“O Palco da Ilusão”
“O Palco da Ilusão” é o título de um livro, fascículo ou catálogo de uma exposição homónima realizada em 2007, no âmbito do XXX FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica), quando Mário Moutinho, nome relevante do teatro da cidade do Porto, era director artístico deste festival.
A exposição contava com várias peças cénicas de tramóia teatral1, trazidas desde Espanha e que ficaram expostas no edifício histórico do Mercado Ferreira Borges.
O livro tem uma introdução ou prólogo da autoria de Nuno Lucena, cenógrafo e investigador na área teatral dos espaços cénicos em Portugal, bem como professor da Escola Artística Soares dos Reis e na Escola Superior Artística do Porto (ESAP), na qual é responsável pela unidade curricular de Cenografia.
Nuno Lucena enquadra esta exposição citando nomes tão importantes da cenografia teatral europeia como Sebastiano Serlio (1475-1554), Giovanni Battista Aleotti (1576-1636) e Giacomo Torelli (1608-1678), todos eles nomes importantes na construção de um teatro e de uma arquitectura que iria conduzir ao que, hoje, conhecemos como “teatro à italiana”, expressão cúspide ou marcante do teatro clássico e, igualmente, do teatro barroco. Foram arquitectos (também artistas) que ajudaram a evolução artística e arquitectónica na construção de um teatro que funcionava como uma máquina ilusionista.
São citados neste livro2 dois investigadores – os cenógrafos Miguel Angel Coso Marin e Juan Sanz Ballesteros – que trabalharam, durante 23 anos, na descoberta, restauração e divulgação daquilo que consideraram a Pedra de Roseta do teatro ocidental. Isto é, uma chave de interpretação arqueológica, no Teatro Cervantes (Corral de Comedias), desde 1601, de Alcalá de Henares. Um dos teatros mais antigos da Europa, ainda em funcionamento, graças à programação partilhada com o Teatro de La Abadía, de Madrid.
Na exposição, que visitei mais de uma vez com os meus alunos de Teatro, e no livro, encontramos os mecanismos, a máquina teatral, que permitia a ilusão nas suas muitas acepções etimológicas (“ilusão” tem origem no latim illusióne, que significa “enganar” ou “troçar de”). Diz-nos ainda a Infopédia que a “ilusão é, assim, um engano, que nos surge muitas vezes através dos sentidos”. De facto, a “ilusão tem o seu papel na oposição da aparência à realidade, pois que na ilusão há a ideia de algo que faz parte do real, mas que não é uma verdadeira realidade”. “É algo que foi criado para enganar o Homem. A ilusão é a doação ao mundo de um certo sentido, exprimindo a forma como vivemos a nossa relação com ele. É a confusão entre o plano do real e o do imaginário, ou seja, é a tendência para interpretar o mundo a partir da nossa visão sobre ele”, regista o sítio electrónico da Infopédia.
A ilusão no ambiente teatral é também resultante da adequada utilização de máquinas, de mecanismos para a fabricação de ruídos, de trovões e de tempestades, de naufrágios e de terramotos, de fragor da guerra, de batalhas e de inúmeros combates. São máquinas de uma enorme beleza e, por vezes, muito simples ou de extrema rudimentariedade, como as chapas de metal, tonéis carregados de areia e/ou de pedra para provocar ruído.
Os espectadores de outras épocas deixavam-se emocionar por cenas que, em geral, não viam, mas que percebiam através dos sentidos, dos ruídos e da construção mental dos acontecimentos. Patrice Pavis fala-nos, no seu “Dicionário de Teatro”, de comédias de ruido, género dramático que se generalizou em Espanha e que explorava este tipo de efeito nos espectadores de outrora. Sabemos que, na literatura espanhola, abundaram as novelas de capa e espada e também de cavalaria andante, até chegar Miguel de Cervantes, que originou o declínio deste género quando escreveu “Dom Quixote de La Mancha”, cujo primeiro volume foi publicado em Madrid, a 16 de Janeiro de 1605.
O teatro foi e sempre será “o palco da ilusão”, desde a máscara grega (prosopon), rictus (ou estado de expressão) facial que, pela voz dos actores, se transformava num rictus mutante, que ocupava toda e a mais ampla gama dos sentimentos humanos, partindo do riso cómico até ao grito trágico das personagens (personas).
Para a realização do nosso espectáculo “Orfeu e Eurídice”, com o Teatro de Marionetas do Porto (TMP), pedi aos artistas do TMP a fabricação de uma máquina do mar e das ondas3, literalmente: três cilindros helicoidais (colunas salomónicas) que, girando no plano horizontal e simultaneamente, representam ilusoriamente o agitar das ondas do mar. Para o efeito, recorremos às gravuras antigas e às maquetas da época, supostamente com êxito.
A máquina das ondas serviria para ilustrar a viagem de Orfeu até ao Hades, na barca de Caronte. Ao meu pedido solicitei aos artistas que alternassem entre as ondas a pauta musical que os espectadores vêm quando a máquina entra em movimento…o efeito é lindíssimo e apoia, cénica e visualmente, o talento musical de João Loio que compôs uma música original para o nosso espectáculo.
Seguiremos sempre como espectadores de ilusão no teatro, apesar dos diferentes movimentos realistas e sociais que a arte dramática soube e sabe tão bem albergar nos seus palcos. Assim, sentamo-nos no escuro e esperamos pela magia ou… pela ilusão. Por favor, vão ao teatro!
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Notas:
1 – “A tramóia é uma estrutura do palco que permite instalar e mover da maneira mais conveniente e funcional as cenas e as máquinas de cena penduradas”, como podemos ler na página electrónica da empresa Peroni SPA.
2 – A publicação do livro resultou da colaboração do Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica (FITEI) e da editora Campo das Letras, na sequência da exposição “O Palco da Ilusão”, organizada no contexto do XXX FITEI. A referida obra tem o seguinte índice: “O Teatro onde isto acontecia…”, por Nuno Lucena (cenógrafo e professor); “Antiqua Escena: Partilhar a memória do palco”, da autoria de Miguel Ángel Coso Marín e de Juan Sanz Ballesteros; “O Palco da Ilusão: Som, luz e engenharia no Teatro Barroco, Introdução”; “A Imitação dos Sons da Natureza”; “A Iluminação de Cena, Andrómeda e Perseu”, de Pedro Calderón de la Barca; “Engenharia Teatral Barroca”; “Relação de Máquinas de Som” e “Bibliografia”. O projecto “O Palco da Ilusão” é uma ideia original e produzida por Antiqua Escena, assumida proprietária material e intelectual.
3 – A máquina teatral foi realizada pela equipa plástica do nosso espectáculo: Catarina Falcão, Hugo Flores, João Pedro Trindade e Filipe Azevedo.
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01/08/2024