“O regresso à civilidade…”

Chico Buarque dedica Prémio Camões a “tantos autores humilhados e ofendidos”. (Créditos fotográficos: REUTERS/Rodrigo Antunes – sábado.pt)
Foram estas as últimas palavras do presidente brasileiro, Lula da Silva, no discurso na Assembleia da República (AR), em Lisboa, no dia 25 de Abril: “O regresso à civilidade…”
Já sabíamos do ruído que se ia instalar e das acções ou reacções da extrema-direita. Os discursos do presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do presidente da AR, Augusto Santos Silva, foram claros na defesa da democracia e das instituições democráticas: “O 25 de Abril está vivo e o fascismo nunca mais!”

A vinda de Lula da Silva ficou ainda marcada, no dia anterior, pela entrega do Prémio Camões ao cantor, compositor, dramaturgo e poeta Chico Buarque (Francisco Buarque de Hollanda, nascido no Rio de Janeiro, em 1944). Foi um momento único pelo qual esperámos quatro anos. É verdade que os prémios não têm prazo de validade e, assim, tivemos de esperar por este momento de regresso à civilidade para o efeito.
São múltiplas as recordações musicais e poéticas do que Chico Buarque nos brindou, na sua vida artística, nunca esquecendo esse apelo poético do “Fado Tropical” (com música e letra de Chico Buarque de Hollanda e Ruy Guerra): “[…] Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal / Ainda vai tornar-se um império colonial!”

Sim, sabemos que a ditadura no Brasil foi derrotada e também que Jair Bolsonaro foi derrotado nas urnas. E isso é um triunfo da democracia!
Alguém escreveu que a entrega do prémio com atraso sabia a vingança… Não, é justiça culta ainda que adiada, e é de notar que a frase do premiado é notável; quando agradeceu que a assinatura do ex-presidente brasileiro não sujasse o diploma!
Tinha eu 14 anos quando a canção “A Banda” (de 1966) inundou a minha juventude, andávamos todos a cantar e a fazer desse ritmo tão vizinho do meu país, uma música nossa. Esse é o triunfo da música e da arte, quando nos faz apropriarmo-nos, da melhor maneira, da obra dos outros, dos seus pensamentos e do Mundo, ajudando-nos a imaginar… Logo, viriam as suas incursões no teatro.

Chico Buarque musicou as peças “Morte e Vida Severina” (baseada no livro do escritor brasileiro João Cabral de Melo Neto) e a peça infantil “Os Saltimbancos”. É autor entre outras peças de teatro, de “Roda Viva” (que foi imediatamente proibida), de “Gota d’Água” (adaptação do mito antigo de Medeia em Eurípides), de “Calabar” (também proibida) e da “Ópera do Malandro” (adaptação notável da “Ópera de Três Vinténs”, com texto de Bertolt Brecht), além da autoria (para já) dos livros “Estorvo” (em 1991), “Benjamim” (em 1995), “Budapeste” (em 2003), “Leite Derramado” (em 2009), “O Irmão Alemão” (em 2014) e “Essa gente” (em 2019).

“Morte e Vida Severina” foi um êxito no meu país (Chile) e internacionalmente. Mais tarde, tive a oportunidade de assistir, aqui no Porto, a “Gota d’Água”, à “Ópera do Malandro” e, posteriormente, à peça de teatro musical infantil (inspirada no conto “Os Músicos de Bremen”, dos irmãos Grimm) “Os Saltimbancos”. Vi todas estas peças pela mão da cooperativa Seiva Trupe – Teatro Vivo.
O triunfo da arte sobre o obscurantismo é o triunfo das democracias. E o Chico Buarque é brasileiro, sim, mas é também latino-americano e europeu. Tal como é o teatrólogo brasileiro Augusto Boal, a quem tive a honra de conhecer. Um homem do Mundo, criador do Teatro do Oprimido!

Também não posso deixar de falar agora de Harry Belafonte, porque foi na manhã do recente 25 de Abril (terça-feira) que morreu, na sua casa no bairro Upper West Side (de Manhattan), aos 96 anos, o cantor e activista pelos direitos civis nos Estados Unidos da América (EUA), a exemplo de Martin Luther King Jr. (1929-1968), que se tornou a figura mais proeminente e líder do movimento dos direitos civis nos EUA, de 1955 até ao seu assassinato em 1968.

(Créditos fotográficos: Gary Gershoff / WireImage – cnnbrasil.com.br)

Preminger, tem Dorothy Dandridge e Harry
Belafonte nos papéis principais.
(Direitos reservados)
Harry Belafonte foi apelidado de “rei do calypso” após o sucesso do seu “hit”, de 1956, “The Banana Boat Song (Day-O)”. Esse seu álbum de estreia – “Calypso” – assumiu o nome do género musical afro-caribenho que surgiu em Trindade e Tobago, no século XIX.
A par de se afirmar como militante e defensor dos direitos humanos e dos negros nos EUA, Belafonte foi um cantor brilhante e tenho guardada na minha memória a sua bela interpretação no filme musical, dirigido por Otto Preminger, “Carmen Jones” (de 1954), constituindo uma adaptação moderna da ópera “Carmen”, de Bizet.

Uma das suas últimas aparições no cinema, foi no filme “BlacKkKlansman: O Infiltrado”, de 2018, dirigido por Spike Lee e baseado no livro autobiográfico “Black Klansman: Race, Hate, and the Undercover Investigation of a Lifetime”, de Ron Stallworth.
Harry Belafonte, que interpreta o activista Jerome Rurner, relata, de uma forma extraordinária e épica, o linchamento de Jesse Washington, ocorrido a 15 de Maio de 1916. Trata-se de uma história verídica que se passou com Jesse Washington, um rapaz negro, trabalhador agrícola afro-americano, de apenas 16 anos, que foi acusado de ter violado a sua patroa branca, em Waco, no Texas. A narração de Belafonte acontece em montagem simultânea com imagens do filme de “O Nascimento de uma Nação” (“The Birth of a Nation”, dirigido por David Llewelyn Wark Griffith, em 1915).

O realizador Spike Lee denuncia, frontalmente, “o racismo de Griffith e seus efeitos perversos na sociedade da época por meio de uma técnica desenvolvida (mas não inventada) por esse diretor, frequentemente lembrada para diminuir a importância do discurso racial no entendimento do filme”, como escreve Wallace Andrioli, em 3 de Novembro de 2018, na página electrónica do projecto Plano Aberto.

No seu artigo, Wallace Andrioli adianta: “Lee age aqui como uma espécie de professor de história do cinema, inserindo na diegese de ‘Infiltrado na Klan’ lições sobre o passado da arte – além de ‘O Nascimento de Uma Nação’, há uma cena emblemática de ‘…E o Vento Levou’ (1939), outro clássico cujo racismo costuma ser encoberto por seu valor dramatúrgico, e referências em diálogos a diversos exemplares do blaxploitation dos anos 1970. Algo semelhante ao que Martin Scorsese fez em ‘A Invenção de Hugo Cabret’ (2011), com a diferença que Lee é menos laudatório e mais problematizador. Enquanto o primeiro celebra a memória de um diretor com lugar cativo entre os maiores da história (Georges Mélies), o segundo contesta o cânone. [sic]”
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04/05/2023