Memórias: Botequim (4)
As palavras de Natália Correia “faziam furor nas famosas tertúlias que oferecia na sua casa ou no Botequim da Graça, que se mantém tal como ela o ‘deixou’ há mais de três décadas”. (eltrapezio.eu)
Eu trabalhava, durante o dia, numa agência de publicidade. Mas, naquele dia, o trabalho entrara noite dentro. No final, uma colega minha queria comer qualquer coisa. Já não era cedo. Propus-lhe ir ao Botequim, que ela não conhecia. Fomos. Estava quase vazio. Ainda decorriam operações policiais, que levaram à prisão os membros das Forças Populares 25 de Abril (FP-25). Entre eles, estava um “a monte”, indiciado por ser um dos operacionais que se propunham raptar uma figura pública, bem polémica, para pedir um resgate para “fundos da organização”.


E que vejo eu? Em amena cavaqueira, os putativos raptor e raptado! Confesso que embasbaquei. A minha colega, a Rita, olhava-me sem perceber a troca de olhares entre mim e Natália Correia. Para Natália tudo era normal, não se passava nada, desarmava-me o olhar atónito com esse seu olhar, como quem me diz “nunca viu?” ou alguma coisa parecida.
O Botequim era um espaço aberto, sem fronteiras ideológicas apertadas. Todos, desde que para lá do cinzentismo quotidiano, podiam ali encontrar-se. De facto, o meu espanto é que era de espantar. Para me desconsertar, Natália “mediu” a Rita de alto a baixo e atirou: “É sua amiga? Ou é só sua amiga?” Natália Correia passou para mim a atrapalhação e deixei de olhar para a outra mesa.
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27/11/2025