hoje, Zaire –, uma das mais infames incursões colonialistas europeias em Africa.

Consultando uma fonte histórica, ficamos a saber dos mortos e da aplicação de mutilação à população pelos colonizadores belga e do sofrimento infligido ao povo africano: “A história do Congo passa por um processo diferente dos demais territórios africanos fatiados pelos colonizadores. Em 1884, quando a África foi dividida entre os europeus, a região onde hoje se localiza o Congo foi declarada propriedade privada, pertencendo exclusivamente ao rei Leopoldo II, da Bélgica. Assim, formou-se o Estado Livre do Congo e instaurou-se um regime de crueldade extrema, marcado pelo extermínio da população local, fazendo com que o período ficasse conhecido como ‘Holocausto esquecido da África’. […]”

Ainda no artigo intitulado “Terror no Congo: o genocídio de 10 milhões de pessoas que o mundo esqueceu”, assinado por Adriana de Paula e publicado em 3 de Novembro de 2020, no sítio electrónico Iconografia da História, regista-se: “Do ponto de vista económico, o Estado Livre do Congo lucrava com a exportação do látex; com a extração do marfim e com a mineração. Além da exploração que era praticada contra a população local, o governo começou a estipular metas que deveriam ser cumpridas e a mutilar os trabalhadores quando não atingiam os níveis esperados. Assim, tem início um genocídio sem precedentes naquela região e cestas com mãos decepadas colocadas aos pés dos comandantes europeus passam a ser símbolo do que era praticado sob os domínios do rei Leopoldo II. […] Decepar as mãos dos trabalhadores tornou-se uma prática de intimidação usada para aumentar a produção. Aliadas a esse tratamento cruel, as péssimas condições de vida contribuíam para o surgimento de muitas doenças e para a desnutrição. Desse modo, cerca de 10 milhões de pessoas morreram no Congo durante o governo de Leopoldo II.”

Queria lembrar, igualmente, o autor norte-americano Mark Twain, que escreveu um libelo contra o monarca colonizador, o qual foi editado em Português, sendo apresentado, por Carlos Jardim, como a aventura que vai da tragédia do Estado Livre do Congo à sátira política: “Abjecto, megalómano e genocida. O regime de terror das sociedades comerciais do rei Leopoldo II da Bélgica, no Congo, na viragem do século XIX para o século XX, causou milhões de mortos e deixa uma marca indelével na História como uma das páginas mais negras do colonialismo. A barbárie ‘civilizadora’ despertou a revolta do escritor norte-americano Mark Twain, publicado em 1905. ‘O Solilóquio do Rei Leopoldo’, é uma preciosa sátira política, na qual o autor se coloca no papel de Leopoldo II e, através de palavras ácidas e de vitimização, condenando veementemente o rei e senhor do Estado Livre do Congo”.

Nas últimas cenas do espectáculo, a marionetista traz ao palco uma nova maqueta, uma caixa metálica, coberta de terra. São os restos do colonialismo. A partir daí, vai desenterrando os despojos de uma História moderna, que julgo está esquecida na Europa e também desconhecida e olvidada pelos Belgas: restos de armamento, restos de estátuas e, sobretudo, as mãos decepadas que bem poderiam cobrir completamente o palco do Teatro Carlos Alberto (TNSJ), local da representação.
É, sem dúvida, um espetáculo difícil de ver, tocante, e inspirador, que resiste à crueza da sua temática histórica graças ao encanto, à leveza e à criatividade com que Agnès Limbo revisita, depois de quase 70 anos, a sua e a nossa história!
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Nota:
1 – Pioneira do teatro de objetos, Agnès Limbos criou a Compagnie Gare Centrale em 1984 e, desde então, desenvolveu um estilo teatral singular em que o verbal, o visual e a arte da performance se misturam. Agnès-marioneta e a grande Agnès-marionetista olham-se no espelho do tempo que passa, recontando não só a sua história como a história de toda uma época.
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10/11/2025