Mulheres fazem mais trabalho não remunerado do que os homens

(Créditos fotográficos: Drazen Zigic/Freepik – jornal.usp.br)
Trabalho não remunerado é toda a atividade realizada sem retribuição regular, em dinheiro ou em bens, e não sujeita a contrato de trabalho, nem a contrato de prestação de serviços. Inclui tarefas domésticas, como limpeza, cozinhar, lavar roupa, ou cuidados com a família, isto é, com crianças, com idosos e com doentes, bem como ações de voluntariado ou de apoio altruísta.
Embora seja uma atividade económica e socialmente essencial, é invisível, visto que não é paga, nem é considerada nas contas nacionais de um país, sendo realizada, principalmente, no âmbito doméstico e de cuidado. Abrange a limpeza da casa, cuidados com crianças e com idosos, preparação de refeições e outras tarefas essenciais à subsistência.

Este trabalho, realizado predominantemente por mulheres, é fundamental para o funcionamento da sociedade, mas a sua falta de reconhecimento económico e social agrava as desigualdades de género e afeta a autonomia das mulheres, exigindo políticas públicas e de redistribuição de responsabilidades.
É importante e, muitas vezes, invisível, pois é essencial para a economia. Sem ele, a sociedade e as atividades remuneradas não poderiam existir. Contudo, não é contabilizado no produto interno bruto (PIB) de um país. Não é reconhecido nos indicadores económicos, o que gera uma invisibilidade estatística, afetando, principalmente, as mulheres. Com efeito, a maior parte deste trabalho é realizada por mulheres, o que sobrecarrega e limita o seu tempo para outras atividades, afetando a sua inserção no mercado de trabalho e a sua autonomia económica.
A falta de políticas públicas para o cuidado (creches, apoios a idosos) e a desigualdade na divisão destas tarefas são um obstáculo à emancipação e aumentam a vulnerabilidade económica das famílias, especialmente as mais pobres.

À partida, a solução passa pelo seu reconhecimento e pela sua valorização, visto que dar visibilidade e valorizar este trabalho, tanto simbólica como financeiramente, é fundamental para uma sociedade mais justa e mais igualitária.
Depois, são necessárias políticas públicas que levem a forte e sistemático investimento em infraestruturas de cuidado (creches, serviços de apoio a idosos), à criação de políticas de partilha e de redistribuição do trabalho não remunerado, que levem à promoção da divisão equitativa das tarefas domésticas e de cuidado, dentro das famílias, bem como à inclusão contabilística do trabalho de cuidado nas contas nacionais, para mostrar a sua real contribuição económica.
O trabalho não remunerado, nomeadamente, a assistência a doentes, a deficientes, a idosos, a crianças, o desenvolvido em determinadas áreas no âmbito da atividade profissional de um dos cônjuges, o denominado “trabalho doméstico”, o trabalho voluntário, carece de estatuto próprio.

De acordo com o artigo de Marieta Fonseca, sob o título “O Trabalho não remunerado é útilpara a sociedade” publicado no site da APFN – Associação Portuguesa de Famílias Numerosas, a inexistência desse estatuto “leva a que toda essa atividade ‘profissional’ se encontre excluída de proteção social, de qualquer seguro contra riscos para a saúde e acidentes de trabalho, e mais, não seja incluída nas estatísticas sobre dados económicos nem no cálculo do produto nacional bruto [PNB]”.
No atinente às famílias numerosas, importa que o governo desenvolva uma política de igualdade de direitos e de oportunidades entre os pais, de modo a permitir a todos o exercício dos seus direitos e o cumprimento dos deveres familiares, profissionais e sociais. Com efeito, a uma família com três ou mais filhos, só é viável conciliar a vida familiar com a atividade profissional, se o contexto socioeconómico facultar a liberdade de decisão, através de “um enquadramento legal” e de “garantias sociais”, como “horários de trabalho flexíveis, interrupção da atividade profissional, por motivos familiares, formação e reinserção na vida ativa da pessoa que se ocupou da educação dos filhos, melhoria das infraestruturas sociais dos zero ao seis anos e cuidados de saúde”, bem como através da “assistência a idosos e doentes que permitam a opção entre o exercício ou não de uma atividade profissional remunerada”.

Segundo Marieta Fonseca, são se pretende que o trabalho doméstico seja remunerado, mas que, sendo desempenhado por uma empregada doméstica ou por uma pessoa que trabalha a horas, seja incluído nas estatísticas sobre dados económicos e no cálculo do PNB.
Por isso, a articulista sustenta a necessidade de reconhecer o valor económico e social do trabalho não remunerado realizado por cada família. Tal reconhecimento deve contemplar duas vertentes: atribuição à pessoa que se dedica à realização do “trabalho doméstico” e à educação dos filhos, direitos próprios, quanto à proteção na doença e nos acidentes de trabalho, à contagem do tempo para efeitos de reforma, e a facilidades na reconversão profissional; e consideração dos benefícios para a sociedade do desempenho de uma função educativa de qualidade.
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A 25 de fevereiro a deputada e porta-voz do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), num texto publicado no Expresso, sob o título “Há um trabalho que é invisível e são as mulheres que o pagam”, vincava que a desigualdade de género se manifesta “em muitas dimensões”, sendo uma delas “o trabalho doméstico não remunerado”, pela “vulnerabilidade socioeconómica que cria”.
Sublinhava Inês de Sousa Real a “clara desigualdade na distribuição das responsabilidades domésticas e familiares, que recaem, maioritariamente, sobre as mulheres” – desigualdade reforçada pela ausência de “reconhecimento formal do valor económico deste trabalho, deixando muitas mulheres aprisionadas e invisibilizadas pela falta de reconhecimento da sociedade”.

Segundo a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), 73% das mulheres realizam mais tarefas domésticas não pagas do que os homens, enquanto apenas cerca metade dos casais dividem, equitativamente, estas funções. Na educação e no cuidado dos filhos, a balança volta a pender para o lado das mães, que assumem carga três vezes superior à dos pais.
Apesar disso, há alguns sinais de mudança. E Inês de Sousa Real exemplifica com três casos: um da Espanha e dois de Portugal. Na Espanha, o Tribunal de Primeira Instância de Vélez-Málaga condenou um homem a pagar 204 mil euros à sua ex-mulher “como compensação pelo trabalho doméstico realizado em casa, não remunerado”, nos 25 anos de casados.
Em Portugal, em Barcelos, um homem foi condenado ao pagamento de mais de 60 mil euros à ex-companheira, pelo trabalho doméstico que esta desempenhou, ao longo de quase 30 anos de união de facto, praticamente em exclusivo e sem qualquer contrapartida, o que “resulta num verdadeiro empobrecimento desta e a correspetiva libertação do outro membro da realização dessas tarefas”. E, num outro caso, na sequência de decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que fez com que o ex-marido escapasse ao pagamento decretado no final do divórcio litigioso, uma mulher de 80 anos recorreu ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), tendo obtido a indemnização de 100 mil euros, por condenação do Estado português.

Tudo isto reforça que é o momento para melhorar a lei, nesta matéria, introduzindo requisitos concretos. “Esta injustiça precisa de ser corrigida, através de nova legislação”, diz Sousa Real.
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Servet Yanatma, em artigo intitulado “Trabalho não remunerado na Europa: Que países apresentam as maiores disparidades entre homens e mulheres?”, publicado pela Euronews, a 28 de setembro, sustenta que “o trabalho não remunerado é um aspeto significativo da desigualdade entre homens e mulheres, na Europa, com as mulheres a gastarem, em média, mais duas horas, por dia, do que os homens”, seguindo as diferenças, neste domínio, “tendências regionais, moldadas por estereótipos e normas de género”.
Aliás, a desigualdade de género não é exclusiva do trabalho não remunerado: ela é um dado evidente na economia, “em toda a Europa”, surgindo “em muitas áreas, incluindo o emprego, a participação laboral e a remuneração”, de acordo com a articulista, para quem “o trabalho não remunerado é um dos principais fatores desta disparidade”. E não é só na Europa que isso acontece: “Nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico], as mulheres efetuam quase duas vezes mais trabalho não remunerado do que os homens, por dia.”

Servet Yanatma refere que, “em 23 países europeus, as mulheres fazem, em média, 86% mais trabalho não remunerado do que os homens, um pouco menos do dobro”. Ou seja, gastam 262 minutos, por dia, nesse trabalho, ao passo que os homens gastam 141 minutos – “uma diferença de 121 minutos, ou seja, duas horas por dia”.
Verifica a articulista que “as disparidades no trabalho não remunerado entre homens e mulheres variam muito entre os países europeus”. Assim, entre 23 países europeus, a diferença de trabalho não remunerado entre homens e mulheres varia entre 29%, na Suécia, e 349%, na Turquia. Na Suécia, as mulheres gastam 220 minutos, por dia, em trabalho não remunerado, em comparação com 171 minutos para os homens – uma diferença de 49 minutos. As mulheres suecas registam também o menor tempo de trabalho não remunerado de todos os países da lista.
Três outros países nórdicos seguem a Suécia com as menores disparidades, em termos de trabalho não remunerado: a Dinamarca, com 31%, a Noruega, com 35% e a Finlândia, com 50%.
Depois da Turquia, onde as mulheres efetuam 3,5 vezes (349%) mais trabalho não remunerado do que os homens, as disparidades mais elevadas surgem no Sul da Europa: em Portugal, com 242%, na Grécia, com 173%, e na Itália, com 134%. E a Espanha também ocupa lugar de destaque, em sétimo lugar, com a diferença de 98%, significando que as mulheres fazem quase o dobro do trabalho não remunerado do que os homens.

Recorda a articulista que o relatório da OCDE sobre a igualdade de género, num Mundo em mudança, conclui que “o trabalho não remunerado funciona como barreira ao trabalho remunerado para algumas mulheres, mantendo-as fora do mercado de trabalho”. Assim, de acordo com aquela organização internacional, a Turquia regista a taxa de participação laboral mais baixa, em 2024, com 37%, comparativamente com a média da União Europeia (UE), de 53%. Segue-se a Itália, com 42%, e a Grécia, em quarto lugar, com 45%. Estes países registam também as maiores disparidades de género no trabalho não remunerado.
Dorothea Schmidt-Klau, diretora do departamento de emprego, mercados de trabalho e juventude da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, explicou à Euronews Business a razão por que a Turquia e a Itália ocupam os lugares cimeiros na Europa, no atinente à percentagem de “pessoas disponíveis para trabalhar, mas que não procuram”. “As responsabilidades de cuidados e as normas sociais são dois outros fatores que desempenham um papel importante, especialmente na Turquia”, afirmou, considerando que “o acesso limitado a serviços de acolhimento de crianças e de cuidados a idosos a preços acessíveis, juntamente com as atitudes sociais, relativamente ao papel da mulher, reduzem a capacidade das mulheres para se envolverem na procura ativa de emprego.
Por conseguinte, as taxas de participação das mulheres estão entre as mais baixas dos países da OCDE, segundo Dorothea Schmidt-Klau.

mercados de trabalho e juventude da Organização Internacional do
Trabalho. (linkedin.com/in/dorothea-schmidt-klau)
Entre as cinco maiores economias da Europa, a Itália e a Espanha registam os piores resultados, enquanto a Alemanha apresenta a menor diferença, com 61%, seguida da França, com 66%, e do Reino Unido, com 78%. As mulheres fazem mais de cinco horas de trabalho não remunerado, em Portugal (328 minutos), na Itália (306 minutos) e na Turquia (305 minutos). Este valor é também superior a 3,5 horas, mesmo na Suécia, que regista o menor tempo de trabalho não remunerado. A França ocupa o segundo lugar, onde as mulheres passam 224 minutos em trabalho não remunerado.
Para Servet Yanatma, não é de surpreender que os homens sejam os que menos tempo dedicam ao trabalho não remunerado, nos três países com as maiores disparidades. A Turquia é o país mais isolado, onde os homens dedicam apenas 68 minutos, por dia, ao trabalho não remunerado, seguida da Grécia, com 95 minutos, e de Portugal, com 96 minutos.
Em todos os países, tanto para as mulheres como para os homens, o trabalho doméstico de rotina constitui a maior parte. Em vários países, representa mais de 70% do tempo diário não remunerado. Seguem-se os cuidados aos membros do agregado familiar e as compras. Em conjunto, as três categorias principais representam cerca de 90% de todo o trabalho não remunerado, segundo a OCDE. Por exemplo, em Portugal, as mulheres gastam 253 dos seus 328 minutos diários não remunerados em tarefas domésticas, o que corresponde a 77%. Em França, essa percentagem desce para 70% e, na Dinamarca, para 60%.

Viu-se quais os países com maiores e menores disparidades, quais são as principais razões subjacentes ao trabalho não remunerado e porque a diferença é especialmente grande, em alguns países. Importa, agora, saber como reduzir as disparidades entre homens e mulheres.
A articulista enfatiza que a OCDE salienta o papel das “normas e [dos] estereótipos” na origem das desigualdades, referindo que estes são apreendidos, desde tenra idade. Por isso, o relatório recomenda aos diversos países e à Comissão Europeia que tomem medidas mais firmes para reduzir as disparidades de género no trabalho não remunerado. Algumas das principais recomendações incidem diretamente nos fatores que ancoram tais disparidades.
As recomendações da OCDE são:
- promover a partilha equitativa dos cuidados e das responsabilidades domésticas entre homens e mulheres, nomeadamente, pondo em causa os estereótipos e as normas de género (através de campanhas de sensibilização, materiais educativos, etc.);
- proporcionar às mães e aos pais o direito a licenças individuais remuneradas;
- alargar o acesso equitativo ao trabalho híbrido e remoto, investindo em infraestruturas digitais e em formação;
- investir em educação e em cuidados na primeira infância acessíveis, económicos e de elevada qualidade, bem como em cuidados fora do horário escolar; e
- melhorar a remuneração, a qualidade do emprego e a formalização nas profissões de prestação de cuidados dominadas pelas mulheres, incentivando, simultaneamente, os homens ao ingresso em carreiras relacionadas com a prestação de cuidados.
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Além das leis adequadas a estes quesitos, cujo comprimento deve ser assiduamente fiscalizado e monitorizado, impõe-se a mudança de mentalidades, para a assunção de valores, de atitudes e de comportamentos, em prol da igualdade e do respeito e do culto da dignidade de cada pessoa.
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29/09/2025