Não queremos Marias Castanhas nas nossas escolas!
(abecedariodaeducacao.pt)
Num texto da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, mais propriamente da subcomissão para a Igualdade e não Discriminação, da Assembleia da República Portuguesa, podemos ler: “O racismo é um fenómeno de discriminação social, baseado no princípio de que há várias raças humanas, assente numa hierarquização com base em características físicas como a cor da pele ou outras características étnico-raciais, sem quaisquer fundamentos científicos de suporte.”

O título deste artigo1 foi sugerido por uma partilha que fiz no Facebook, a 12 de Novembro de 2025, intitulada “Alguém tem algo a dizer?”. É uma tomada de posição de um cidadão português indignado contra o racismo veiculado pelos manuais escolares, referindo, nomeadamente, um manual da Porto Editora. Esse cidadão alude a um texto chamado “História da Maria Castanha”, que contém vários aspectos verdadeiramente lamentáveis.
O texto conta que, quando outros meninos e meninas brincavam, “apareceu no jardim uma menina diferente: não tinha bochechas encarnadas, mas uma carinha redonda, castanha, com dois grandes olhos escuros e brilhantes”. E quando as outras crianças lhe perguntaram como se chamava, a menina disse que, às vezes, lhe chamavam Maria Castanha. Como a menina era simpática, todos brincaram com ela. E tanto brincaram, que até chocaram contra um carrinho de um vendedor de castanhas! Que logo desculpou a brincadeira. Mas quando este vendedor “pôs as mãos nos cabelos da Maria Castanha”, concluiu “que eram frisados e fofinhos como a lã dos carneirinhos novos”.

Na dita publicação, esse cidadão pergunta se alguém gostaria que os seus filhos brancos fossem apresentados como aquele legume2 a que chamamos chuchu! Então, por que motivo as meninas negras hão-de ser Marias Castanhas, se nós não gostaríamos de ter meninos chuchus? E alguém poderá gostar que se fale dos cabelos dos seus filhos ou filhas comparando-os coma“lã dos carneirinhos novos”?
Infelizmente, não é só a história da Maria Castanha que nos aparece nos manuais escolares. Noutros encontramos preciosidades como estas: “O Pretinho da Guiné que saltando partiu um pé.” Ou outros disparates do tipo: “C é a Camila com corpinho de gorila”, “G é o Gonçalo, já hoje levou um estalo”, “I é a Inês, a dar beijos num chinês”, “S é de Sara, ela tem dez borbulhas na cara”, “X é o Xavier, usa roupa de mulher” e “H é a Helena, é preta, diz que é morena”.
Noutro manual do 6.º ano de escolaridade aparece esta pérola: “Os Portugueses traziam de África ouro, escravos, marfim e malaguetas – produtos de grande valor.” É muito estranho que as pessoas escravizadas sejam descritas como “produtos de grande valor” num manual escolar.

Ainda no mesmo manual, há duas imagens com escravos. Numa vê-se um homem negro, de nádegas e pernas nuas, a ser chicoteado perante uma multidão. Na outra estão outros negros, nus, com os pés presos entre duas tábuas. A legenda é: “Maus-tratos aos escravos. ”Quando a escravatura é vista como inevitável ou quando se naturalizam os “maus-tratos” como parte de uma narrativa histórica normal, tais manuais não transmitem a gravidade moral e social da escravatura. Noutros manuais reduzem-se os movimentos de libertação africanos a “guerrilheiros” sem ideologia nem objetivos claros, o que empobrece a compreensão histórica dos alunos sobre descolonização. Ao apresentar Portugal como “bom colonizador” e ao enfatizar, apenas, os aspectos positivos da expansão ultramarina, esses manuais reforçam um mito nacional e mascaram os abusos coloniais praticados pelos colonos portugueses.
Não temos dúvidas de que somos, hoje e cada vez mais, uma sociedade multicultural. E se, nos tempos do “preto da Guiné”, esse menino era para os outros só uma vaga e distante imagem, actualmente, nas escolas, temos negros, chineses, ciganos, ucranianos, brasileiros e muitas crianças de outros países europeus e de outras partes do Mundo.

Com uma maior atenção no cuidado da selecção dos textos dos manuais, poderemos ajudar a tornar a escola um espaço mais amigo da tolerância e respeitador da diferença. Porque, afinal, todos temos a obrigação de saber que, de acordo com os números 1 e 2 do artigo 13 da Constituição da República de Portugal, “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”e também que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
Ainda temos tanto a mudar! Porém, não podemos permitir Marias Castanhas nas nossas escolas! Um bom Natal para todos os leitores.
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Notas da Redacção:
1 – Este artigo foi publicado no jornal Mirante, de Miranda do Corvo, na edição de Dezembro de 2025.
2 – Embora, na realidade seja uma fruta, o chuchu é usado na culinária como um legume.
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04/12/2025