O pecado da pressa

 O pecado da pressa

(Créditos fotográficos: Matt C – Unsplash)

Vivemos sob o império da urgência. Na aflição de sermos os primeiros a saber ou a dar a conhecer algo, abdicamos do mais essencial: o rigor. As notícias chegam antes dos factos, a suspeita ganha forma de manchete e a hipótese transforma-se em certeza aos olhos de quem lê – mesmo que, pelas redações, ainda reine a dúvida. A consequência não é apenas o empobrecimento do jornalismo, mas o colapso da confiança pública e a degradação do discurso político.

Após a morte, por atentado, do presidente e de vários altos membros
do governo, o pacato membro de gabinete dos EUA, Tom Kirkman, vê-
se obrigado a liderar um governo caótico. (netflix.com)

Esta lógica não é nova, mas é cada vez mais descarada. No primeiro episódio da série “Sobrevivente Designado”, disponível na Netflix, assistimos a uma encenação que devia ser de visionamento obrigatório para políticos, jornalistas e cidadãos. Depois de um atentado que destrói o Capitólio dos Estados  Unidos da América (EUA), sem provas nem indícios consistentes, sobressai o impulso imediato de atribuir a culpa ao Irão. A justificação? O público exige uma resposta e os media exigem um culpado. E o governo lá hesita, não por respeito à verdade, mas por cálculo político.

Se na ficção a precipitação serve o drama, no mundo real compromete a democracia. Vejamos o caso recente do apagão ibérico: sem dados confirmados, na pressa acalorada do momento, o ministro das Finanças, Miranda Sarmento, sugeriu um ataque. As suas palavras foram reproduzidas com destaque por vários meios, qual palpite que equivale a uma prova. Mais tarde, com o passar do alvoroço, confirmou-se que não havia qualquer evidência de ciberataque – mas a suspeita já habitava o imaginário coletivo e o dano estava feito.

A questão que importa levantar é esta: quando até os governantes falam como comentadores e os jornalistas se comportam como propagadores instantâneos de tudo o que chega, quem está a proteger o interesse público?

Zygmunt Bauman (1925-2017). (pt.wikipedia.org)

A obsessão pela velocidade é, hoje, parte estrutural do ecossistema mediático. A lógica algorítmica das redes sociais recompensa a rapidez, a emoção e o conflito. Isto, apesar da literatura, em uníssono e quase aos gritos, nos mostrar que as notícias falsas circulam significativamente mais rápido do que as verdadeiras e que a tendência para acreditar em notícias falsas é também superior. Além de sabermos que as plataformas amplificam o que gera cliques e que os media, pressionados pela audiência e pela publicidade, se adaptam aos tempos em que vivemos. Para contribuir para a floresta de problemas, soma-se a resignação dos jornalistas como mediadores críticos da realidade, para se tornarem meros replicadores de versões apressadas.

Neste cenário, é impossível não evocar o pensamento de Zygmunt Bauman, que descreveu a modernidade líquida como um tempo marcado pela fluidez, pela volatilidade e pela desintegração das referências sólidas. Tal como os laços humanos, também a verdade se tornou descartável – tudo é substituível, inclusive a verificação, se ela atrasar o ritmo da máquina mediática. A urgência, nesse contexto, não é apenas uma característica do jornalismo atual, mas um reflexo mais profundo da cultura contemporânea: tudo tem de ser imediato, mesmo que seja impreciso.

(Créditos fotográficos: Sandip Roy – Unsplash)

Este fenómeno não é apenas mediático: é estruturalmente político. A política do instantâneo dispensa ponderação, neutraliza o contraditório e transforma cada evento numa oportunidade de comunicação. Quem hesita, perde o ciclo noticioso. Quem verifica, chega tarde demais. E assim se molda uma opinião pública feita de impressões voláteis e de julgamentos precoces.

Ainda que a velocidade continue a marcar o nosso tempo, cabe-nos, enquanto sociedade, decidir se queremos que ela continue a atropelar a verdade. Informar rápido nunca pode ser mais importante do que informar bem; se o fizermos, traímos não só o jornalismo, mas a própria ideia de verdade.

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19/06/2025

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Lourenço Ferreira

https://linktr.ee/glourencosferreira

Lourenço Ferreira é mestrando em Comunicação Social, investigador na área da Comunicação Política e colaborador em projetos de Educação para a Cidadania. Interessa-se por temas como a opinião pública, o discurso político e o impacto das novas formas de mediação na cultura contemporânea. Escreve com regularidade sobre política, sociedade e “media”, procurando sempre um olhar crítico e fundamentado sobre os fenómenos do seu tempo.

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