Necessidades básicas

 Necessidades básicas

(Créditos fotográficos: Intricate Explorer – Unsplash)

Eu não sei bem onde terminam as necessidades básicas. Depois da saúde, da alimentação e da segurança, vêm a habitação, a roupa, os transportes, o saneamento, a escola, a segurança social, o trabalho. E ainda virão  o automóvel, o telemóvel, o televisor, o computador, o frigorífico, o micro-ondas, o ar condicionado, a garrafita de bagaço, a fritadeira, novo telemóvel porque o outro já estava velho, os presentes de Natal, o segundo televisor para o quarto, os refrigerantes saturados de açúcar, o creme de beleza, o tabaco, a varinha mágica, a discoteca, o terceiro televisor para a cozinha, a cabeleireira, a semana de férias no Algarve, a grade de cervejolas, a Sport TV, o tablet, o segundo automóvel, o bronzeador, o cabrito na Páscoa, a consola para os miúdos, as gomas, os óculos de sol, outra vez o telemóvel agora 5G,  a placa vitrocerâmica, o tablet igual ao do vizinho, talvez também o haxixe, a heroína, a cocaína… A arte não é uma necessidade; e muito menos básica. Isto, apesar das pinturas rupestres, das danças ou do teatro serem anteriores à imitação das malas Louis Vuitton. Compreendo: há quem “precise” mais de fazer selfies do que ir ao Museu Nacional Soares dos Reis. Ainda bem. Eu, pessoalmente, não gostaria mesmo nada que viessem ver uma encenação minha, sacrificando a necessidade básica de comer batatas fritas, de que até gosto muito. Assim, pelo menos, não vão para a plateia com o irritante barulho do plástico e a mascar, a perturbar o que, ao lado, terá a necessidade básica de ir ao teatro antes de ter um Tesla. Que venha este e o outro que vá para a churrascaria domingueira “bandulhar-se” até a pança não caber mais nas Levi Strauss da Feira de Espinho. Depois, poderá ir de carcela, que já não fecha, ver um filme porno num canal para adultos. Talvez o que quis ir ao teatro saiba fazer amor, na vez de o simular num reel ou vídeo curto.

Peça “Três Mulheres em Torno de um Piano” (de 2022), com texto, encenação e espaço cénico da responsabilidade de Jorge Castro Guedes. (Créditos fotográficos: Paulo Pimenta – seivatrupe.pt)

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Nota do Director:

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07/07/2025

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Jorge Castro Guedes

Com a actividade profissional essencialmente centrada no teatro, ao longo de mais de 50 anos – tendo dirigido mais de mil intérpretes em mais de cem encenações –, repartiu a sua intervenção, profissional e social, por outros mundos: da publicidade à escrita de artigos de opinião, curioso do Ser(-se) Humano com a capacidade de se espantar como em criança. Se, outrora, se deixou tentar pela miragem de indicar caminhos, na maturidade, que só se conquista em idade avançada, o seu desejo restringe-se a partilhar espírito, coração e palavras. Pessimista por cepticismo, cínico interior em relação às suas convicções, mesmo assim, esforça-se por acreditar que a Humanidade sobreviverá enquanto razão de encontro fraterno e bom. Mesmo que possa verificar que as distopias vencem as utopias, recusa-se a deixar que o matem por dentro e que o calem para fora; mesmo que dela só fique o imaginário. Os heróis que viu em menino, por mais longe que esteja desses ideais e ilusões que, noutras partes, se transformaram em pesadelos, impõem-lhe um dever ético, a que chama “serviços mínimos”. Nasceu no Porto em 1954, tem vivido espalhado pelo Mundo: umas vezes “residencialmente”, outras “em viagem”. Tem convicções arreigadas, mas não é dogmático. Porém, se tiver de escolher, no plano das ideias, recusa mais depressa os “pragma” de justificação para a amoralidade do egoísmo e da indiferença do que os “dogma” de bússola ética.

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