Luke Skywalker: “Cavaleiro Jedi” e “Cavaleiro da Fé”? (1)

 Luke Skywalker: “Cavaleiro Jedi” e “Cavaleiro da Fé”? (1)

Banner de “Star Wars – Episódio VII: O Despertar da Força”. (Divulgação – forbes.com.br)

Uma leitura kierkegaardiana de “Star Wars”

A galáxia de “Star Wars” é povoada por uma constelação inteira de personagens lendários. (empireonline.com)

A Partida – O “Estágio Estético”

Em 2012, George Lucas, criador e autor dos seis episódios originais da saga “Star Wars”, vendeu a franquia à Disney, que rapidamente deu início à produção de uma nova trilogia sem qualquer contributo criativo do seu autor original. O resultado foi, para muitos fãs, uma desilusão: um produto desinspirado, sem visão artística e movido sobretudo por interesses comerciais.

Um dos aspetos mais controversos e polarizadores desta nova trilogia foi a caracterização de Luke Skywalker, o herói central da saga. Muitos fãs reagiram negativamente à forma como a personagem é retratada nos novos filmes, nos quais Luke surge como um eremita amargurado, derrotista e incapaz de lidar com o fracasso.

Nos “Star Wars” de Lucas, Luke Skywalker fora concebido como a personificação de ideais como otimismo, esperança, capacidade de auto-superação e confiança no bem existente em cada pessoa. Essas qualidades, postas à prova ao longo dos três filmes que compõem a chamada “trilogia original” — “A Guerra das Estrelas” (de 1977), “O Império Contra-Ataca” (de 1980) e “O Regresso de Jedi” (de 1983) – seguem, de perto, o percurso descrito por Joseph Campbell em “O Herói de Mil Faces”. Durante o processo de escrita dos filmes, Lucas estudou a obra de Campbell e recorreu deliberadamente aos motivos e às estruturas que este define como constituindo a “Jornada do Herói” ou “Monomito” – um padrão narrativo recorrente presente em contos de fadas, lendas, mitos e religiões de todo o Mundo, composto por dezassete etapas agrupadas em três fases essenciais: “Partida”, “Iniciação” e “Regresso”.

George Lucas, criador e autor dos seis episódios originais da saga “Star Wars”. (empireonline.com)

Resumidamente, a “Jornada do Herói” descreve a trajetória de um indivíduo que parte do mundo comum, recebe um chamamento à aventura, enfrenta provações e adversidades, recebe ajuda sobrenatural, sofre uma transformação interior e, por fim, regressa ao ponto de partida já transformado. O fruto dessa transformação não é apenas uma existência mais plena e realizada, mas também – e principalmente – um benefício para a comunidade à qual ele regressa. Visto desta forma, Luke Skywalker não é apenas o herói de “Star Wars”: ele encarna o arquétipo do “herói universal”, tornando-se um símbolo atemporal de heroísmo que atravessa épocas e culturas e que reflete aquilo que a Humanidade reconhece como o melhor da sua própria natureza.

Segundo Lucas, a ideia por detrás de “Star Wars” – assim como dos seus outros filmes, “THX-1138” (de 1971) e “American Graffiti” (de 1973) – foi pegar no arquétipo do herói mítico de Campbell e quis redefini-lo em termos existenciais. Com base nesta ideia, o presente texto procura estabelecer um paralelismo entre a jornada de Luke Skywalker e a jornada de auto-individuação descrita por Søren Kierkegaard (1813–1855), considerado o “pai” do existencialismo.

Søren Kierkegaard (1813–1855). (Ilustração de Stephen Collins – aeon.co)

Ao longo da sua obra  – especialmente em dois livros fundamentais: “Ou-Ou” e “Temor e Tremor” –, Kierkegaard delineia três estágios distintos no processo de tornar-se um “indivíduo autêntico”: o estético, o ético e o religioso. Assim, estas minhas considerações organizam-se em três secções, cada uma comparando uma fase da “Jornada do Herói” com um desses estágios existenciais: partida / estágio estético, iniciação / estágio ético e regresso / estágio religioso.

O existencialismo pode ser definido como uma filosofia, ou abordagem filosófica, que enfatiza o indivíduo como agente livre e responsável, capaz de determinar-se a si mesmo e ao seu próprio desenvolvimento através da vontade, assumindo, assim, a sua liberdade e responsabilidade moral nesse processo. O “eu”, portanto, ocupa um lugar absolutamente central no pensamento existencialista. Mas o ser um “eu autêntico” é, para Kierkegaard, não um ponto de partida, mas sim uma conquista – trata-se de uma luta entre a tendência do indivíduo para a conformidade e o seu afastamento da sociedade (ou “plebe”, como Kierkegaard lhe chama). 

Segundo Søren Kierkegaard, filósofo dinamarquês do século XIX, há três dimensões que compõem a existência humana: a estética, a ética e a religiosa. (expressoexistencial.substack.com)

A filosofia de Kierkegaard surgiu em reação àquilo que ele considerava as três forças mais influentes da Copenhaga do seu tempo: a imprensa popular, a Igreja do Estado e a corrente filosófica predominante na Europa de então: o Idealismo Alemão.  Segundo Kierkegaard, estas três forças reduziam a existência humana a um racionalismo aglutinador, no qual o “eu” concreto e a experiência subjetiva tinham pouca ou nenhuma importância.

Para ele, o processo de se “tornar um indivíduo” significa que o “eu” deve assumir plenamente a sua existência através da escolha interior e da responsabilidade pessoal. Não se trata de seguir normas sociais ou sistemas filosóficos abstratos pré-estabelecidos, mas de apropriar-se da própria vida num processo que, em última análise, é subjetivo, singular e intransferível. Esse processo atravessa três estágios sucessivos nos quais o indivíduo é confrontado com diferentes formas de viver, de decidir e de relacionar-se com a verdade interior, mesmo quando isso implica angústia, risco e isolamento perante o mundo.

Os dois conceitos kierkegaardianos, “angústia” e “sentido”, lançaram as bases daquilo que viria a ser o “existencialismo” no século XX e tornaram Kierkegaard o “pai do existencialismo”. (filosofares.com.br)

O estágio estético é o primeiro destes estágios e corresponde à esfera da imediaticidade temporal: é o modo de existência do indivíduo centrado exclusivamente no presente, indiferente ao passado enquanto fonte de arrependimento, e ao futuro enquanto fonte de obrigações. Em “A Guerra das Estrelas”, primeiro episódio da trilogia, a personagem que melhor representa o estágio estético é Han Solo. No início, Han é essencialmente um aventureiro pragmático, movido pelo lucro, sem se comprometer com causas maiores. A antítese de Han é a Princesa Leia, uma líder revolucionária altruísta e combatente ativa pela liberdade. Ambas as personagens representam os caminhos postos diante de Luke, o nosso protagonista, oferecendo-lhe modelos de ação e decisão que ele ainda terá de compreender e de escolher seguir.

Alec Guinness, Anthony Daniels e Mark Hamill no “set” de “Star Wars”. (Divulgação – jovemnerd.com.br)

Apesar de idealista, altruísta, compassivo e profundamente avesso ao Império, Luke sente-se aprisionado e impotente no pequeno mundo desértico em que vive. Mas, segundo Lucas, Luke encontra-se nessa situação também porque, de certo modo, subconscientemente assim o quer. Quando recebe o seu “chamamento para a aventura” a primeira etapa da fase da Partida na “Jornada do Herói” –, que lhe aparece sob a forma de um dróide (R2-D2) com uma mensagem holográfica e um mentor sábio na figura de Obi-Wan Kenobi, Luke, inicialmente, rejeita o convite para “aprender os caminhos da Força”. Justifica-se com os compromissos que tem para com os tios, que, segundo ele, o impedem de seguir viagem. Esta “recusa ao chamamento” – a segunda etapa da Partida – corresponde à condição kierkegaardiana do indivíduo no estágio estético: alguém incapaz de realizar a escolha que lhe permitiria tornar-se um “eu” autêntico.

(Direitos reservados)

Em “Ou/Ou”, Kierkegaard afirma que não escolher é, em si, uma escolha – uma escolha pela qual também somos responsáveis. A escolha de Luke é precisamente uma não-escolha: ao convencer-se de que não tem alternativa, ele ainda não se reconhece como indivíduo. Mesmo com os conselhos de Kenobi – que encarna o “auxílio sobrenatural”, a terceira etapa – Luke permanece indeciso até que o Império mata a sua família. Só então decide “aprender os caminhos da Força” e “tornar-se um Jedi como o [seu] pai”. É neste momento que Luke entra na quarta etapa, a “travessia do primeiro limiar”, que consiste na passagem do mundo conhecido e familiar (embora estagnado, estéril e insatisfatório) para o mundo desconhecido, onde o aguardam perigos, mas também possibilidades de crescimento e de desenvolvimento.

Ao dar esse passo, Luke realiza aquilo a que Kierkegaard chama um “salto existencial”: a passagem de uma existência centrada no imediato para uma vida orientada por escolhas conscientes e responsabilidade moral. Luke abandona o estágio estético e entra no estágio ético.

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Nota:

Seguir-se-á “A Iniciação – O Estágio Estético”.

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01/12/2025

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Carlos Alexandre Monteiro

Carlos Alexandre Vieira Monteiro nasceu e reside em Coimbra. É investigador no Instituto de Estudos Filosóficos (IEF) da Universidade de Coimbra. Licenciado, mestre e doutorando em Filosofia pela mesma instituição, desenvolve investigação em áreas como Retórica, Teoria da Argumentação, Lógica, Epistemologia, Filosofia da Ciência, Estética, Ética e Filosofia Política. Com artigos académicos publicados e intervenções como palestrante em conferências internacionais, os seus interesses concentram-se na aplicação de conceitos filosóficos a questões que moldam o mundo contemporâneo, incluindo Comunicação em Saúde, Política, Inteligência Artificial, Multiculturalidade, entre outras. Para além da Filosofia, o Cinema constitui a sua maior paixão.

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