O dia em que “Salazar” caiu da ponte

A ponte sobre o Tejo foi inaugurada em 1966. (Direitos reservados)
Há 49 anos, por estes dias de Setembro, a ponte que une Lisboa à outra margem ainda se chamava Ponte Salazar. Apesar de o “25 de Abril” ter acontecido cinco meses antes. As letras de ferro que celebravam o ditador só foram retiradas em Outubro de 1974. Por acção directa de um batalhão de operários da Sorefame1 comandado por João Varela Gomes2 – o “primeiro capitão de Abril”.
O coronel Varela Gomes foi uma figura destacada da resistência antifascista e sentia-se insultado sempre que topava o nome de Salazar na ponte. Todavia, as suas tarefas eram outras, então. Nomeadamente, na Comissão de Extinção da polícia política sucedânea da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado, que vigorou entre 1945 e 1969), ou seja, da polícia que, depois de 1969, continuou sob o nome de Direcção-Geral de Segurança (DGS), até à Revolução do 25 de Abril. O militar revolucionário empenhou-se a fundo nessa missão. Tanto que o general Jaime Silvério Marques3 viu-a como uma ameaça à Junta de Salvação Nacional, que integrava, e mandou-o deter por algumas horas. O objectivo do general era claro: proteger os informadores da PIDE/DGS.

Acresce: Jaime Silvério Marques e muitos daqueles que integravam a Junta de Salvação Nacional não escondiam o seu desconforto com o rumo da revolução. O primeiro-ministro Adelino Palma Carlos4, por via palaciana, e o general António de Spínola5, com a sua agressiva “maioria silenciosa”, em 28 de Setembro de 1974, tudo fizeram para calar as vozes daqueles que, nas ruas, lutavam por um país mais justo.
O golpe palaciano tentado por Palma Carlos não resultou e Vasco Gonçalves6 ocupou o seu posto em “São Bento”, sede do Parlamento de Portugal desde 1834. Também, a “maioria silenciosa de Spínola foi calada pelo clamor popular, sendo substituído pelo general Costa Gomes7 na presidência da República. A queda de “Salazar” na ponte sobre o Tejo começou a partir destes dois momentos históricos.
Encarregado, por Costa Gomes, para organizar, com dignidade, as comemorações da implantação da República8, João Varela Gomes assim fez. Organizou uma sessão pública para a qual convidou Salgado Zenha, como orador principal. Depois, com uma equipa de operários da Sorefame, procedeu à substituição das letras de ferro na travessia sobre o Tejo por outras que diziam “Ponte 25 de Abril”.

Costa Gomes não gostou. Chamou-o à pedra e Vasco Gonçalves torceu o nariz. Ambos lhe censuraram uma alegada “usurpação de funções”, pois a substituição do nome deveria ocorrer por canais institucionais, que até aí só tinham eternizado o nome do ditador. De resto, a acção revolucionária do batalhão comandado por Varela Gomes não tinha cometido qualquer infracção. O nome legal era “Ponte sobre o Tejo” e não “Ponte Salazar”. Não tivesse o primeiro capitão de Abril tomado tal tarefa em ombros e seria bem possível que “Salazar” ainda ali estivesse dependurado. Tal qual acontece, ainda hoje, em muitas praças e ruas deste país.
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Notas:
1 – A empresa Sociedades Reunidas de Fabricações Metálicas, S.A.R.L., conhecida pelo acrónimo SOREFAME, foi fundada em 1943, pelo engenheiro Ângelo Fortes. Após o “25 de Abril” foi abalada por várias convulsões internas. Durante a década de 1990, afirmou-se como um “importante construtor de material circulante ferroviário”, mas acabou por ser extinta em 2001, quando passou a integrar a canadiana Bombardier Transportation.


2 – João Varela Gomes (1924-2017) foi um dos conspiradores da Revolta da Sé (em 1959) e participou no assalto ao Quartel de Beja (em 1961). Perseguido, preso e torturado, foi expulso do Exército antes do “25 de Abril” e, posteriormente, reintegrado como coronel. Não foi convidado a participar no Movimento das Forças Armadas (MFA) por ser alvo de vigilância constante da PIDE/DGS. Essa ausência estratégica não impediu que os elementos do MFA o considerassem como “primeiro capitão de Abril”.

(geneall.net)
3 – Jaime Silvério Marques (1915-1986) foi governador de Macau e um dos membros da Junta de Salvação Nacional (JSN), entidade política constituída após o “25 de Abril”. Na manhã de 25 de abril de 1974, foi detido pelos militares revoltosos, mas, de imediato, libertado e conduzido ao quartel-general das forças revolucionárias, na Pontinha. Por sugestão do general Spínola, integrou a JSN. A 29 de Abril desse ano, foi nomeado chefe do Estado-Maior do Exército, cargo que exerceu até ao dia 30 de Setembro de 1974, por via da demissão de António de Spínola. Acabou por ser afastado da Junta e passou à reserva, em 1985. Era irmão de Silvino Silvério Marques também oficial general.

(memoriasdarevolucao.pt)
4 – Adelino da Palma Carlos (1905-1992) exerceu o cargo de primeiro-ministro do I Governo Provisório (em 1974), após a Revolução dos Cravos. Professor universitário e advogado, era próximo de António de Spínola.
5 – O general António de Spínola (1910-1996) foi o primeiro Presidente da República Portuguesa após o “25 de Abril”. Depois de ter sido governador da Guiné, entre 1968 e 1973, regressou a Portugal e foi convidado por Marcello Caetano (último presidente do Conselho do Estado Novo) para a pasta do “Ultramar”, mas recusou. Em Janeiro de 1974, tomou posse como vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. O seu livro “Portugal e o futuro” (publicado em 1973) acabaria por acelerar o processo conspirativo do movimento dos capitães, ao questionar a política colonial do regime. Em Março do mesmo ano, foi demitido, juntamente com o, então, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, Francisco Costa Gomes, por não ter comparecido, dias antes, à cerimónia de solidariedade da “brigada do reumático” para com o regime marcelista, ou seja, na cerimónia de demonstração de fidelidade das Forças Armadas perante o projecto político de Marcello Caetano, que substituiu Salazar na presidência do Conselho de Ministros.

Após a demissão do cargo de Presidente da República, envolveu-se na tentativa de golpe de estado a 11 de Março de 1975 e, perante o seu falhanço, fugiu para Espanha e depois para o Brasil. É no exílio que funda e preside ao autodenominado Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP). O MDLP foi responsável – sobretudo, através do seu “braço armado” Exército de Libertação de Portugal (ELP) – por uma vaga de atentados à bomba a sedes de partidos de esquerda e executou Maximino Barbosa de Sousa, mais conhecido como Padre Max (candidato a deputado pela União Democrática Popular), e a estudante Maria de Lurdes, que com ele seguia no carro que explodiu na acção bombista de 2 de Abril de 1976. Com o Movimento Maria da Fonte e o ELP partilhava fontes, patrocinadores e colaboradores.
6 – Vasco Gonçalves integrou o movimento das Forças Armadas e participou no programa do MFA. Foi primeiro-ministro dos II, III, IV e V Governos Provisórios (entre Julho de 1974 e Setembro de 1975. Militar com biblioteca, Vasco Gonçalves (1921-2005) esteve sempre próximo dos mais pobres cidadãos do país. Nacionalizou a banca, os seguros e centenas de empresas vitais para a economia do país; e apoiou, sem reservas, a Reforma Agrária. Foi também durante os seus governos que foram feitas as descolonizações de Angola, de Moçambique, da Guiné, de São Tomé e Príncipe e de Cabo Verde. Foi derrotado no golpe militar de 25 de Novembro de 1975.

de 1982. (Créditos fotográficos: Henrique Matos –
pt.wikipedia.org)
Odiado pela direita e pela extrema-direita, Vasco Gonçalves viu Eugénio de Andrade dedicar-lhe o poema “O comum da terra”, que aqui recordo:
Nesses dias era sílaba a sílaba que chegavas. / Quem conheça o sul e a sua transparência / também sabe que no verão pelas veredas / da cal a crispação da sombra caminha devagar. / De tanta palavra que disseste algumas / se perdiam, outras duram ainda, são lume / breve arado ceia de pobre roupa remendada. / Habitavas a terra, o comum da terra, e a paixão / era morada e instrumento de alegria. / Esse eras tu: inclinação da água. Na margem / vento areias mastros lábios, tudo ardia.
7 – Francisco da Costa Gomes teve um papel importante enquanto elemento moderador das tensões nacionais e de “visões radicais do mundo, algumas verdadeiramente inconciliáveis”, durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC). Por isso, levará sobre os seus ombros tudo quanto se irá passar até ao 25 de Novembro de 1975.

Costa Gomes é considerado um dos principais obreiros da instauração da democracia em Portugal. Entre 1924 e 1931, estudou no Colégio Militar, em Lisboa. A passagem pelo Colégio Militar é um período difícil da sua vida. E, no seu livro de memórias, Costa Gomes conta que se sentiu “bastante violentado” por um conjunto de “regras rígidas de cuja utilidade duvidava”. Uma vez terminado o Colégio Militar, alistou-se no Exército, em 1931, tendo servido em várias unidades militares e progredido rapidamente na carreira, terminando o tirocínio na Escola Prática de Cavalaria, no ano de 1936. Tudo isto acompanhado de algum desencanto com a instituição. Paralelamente à sua carreira de general, Francisco Costa Gomes (1914-2001) foi o décimo quinto Presidente da República e o segundo depois do “25 de Abril. Após o 28 de Setembro de 1974, com o afastamento de Spínola, Costa Gomes é nomeado para a Presidência da República, onde lhe caberá a difícil missão de “conciliador de partes em profunda desavença, com visões radicais do mundo, algumas verdadeiramente inconciliáveis”. Além da Academia Militar, também estudou na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, onde foi aluno de Ruy Luís Gomes – um dos mais notáveis professores portugueses que António Oliveira Salazar condenou ao exílio –, tendo-se licenciado em Ciências Matemáticas, no ano de 1944.
8 – A implantação da República resultou de uma acção revolucionária organizada pelo Partido Republicano Português. Teve início no dia 2 de Outubro de 1910 e terminou, vitoriosa, na madrugada do dia 5. Destituiu a monarquia constitucional e implantou um regime republicano.

A 6 de Outubro de 1910, o Diário do Governo anunciava: “Ao Povo Português – Constituição do Governo Provisório da República – Hoje, 5 de outubro de 1910, às onze horas da manhã, foi proclamada a República de Portugal na sala nobre dos Paços do Município de Lisboa, depois de terminado o movimento da Revolução Nacional. Constituiu-se, imediatamente, o Governo Provisório: Presidência, Joaquim Teófilo Braga; Interior, António José de Almeida; Justiça, Afonso Costa; Fazenda, Basílio Teles; Guerra, António Xavier Correia Barreto; Marinha, Amaro Justiniano de Azevedo Gomes; Estrangeiros, Bernardino Luís Machado Guimarães; Obras Públicas, António Luís Gomes. [sic]”

Fonte consultada: Wikipédia.
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Nota do Director:
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04/09/2023