Nunca vi um Carnaval como o de 2025

 Nunca vi um Carnaval como o de 2025

(rtp.pt)

É certo que não sou muito velho, “sed iam insenui et incanui”, ou seja, já tenho algum siso para ter idade e muito cabelo branco e às clareiras, para a memória não ser exígua.

Os dias de Carnaval dos meus primeiros tempos misturavam o baile e o cortejo de travestidos ou de caretos, nas praças e nas ruas, com as orações (nomeadamente, a celebração das Quarenta Horas), nas igrejas, em desagravo pelos pecados cometidos no Carnaval, os mesmos que se cometiam, por palavras, nas tabernas e nas casas das barbas (barbearias rústicas) das aldeias e das vilas ou nos lavadouros públicos, durante o ano.

Tradicionais caretos de Podence. (pt.wikipedia.org)

Nos lugares de murmúrio de aldeia, reinavam o falatório, a calúnia, a revelação de segredos e o palavrão; nas tabernas, além do vinho e do palavrão, por vezes, surgiam os distúrbios. Alguns párocos chegaram a sugerir às autoridades o encerramento das tabernas. E as Quarenta Horas – adoração ao Santíssimo Sacramento, com missas, pregação, confissão e comunhão –, constituíam a “santa” provocação aos festejos carnavalescos.

Entrudo Chocalheiro de Podence. (© Comunidades Lusófonas – bercodomundo.com)

Em qualquer Carnaval, havia notícias de acidentes, de mortes, de cenas pancadaria e, não raro, trovoadas das medonhas e alguns desastres naturais. Entretanto, simulavam-se funerais e procissões, com carros alegóricos; teciam-se críticas a figuras públicas, nomeadamente, de políticos; faziam-se proclamações casamenteiras; e procedia-se a autos de fé profanos. Ganhou foros de cidadania o adágio: “É Carnaval, ninguém leva a mal!”

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Carnaval de Lazarim, no concelho de Lamego. (pt.wikipedia.org)

As coisas foram mudando, para tudo ficar na mesma ou quase. O Carnaval ganhou enorme dinamismo no espetáculo, na sátira, na mobilização de novas tecnologias, no empenhamento de municípios e de associações, bem como no turismo. E houve um genial primeiro-ministro (PM) que recusou conceder tolerância de ponto aos trabalhadores da Administração Pública, em nome da produtividade, o que apenas redundou no gasto de mais dinheiro em subsídio de refeição, pois o trabalho por coação social não garante nenhum valor acrescentado em produtividade.  

Também em termos eclesiásticos, “se bem me lembro” (expressão cara a Vitorino Nemésio), um bispo nomeou, por ocasião de um Carnaval do milénio anterior, significativa leva de cónegos. Contudo, fiquei na dúvida se era para festejar o Carnaval ou se para os obrigar à penitência quaresmal. Ora, para não haver suspeitas, seria preferível a escolha de outra época do ano: o cabido não se desfaria por isso. Às vezes, a pressa ou a falta de ponderação não são amigas do bom senso. Porém, Deus sabe compreender e rir-se das pessoas e das instituições. 

“A Luta entre o Carnaval e a Quaresma” (1559), pintura de Pieter Bruegel (1564-1638) – Kunsthistorisches Museum, em Viena. (pt.wikipedia.org)

Também o setor autárquico, redundante em festejos carnavalescos, não só nesta época, mimou o país, na véspera de um Carnaval deste milénio, com uma marretada a iniciar a demolição de uma escola básica do 1.º ciclo, para construir outra no mesmo sítio, tendo como resultado a transferência provisória das crianças para um edifício espaçoso, mas sem equipamento escolar. Aí, as crianças tinham aula sentadas no chão e a professora ou professor, por não ter mesa nem cadeira, dava a aula de pé e passeando por entre as crianças. 

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O Carnaval deste ano, embora repleto de grandiosos cortejos e, provavelmente, regado de orações em algumas igrejas e praças, não terá ocasionado a nomeação de cónegos, pelo menos, em grande escala, nem foi assinalado com nenhuma marretada, que eu saiba, mas foi muito pior.

Papa Francisco, em 2024. (pt.wikipedia.org)

Desde logo, o internamento do Papa Francisco, devido a uma infeção respiratória polimicrobiana, que redundou em pneumonia bilateral, suscitou uma caterva de jornalistas em Roma, parece que à espera de notícias de tragicidade. Alguns até disseram que o Vaticano, embora não mentisse, não dizia a verdade toda.

Porém, o mais chocante foi a proliferação de escritos sobre a morte dos papas e sobre o funcionamento dos conclaves, bem como o rumor agudo sobre os cardeais “papabili”. Ora, o Sumo Pontífice não morreu, apesar das crises todas por que tem passado, nem apresentou a renúncia, nos termos canónicos. Pelo contrário, vem desenvolvendo reuniões de trabalho com o cardeal Secretário de Estado e com o substituto da Secretaria de Estado, mantém contacto com a nova paróquia de Gaza e prossegue com as nomeações para os respetivos cargos e com as suas várias mensagens, bem como com as diversas celebrações, tendo o Papa delegado a presidência em altos dignitários da Santa Sé, que leem as homilias que ele escreve de antemão. 

Nas imediações do Hospital Agostino Gemelli, ao redor da estátua de
São João Paulo II. (hora12.cl)

Em contraponto, multiplicaram-se os apelos à oração pela saúde de Francisco, incluindo a multidão que se vem reunindo nas imediações do Hospital Agostino Gemelli, ao redor da estátua de São João Paulo II. A estas ações de oração o Papa tem-se mostrado agradecido, através de mensagens videogravadas. 

É cedo para os jornalistas e para os cardeais se moverem em torno de um conclave e é de esperar que isso aconteça bem mais tarde, até porque Francisco, há uns anos a esta parte, vem mantendo a agenda habitual (incluindo viagens) e preside a celebrações eucarísticas, envergando o pluvial litúrgico, embora delegue a presidência do núcleo central da Eucaristia num cardeal ou num bispo, sendo-lhe ministrada, a seu tempo, a comunhão.

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A nível internacional, a efeméride carnavalesca foi rodeada de episódios trágicos do ponto de vista geopolítico, que seriam anedóticos, se a paz não estivesse em jogo.

Israel e o Hamas não admitiram o prolongamento do cessar-fogo, passando a acusações mútuas.

Equipa das Nações Unidas tentava entregar combustível ao hospital Nasser por estradas destruídas, em meados de fevereiro de 2024. (© UNOCHA/ThembaLinden– news.un.org)

Os Estados Unidos da América (EUA) criaram um espetáculo mundial trágico-grotesco. O seu presidente, Donald Trump, na sequência de ter assumido a iniciativa das negociações de paz com o presidente da Rússia, Vladimir Putin, sem a participação da Ucrânia e da Europa, manda redigir a minuta de acordo para a cedência de terras raras e de minerais, por parte de Kiev, aos norte-americanos, sem garantia de assegurar o apoio à segurança daquele país, no pós-guerra. E, apesar das reticências de Volodymyr Zelensky, presidente ucraniano, convida-o a ir a Washington à assinatura do bom acordo.

Os EUA e a Rússia concordaram em iniciar negociações para tentar alcançar um acordo para acabar com a guerra, durante uma reunião de alto nível na Arábia Saudita, quase três anos após a Rússia ter invadido o seu vizinho. No tríptico fotográfico, vemos Donald Trump, Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin. (abcnews.go.com)

Perante as acusações, com visualização de imagens, de Zelensky a Putin de que este não quer a paz e só quer a guerra, Trump irrompe numa chusma de impropérios e de acusações ao visitante e de elogios ao “bom” presidente russo, que não pode, na ótica de Trump, ser apodado de responsável pela guerra. E, depois de, com a complacência ativa do vice-presidente James Davis Vance, haver chamado ingrato a Zelensky, responsabilizando-o por estar a começar a III Guerra Mundial, o líder da Ucrânia, humilhado, abandona a Casa Branca. Todavia, já se mostrou disponível a assinar o dito acordo.

Por seu turno, Donald Trump anunciou a suspensão de ajuda militar e financeira à Ucrânia.

Entretanto, as negociações continuaram em Riade, na Arábia Saudita, entre as delegações russa e norte-americana, onde se tinham iniciado, sem que o presidente ucraniano tenha tido lugar à mesa. E a paz está dramaticamente longe de se obter.

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Em Portugal, os festejos carnavalescos movimentaram o país de Norte a Sul e de lés-a-lés.

Todavia, os dias estão superagitados. Com efeito, Luís Montenegro, primeiro-ministro e líder da coligação governativa, a Aliança Democrática (AD) – formada pelo Partido Social Democrata (PSD), pelo partido do Centro Democrático Social (CDS) e pelo Partido Popular Monárquico (PPM), que não tem representação parlamentar nem governamental – está sob suspeita de ter exercido o cargo, durante um ano, em regime de quebra da exclusividade, a que é obrigado por lei, bem como de ter relação imprópria, para o exercício primoministerial, com uma empresa familiar, que terá alienado para a esposa, com quem está casado no regime de comunhão de adquiridos, e unicamente para os filhos, depois.

Horas depois de o Expresso ter noticiado que a empresa familiar de Luís
Montenegro recebia 4500 euros de avença por mês do grupo Solverde,
a Spinumviva divulgou as empresas que eram suas clientes.
(facebook.com/jornalexpresso)

O caso foi objeto de moção parlamentar de censura apresentada pelo partido Chega. Apesar de essa moção de censura haver sido reprovada na Assembleia da República (AR), com o voto contra da AD e com a abstenção do Partido Socialista (PS), não tendo caído, por isso, o governo, mas, porque surgiram novidades na comunicação social, que não alteram a substância da questão, a 1 de março, o chefe do governo, após extraordinária sessão do Conselho de Ministros, fez uma comunicação ao país, tendo ao seu lado todos os ministros e ministras do seu executivo.

Para lá das considerações sobre a obra do governo, com inexatidões, referiu-se à dita empresa, sustentando não ter cometido qualquer crime, nem qualquer falha ética, e revelando que tinha passado toda a sua participação para os filhos, que a haviam criado com o pai.

Depois, desafiou os partidos da oposição (leia-se PS) a dizer, em definitivo, se o seu executivo tem ou não condições para continuar a governar, advertindo que, se não o fizessem, o governo apresentaria, a seu tempo, na AR, uma moção de confiança.

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Por outro lado, avisou que a crise política não é desejável, mas que poderia ser inevitável. Quase de imediato, o Partido Comunista Português (PCP) anunciou que apresentaria uma moção de censura, tendo o PS prometido não votar a favor, mas adiantando que votaria contra uma eventual moção de confiança que o governo viesse a apresentar. E o ministro das Finanças descartou a hipótese da apresentação da moção de confiança.

Porém, logo o PS passou a ser acusado de incoerência política por não viabilizar a aprovação moção de censura, mas de votar contra uma moção de confiança. E algumas vozes do PS, para não falar de outras, provindas da AD, entendiam que o PS deveria abster-se na moção de confiança, em nome do interesse nacional, para evitar novas eleições e para garantir a estabilidade governativa, ao menos, durante este ano, em que se realizam eleições autárquicas, a que se seguirão, no início do próximo ano, eleições presidenciais.

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Não sei se a mensagem justificativa do PS vai passar para a opinião pública e para o eleitorado. Contudo, na perspetiva de um partido de oposição clara, mas moderada, a postura em causa está correta. Na verdade, os partidos da oposição, não tendo feito aprovar duas moções de censura tão próximas uma da outra, garantiram a permanência do governo em funções. E a simples hipótese de apresentação de uma moção de confiança significa uma provocação aos partidos que não queiram fazer cair um governo, mas que não queiram dizer, expressamente, que concordam com a sua ação governativa, para não serem colados à governação. Aliás, já a referida comunicação ao país, que não adiantou nada de especial, em termos das suspeitas que impendem sobre o chefe do governo (antes contribuíram para mais dúvidas), constituiu uma provocação, ao tentar transferir a responsabilidade do que sucedeu para a AR, em especial, para os partidos da oposição.

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Já conheci situações parecidas, ou seja, quando alguma autoridade devia tomar uma posição que somente a si dizia respeito, eu abstinha-me, mas, se pretendia que eu manifestasse, expressamente, a minha concordância, eu subtraía-me a isso.

O protocandidato às eleições presidenciais e dois pré-candidatos alertaram para a inconveniência de haver eleições legislativas, neste ano, e o primeiro até pediu a intervenção do Presidente da República (PR) para intermediar entre o governo e o PS.    

Entrementes, o PS anunciou um requerimento potestativo de agendamento da constituição de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) à relação do PM com a empresa familiar em causa.

Em resposta, o PM anunciou a apresentação de moção de confiança, cujo texto foi redigido em tempo recorde e aprovado por Conselho de Ministros eletrónico (a 7 de março), ou seja, foi pouco discutido. E, em seguida, foi apresentado à AR, para ser discutido e aprovado, a 11 de março.

O chefe do governo, sobre a relação com a dita empresa, alegou que fez aquilo que qualquer português faz (não o creio); e os partidos da oposição acusaram-no de querer furtar-se à resposta à CPI, que fica por terra com a dissolução da AR.

(rtp.pt)

O anedótico da questão surge com o PR a dizer que não se pronunciava sobre o caso, mas, antes de qualquer desfecho, adiantou, sem perder tempo, que teríamos eleições a 11 ou a 18 de maio.

Alegam alguns que as eleições têm de ser quanto antes, para não atrapalhar as autárquicas, mas, em 2009, as legislativas ocorreram a 27 de setembro e as autárquicas a 11 de outubro.

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Outro aspeto anedótico é a insistência junto do PM e do PS para que desistam das suas posições. Até o governo se dividiu, com uns a colocar a hipótese da retirada da moção de confiança e com outros a garantir que ela seria mesmo discutida na AR.  E, pior ainda, passou-se ao pingue-pongue das acusações: segundo o governo, o responsável pelas eleições, que ninguém quer, é o PS; segundo o PS, o único responsável pela crise e pelas eleições, de que o PS não tem medo e que a AD quer, é o PM.

Para dar sal ao caso, figuras gradas da AD porfiam que não querem eleições!  

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(x.com/expresso)

Ora, o Carnaval não dura sempre. E, à medida que avança a Quaresma, as pessoas começam a mostrar-se agastadas com a situação política e concluem que a AD, guiada pelas sondagens, quer mesmo eleições para reforçar a sua posição na AR e o PM já garantiu que será candidato. Aliás, para lá de situações que resolveu a professores, a polícias, a militares, a guardas prisionais e a funcionários judiciais e médicos (com o custo do agravamento da degradação de serviços públicos e sem melhoria significativa nos salários de base), o grosso das medidas anunciadas é de propaganda política, que só não é mais eficaz, devido à falta de habilidade de comunicação da parte dos/as ministros/as mais contestados/as e do Ministro da Presidência. 

A sorte é que, mantendo o ritmo de crescimento herdado do anterior governo (que não mostrou muita obra), os mais de 25 milhões de euros a gastar com as eleições não fazem falta ao Estado; só fazem falta a projetos ou a pobres.     

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Nota do Director:

O jornal sinalAberto, embora assuma a responsabilidade de emitir opinião própria, de acordo com o respectivo Estatuto Editorial, ao pretender também assegurar a possibilidade de expressão e o confronto de diversas correntes de opinião, declina qualquer responsabilidade editorial pelo conteúdo dos seus artigos de autor.

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20/03/2025

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Louro Carvalho

É natural de Pendilhe, no concelho de Vila Nova de Paiva, e vive em Santa Maria da Feira. Estudou no Seminário de Resende, no Seminário Maior de Lamego e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi pároco, durante mais de 21 anos, em várias freguesias do concelho de Sernancelhe e foi professor de Português em diversas escolas, tendo terminado a carreira docente na Escola Secundária de Santa Maria da Feira.

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