Memórias: Botequim (4)

 Memórias: Botequim (4)

As palavras de Natália Correia “faziam furor nas famosas tertúlias que oferecia na sua casa ou no Botequim da Graça, que se mantém tal como ela o ‘deixou’ há mais de três décadas”. (eltrapezio.eu)

Eu trabalhava, durante o dia, numa agência de publicidade. Mas, naquele dia, o trabalho entrara noite dentro. No final, uma colega minha queria comer qualquer coisa. Já não era cedo. Propus-lhe ir ao Botequim, que ela não conhecia. Fomos. Estava quase vazio. Ainda decorriam operações policiais, que levaram à prisão os membros das Forças Populares 25 de Abril (FP-25). Entre eles, estava um “a monte”, indiciado por ser um dos operacionais que se propunham raptar uma figura pública, bem polémica, para pedir um resgate para “fundos da organização”.

Botequim, no Largo da Graça (n.º 79), em Lisboa. (onthegrid.city)
Natália Correia (livro.dglab.gov.pt)

E que vejo eu? Em amena cavaqueira, os putativos raptor e raptado! Confesso que embasbaquei. A minha colega, a Rita, olhava-me sem perceber a troca de olhares entre mim e Natália Correia. Para Natália tudo era normal, não se passava nada, desarmava-me o olhar atónito com esse seu olhar, como quem me diz “nunca viu?” ou alguma coisa parecida.

O Botequim era um espaço aberto, sem fronteiras ideológicas apertadas. Todos, desde que para lá do cinzentismo quotidiano, podiam ali encontrar-se. De facto, o meu espanto é que era de espantar. Para me desconsertar, Natália “mediu” a Rita de alto a baixo e atirou: “É sua amiga? Ou é só sua amiga?” Natália Correia passou para mim a atrapalhação e deixei de olhar para a outra mesa.

.

27/11/2025

Siga-nos:
fb-share-icon

Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

Outros artigos

Share
Instagram