McNair, Altheide e toda uma história de amor
(Créditos fotográficos: Kevin Grieve – Unsplash)
Em 1979, o sociólogo norte-americano David Altheide desenvolveu uma tese que continua a iluminar a compreensão da comunicação política contemporânea: a política e a lógica mediática são duas faces da mesma moeda. No livro em que consagra este conceito, “media logic”, Altheide descreve-o como um conjunto de princípios – simplificação, personalização, valorização do conflito e da negatividade – que estruturam não apenas a produção noticiosa, mas também os modos de receção do público.

Décadas mais tarde, em 1995, o investigador Brian McNair recupera esta noção em “An Introduction to Political Communication”, mostrando como os líderes políticos – em especial, os populistas – souberam explorar este terreno fértil. Não questionamos o espaço que os media concedem ao populismo – e que, de resto, é um símbolo de vitalidade democrática. O problema surge quando o discurso populista chega às redações já moldado segundo os critérios mediáticos, pronto a ser difundido, e encontra jornalistas dispostos a reproduzi-lo de forma quase acrítica.


Figuras como André Ventura, Donald Trump ou Jair Bolsonaro raramente precisam de adaptar o seu discurso para serem notícia. A própria organicidade da sua retórica é estruturalmente compatível com a “media logic”. Os paralelismos são evidentes: slogans que reduzem a complexidade política a fórmulas simplistas; debates centrados na figura carismática do líder, apresentado como encarnação do “povo real”; narrativas de conflito permanente contra as elites; e uma mobilização sistemática da negatividade através de ataques constantes às instituições. Cada intervenção pública destes líderes cumpre, quase didaticamente, os requisitos da lógica mediática – e, ao fazê-lo, reforça a identidade populista. Um casamento perfeito, uma verdadeira história de amor.

(alchetron.com/David-Altheide)
Dessa convergência nasce uma relação mutuamente vantajosa. Os media alcançam o que mais desejam – audiências, cliques, viralidade. Os populistas conquistam o que mais ambicionam – centralidade, reconhecimento e legitimidade. O caso português demonstra como ambas as partes conhecem bem esta relação “win-win”: após as legislativas de 2025, André Ventura é presença assídua em entrevistas de fundo em horário nobre e eclipsa em exposição mediática líderes como José Luís Carneiro ou Luís Montenegro. A explicação é simples: Ventura gera conflito, divide opiniões, multiplica partilhas e garante o espetáculo inflamado que a televisão contemporânea utiliza como mecanismo de fidelização. O populismo não joga apenas bem o jogo mediático; ele é, por natureza, o produto acabado daquilo que a “media logic” mais valoriza.

Um episódio recente ilustra este mecanismo quase de forma pedagógica. Numa entrevista concedida ao Now, o TikTok oficial do canal destaca um clipe em que se condensam todos os elementos típicos do discurso populista: ausência de contraditório, ataques diretos às instituições judiciais, apelos às forças de segurança como emblema de proximidade ao “povo real” e contraponto à ameaça da imigração. Para o Now, é o conteúdo ideal para viralizar; para Ventura, é mais uma legitimação estratégica, um momento para megafonizar os seus soundbytes. Os números falam por si: as visualizações do excerto superaram largamente as dos restantes conteúdos e os comentários multiplicam-se em odes ao entrevistado.

Importa, contudo, sublinhar que esta dinâmica não define todo o jornalismo nem todos os órgãos de comunicação social. Muitos profissionais trabalham precisamente em sentido contrário: com rigor, pluralismo e enquadramento crítico – valores essenciais a qualquer jornalismo democrático. Foi apenas para sublinhar a lógica dominante que Altheide cunhou o conceito de “media logic”; e é nesse mesmo sentido que McNair nos lembra que a comunicação política populista não é um acidente, mas o resultado mais sofisticado dessa lógica.
Ventura, tal como Trump ou Bolsonaro, não inventou o fenómeno. Apenas percebeu mais cedo – ou explorou com maior eficácia – a gramática mediática do nosso tempo.
.
Nota: Entre a entrevista mencionada e a publicação deste artigo, André Ventura voltou a ser entrevistado, desta vez na CMTV. Ambos os canais pertencem à mesma empresa proprietária – a Medialivre (antiga Cofina Media).
.
28/08/2025