O fracasso de Orfeu e o nosso…
É costume, nas companhias de teatro, durante o processo de ensaios, convidar espectadores a assistir a um ensaio, que, não sendo geral, é um primeiro momento de encontro com o público que mais tarde cobiçamos conquistar.
Antes da nossa estreia de “Orfeu e Eurídice”, no Teatro de Marionetas do Porto (TMP), convidei o meu amigo Mário Azevedo, professor de Música da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE), director de orquestra e investigador, para assistir a um ensaio no pequenino TMP, na Rua de Belomonte (n.º 57), na cidade do Porto.
Assim, em Junho deste ano, o professor Mário Azevedo assistiu com os seus alunos, acompanhado da professora galega Ana Isabel Freijo, também docente da ESMAE, e brindou-nos com um texto que agradecemos, sobretudo, pela pertinência da análise do mito, em geral, e do de Orfeu, em particular. Não poderia deixar de partilhar essas sábias palavras com os nossos leitores, tal como o professor Mário Azevedo fez com “uma comunidade de alunos em devir”.
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“O fracasso de Orfeu e o nosso…”, na voz de Mário Azevedo:
Escutar é ser tocado à distância.
(Pascal Quignard)
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Um dizer dirigido a uma comunidade que está por chegar.
Imaginemos, por instantes, o mito como uma das nossas línguas primeiras, mas daquelas que se prestam a poderem ser declinadas no presente, tal como já aconteceu no passado e no futuro. Com esse empreendimento, tornamos possível abrir caminhos de reflexão e de autonomia a que não estamos assim tão habituados.
De alguma maneira, o mito transduz a experiência que temos do mundo e dá-nos força suficiente para sermos capazes de o reconstruir. São eles, os mitos, que continuam a revelar-nos os aspe[c]tos mais profundos e complexos daquilo de que somos feitos, envolvendo nisso necessariamente cultura e psique.
Em particular, no mito de Orfeu, acedemos a uma visão sonoramente ilustrada da tragédia humana exposta na debilidade da nossa própria condição. À ordem e ao Caos, Orfeu amansa-os e une-os numa exposição que acaba por nos afe[c]tar emocionalmente. É nessa exposição que sentimos o fracasso de Orfeu, tal como uma metáfora consagrada à tragédia humana, por ficarmos a saber que mesmo o maior artista de todos nunca conseguirá superar os limites da vida e da morte.
É isso o que sentimos na perda de Eurídice manifestada pela inevitabilidade do seu afastamento, da sua morte e da mágoa que sentimos por darmos conta de que a habilidade artística que a cada um de nós cabe tende a ser apenas um modo impotente, um meio aparatoso, mas insidioso de dominação cultural.
A jornada de Orfeu é a metáfora para uma luta a ser ensaiada perante as condições materiais de existência e o resgate dirigido a Eurídice pode muito bem ser compreendido como uma tentativa de libertação que acaba por não acontecer, pela presença de condições de realidade que desarmam o ímpeto de Orfeu. E daí a sua impotência.
Estamos perante uma deambulação entre o desejo inconsciente em interromper o percurso do real e os conflitos internos entre desejo e perda. Eis uma história de uma perda. É a partir dela que Orfeu transforma anseio em luto, em fracasso. E tudo isso caldeado pela sua recusa em acreditar apenas na escuta. Por não acreditar na escuta, assim nos parece ser, ao insistir em olhar para trás, torna inevitável a perda de Eurídice. Eis Eros (vida) e Thanatos (morte). Confronto esse que a música de [Christoph Willibald] Gluck e a melodia orelhuda de João Lóio trazem à clareza e à tragédia. Se repararmos com atenção, tudo isto pode-se articular muito bem com a dimensão trágica que [Friedrich] Nietzsche aponta à nossa existência, numa deambulação entre Apolo e Dionísio, elementos esses constituintes da existência humana e da expressão artística que perseguimos permanentemente.
Em todo o caso, Orfeu exemplifica a capacidade de transformação da realidade que a todos nós cabe sonhar e que pode ser vista como um processo intenso de nos posicionarmos perante o devir. O devir é, necessariamente, algo em permanente transformação. Eis uma linha de fuga, de escape para intentarmos a disrupção das estruturas rígidas da realidade. A música de Orfeu prepara-se não apenas para encantar, mas, sobretudo, para interromper, para criar interferência, gerando uma outra possibilidade de sentirmos o mundo. O bom que seria se todos regressássemos à escuta de Orfeu, nos dias que correm. Isso tornaria ainda mais possível acedermos à imanência, desta feita, em forma de mito.
Atentos a isso, poderemos também focar-nos em Eurídice e dar conta de como esta é capaz de reorganizar o seu corpo – os bonecos do TMP assim nos permitam aceder a essa visão –, numa nova e surpreendente estrutura vivente inusitada. A perda de Eurídice acontece por Orfeu não ter sido capaz de desafiar os binarismos vida/morte e presença/ausência e, com isso, evidenciar e fustigar a fragilidade dessas categorias. E é aqui que os mitos, o de Orfeu e de Eurídice em particular, nos ajudam a perscrutar e a ir em busca, se ela existir, de uma possível e caracterizável natureza humana.
São eles que nos ajudam a refletir sobre os arquétipos universais que persistem em viver alojados no nosso inconsciente cole[c]tivo. São como um espelho da experiência humana fundamental: o herói, a jornada, o retorno… e, por isso mesmo, uma fonte vital de sabedoria e de imaginação. Por que é que estamos aqui, no TMP, ao lado de amigos, de artistas, numa espécie de ajuntamento dedicado à agremiação de falsários? Falo, agora, por mim: para revisitar amigos de causas comuns e para repensar ao lado deles, com os alunos do nosso lado, a História do conhecimento. E também para pousarmos um olhar crítico e de perspe[c]tiva sobre a forma como a História e a verdade nos tem vindo a ser contada.
É por isso que os artistas, os a[c]tores, os encenadores, os músicos, os filósofos, os filólogos, os hermeneutas, os poetas, os agricultores e os artesãos estão interessados em nos dizer como é que vamos construindo conhecimento através dos sons, dos silêncios, das sombras, das marionetas e das palavras.
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18/07/2024