O preconceito

 O preconceito

(Créditos fotográficos: Rod Long – Unsplash)

A terra, a água, o fogo e o ar são elementos sem os quais não passaríamos. Acresço que junto neste baú os amigos e a família.

Certo dia, andava esse mesmo dia a meio, quando recebo uma chamada de um grande amigo, a convidar-me para um café naquela noite. Fomos. Era um local agradável em todos os seus aspectos, onde não faltava a música ambiente e mulheres bonitas. Sentados nuns bancos macios, pedimos de beber. A conversa fluía tranquila e boa. Cinco minutos após termos chegado, sentaram-se duas raparigas a duas mesas de nós, mas não trocámos palavra. A noite entrou mais em si. Eram horas de dormir, pois, como se diz na gíria cá do Norte, o outro dia seria dia de pica o boi. Foi isto numa terça-feira.

Na quinta-feira seguinte, pela mesma hora do almoço, o mesmo amigo voltou a ligar para irmos ao mesmo café à noite. Fomos. Passados os mesmos cinco minutos, e aqui a matemática não andava muito errada, chegaram as mesmas duas raparigas. Nós na mesma mesa, elas nas mesmíssimas cadeiras. Não trocámos palavra. O tempo ia passando e, assim do nada, como pedrada que cai num charco, sem pedir nada a ninguém, o meu amigo atirou:
“Zé, cá para mim, estas duas são lésbicas!”

(Créditos de imagem: Gerada por IA Eva Michálková – Pixabay)

Vou usar um nome fictício: “Por que dizes isso, Afonso?”

“Foge, por que digo isto? Já viste, no outro dia, vieram as duas sozinhas! Hoje, chegaram outra vez as duas sozinhas. Cá para mim, são lésbicas!”
“E nós, Afonso? Nós os dois somos o quê?”

A minha observação deixou-o agitado na cadeira. Deixou-o agitado em todos os seus poros.

“Foge, nós não somos, bem sabes que não somos!”

“Sabes, Afonso, eu podia esperar tudo de ti, menos isto! Elas são duas mulheres que apenas vieram divertir-se um pouco, tal e qual como nós. Não compreendo essa tua observação cheia de um preconceito estúpido!”

“Vais-me desculpar, mas que parecem, parecem!”

“Nem sempre o que parece o é. E, mesmo que fossem lésbicas, o que me não parece, nunca deverias pisar essa linha de pensamentos. Dizia um grande filósofo que enquanto uma pessoa não abrisse a boca, essa mesma pessoa poderia ser a pessoa mais inteligente do Mundo. Enquanto uma pessoa não entrar em propriedade alheia, ela não poderá ser tida como assaltante. Viva a liberdade!”

(Créditos fotográficos: Jeff Sheldon – Unsplash)

A amizade é um porto seguro. Devemos semeá-la para a colhermos. Continuo a ser um grande amigo do Afonso, mas preconceitos à parte. É saudável, entre as amizades, existirem relevos nas nuvens dos pensamentos. Isso torna as conversas interessantes e instrutivas. Mas nunca ajuizarmos a vida dos outros, muito mais quando se trata de questões tão pessoais. Por norma, eu até aponto o dedo a certos indivíduos, quando cometem erros que prejudicam toda uma sociedade. Acredito que certos debates são úteis para enriquecermos o sótão do conhecimento.

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05/12/2024


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José Torres Gomes

José Torres Gomes é natural da localidade de Belinho, no concelho de Esposende. O facto de ser portador da doença degenerativa de Stargardt (ou seja, uma distrofia macular hereditária de início juvenil caracterizada por atrofia macular bilateral) tem-lhe agravado a acção da visão central, a ponto de não ler o que escreve pelo seu próprio punho. O contacto com a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO) trouxe-lhe novas esperanças na realização do seu sonho. Concretizou uma formação para a aprendizagem dos "softwares" de leitura de textos digitais, particularmente o “JAWS” (um leitor de ecrã desenvolvido para utilizadores de computadores cuja perda de visão os impede de ver o conteúdo do ecrã ou de navegar com um rato), transitando para o “NVDA” ("non visual desktop access"). A partir de então, passou a escrever regularmente no computador. Assim, em 2010, editou o seu primeiro livro, intitulado “Os ossos também falam”. No ano seguinte, publicou a obra “Nunca mais te vi”. Em 2013, lançou o seu terceiro livro: “Gente sem governo”. Na sua quarta obra, em 2015, experimentou a poesia com “A inquietude do silêncio”, título que agora adapta para o seu espaço de escrita no jornal "sinalAberto". Já em 2018, começa a exercitar a sua escrita no domínio da literatura para a infância e publica “O elefante branco”, ilustrado por Geandra Lipa. Em 2020, edita, igualmente para os mais novos, o livro “Zé Trinca-Espinhas e as letras do lago”, com ilustrações de Alexandra de Moraes. O seu mais recente livro para a infância “O menino que queria ser árvore” (homónimo de uma obra do autor brasileiro Fabiano Tadeu Grazioli) foi ilustrado por Carla Sofia Cardoso. Entretanto, tem participado em várias antologias.

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