O preconceito
A terra, a água, o fogo e o ar são elementos sem os quais não passaríamos. Acresço que junto neste baú os amigos e a família.
Certo dia, andava esse mesmo dia a meio, quando recebo uma chamada de um grande amigo, a convidar-me para um café naquela noite. Fomos. Era um local agradável em todos os seus aspectos, onde não faltava a música ambiente e mulheres bonitas. Sentados nuns bancos macios, pedimos de beber. A conversa fluía tranquila e boa. Cinco minutos após termos chegado, sentaram-se duas raparigas a duas mesas de nós, mas não trocámos palavra. A noite entrou mais em si. Eram horas de dormir, pois, como se diz na gíria cá do Norte, o outro dia seria dia de pica o boi. Foi isto numa terça-feira.
Na quinta-feira seguinte, pela mesma hora do almoço, o mesmo amigo voltou a ligar para irmos ao mesmo café à noite. Fomos. Passados os mesmos cinco minutos, e aqui a matemática não andava muito errada, chegaram as mesmas duas raparigas. Nós na mesma mesa, elas nas mesmíssimas cadeiras. Não trocámos palavra. O tempo ia passando e, assim do nada, como pedrada que cai num charco, sem pedir nada a ninguém, o meu amigo atirou:
“Zé, cá para mim, estas duas são lésbicas!”
Vou usar um nome fictício: “Por que dizes isso, Afonso?”
“Foge, por que digo isto? Já viste, no outro dia, vieram as duas sozinhas! Hoje, chegaram outra vez as duas sozinhas. Cá para mim, são lésbicas!”
“E nós, Afonso? Nós os dois somos o quê?”
A minha observação deixou-o agitado na cadeira. Deixou-o agitado em todos os seus poros.
“Foge, nós não somos, bem sabes que não somos!”
“Sabes, Afonso, eu podia esperar tudo de ti, menos isto! Elas são duas mulheres que apenas vieram divertir-se um pouco, tal e qual como nós. Não compreendo essa tua observação cheia de um preconceito estúpido!”
“Vais-me desculpar, mas que parecem, parecem!”
“Nem sempre o que parece o é. E, mesmo que fossem lésbicas, o que me não parece, nunca deverias pisar essa linha de pensamentos. Dizia um grande filósofo que enquanto uma pessoa não abrisse a boca, essa mesma pessoa poderia ser a pessoa mais inteligente do Mundo. Enquanto uma pessoa não entrar em propriedade alheia, ela não poderá ser tida como assaltante. Viva a liberdade!”
A amizade é um porto seguro. Devemos semeá-la para a colhermos. Continuo a ser um grande amigo do Afonso, mas preconceitos à parte. É saudável, entre as amizades, existirem relevos nas nuvens dos pensamentos. Isso torna as conversas interessantes e instrutivas. Mas nunca ajuizarmos a vida dos outros, muito mais quando se trata de questões tão pessoais. Por norma, eu até aponto o dedo a certos indivíduos, quando cometem erros que prejudicam toda uma sociedade. Acredito que certos debates são úteis para enriquecermos o sótão do conhecimento.
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05/12/2024