O sonho

 O sonho

(Créditos: Pixabay)

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O sonho é, de facto, uma constante da vida ou, mais precisamente, dos seres vivos.

Demócrito sonhou com o átomo. Mas foi Aristóteles, que não possuía equipamentos de ressonância magnética, o primeiro a observar que até os insectos, como as abelhas, sonham. Que sonham, quiçá com coreografias, desenhos de néctar, no palco hertziano de uma passarola solar. Mas sonham!

(Créditos: Filipe Resmini / Unsplash)

Freud (que não sabia, como Damásio, da natureza molecular, fisiológica e anatómica das emoções) pressentiu nos sonhos os desejos por interpretar da terra do subconsciente. Desejos de terras distantes, de superfícies lunares.

Aserinsky e Kleitman (que não sabiam bolinar) encontraram ilhas de sonho no mar do sono. Designaram estas janelas interiores por sono REM (Rapid Eye Movement). Por elas, a actividade neuronal expressa nos registos electrofisiológicos é semelhante à do estado de vigília, quando estamos acordados!

Electroencefalograma de uma fase REM. (pt.wikipedia.org)

Por essas janelas cogitamos sem nos movermos. Mas o sonho avança por essas ilhas de sono REM.

Hobson e McCarley (sem saberem voar) postularam que os sonhos são experiências sensoriais cerzidas pelo tear do córtex cerebral, que usa fios de sinais aparentemente caóticos, emanados desde a ponte de Varólio, estrutura primeva do tronco cerebral, que partilhamos com os répteis e com as aves.

Payne e Nadal (que não eram poetas) definiram o sonho como o resultado de uma semântica feita com memórias, que nele se consolidam numa fluida narrativa, como pedaços de vida acordada, mas intangível e que foge à recordação mais consciente.

Se o sonho ocorre é porque tem uma função específica e útil para as redes neuronais e para as suas complexas interacções entre as diferentes partes do cérebro. É porque foi uma melhor adaptação para a realidade evolutiva, segundo Darwin!

(Créditos: Pixabay)

Quais são os caminhos do sonho? Em que vagas de ondas de impulsos, ditos nervosos, avança ele, por entre milhões de neurónios, até à praia da nossa consciência?

No oásis onírico, revoltam-se as essências, ocorrem flutuações na concentração de iões e de moléculas. Mas, há átomos e moléculas do sonho?

Sim. Alguns iões, principalmente os de sódio e de potássio. E que moléculas? Certas combinações de não mais de duas dúzias de átomos de carbono, oxigénio, nitrogénio (ou azoto) e hidrogénio. Átomos forjados em estrelas, mais ou menos distantes, e que hoje formam neurotransmissores, quais caravelas transportando mensagens.

Allan Hobson sonhou quantificar as moléculas do sonho. Mostrou que, no sono do sonho, as concentrações nos fluidos cerebrais de neurotransmissores como a serotonina, a histamina e a noradrenalina estão diminuídas; e que isto inibe as vias neuromotoras, relaxando o corpo.

Acetilcolina: neurotransmissor que facilita a comunicação entre os neurónios. (© A mente é maravilhosa)

Por outro lado, neurónios colinérgicos na ponte de Varólio aumentam as vagas de acetilcolina em direcção ao córtex e em níveis semelhantes ao estado acordado. Será a acetilcolina (C7H16NO2) a molécula do sonho?

Nesta janela bioquímica que também é o sonho, o córtex cerebral tenta organizar as incessantes e anacrónicas vagas de impulsos. E com a matriz de padrões feitos de sensações e de emoções quotidianas, o cérebro cortical vê, sente e ouve, sem gastar os sentidos. Revisita a caderneta das nossas vivências, dos nossos planos futuros e compara-os, mistura-os, experimenta-os em novos cenários interiores, para forjar, no silêncio sonoro e visual, uma “alquimia” de novos e úteis padrões de comportamento. E faz tudo isto e muito mais, sem cansar o corpo.

Todavia, no mar da vigília, também há ilhas de sonho. Ao sonharmos acordados, co(a)gitamos as ressonâncias entre as experiências passadas com as possibilidades futuras, permitimos que soluções novas (para problemas velhos) floresçam entre razões enrodilhadas.

 (www.pinterest.pt)

E através da paleta das ressonâncias magnéticas funcionais, sonhamos um dia podermos ver as cores de um sonho qualquer, “como bola colorida entre as mãos de uma criança” – assim escreveu, sonhando, Rómulo de Carvalho, na sua pérola poética enquanto António Gedeão.

Sonhemos…

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(*) Artigo no âmbito do programa “Cultura, Ciência e Tecnologia na Imprensa”, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa.

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23/06/2022

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António Piedade

Bioquímico e comunicador de Ciência. Publicou centenas de artigos e crónicas de divulgação científica na imprensa portuguesa e 20 artigos em revistas científicas internacionais. É autor de diversos livros de divulgação de Ciência, entre os quais se destacam “Íris Científica” (Mar da Palavra, 2005 – Plano Nacional de Leitura), ”Caminhos de Ciência”, com prefácio de Carlos Fiolhais (Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011) e “Diálogos com Ciência” (Trinta Por Uma Linha, 2019 – Plano Nacional de Leitura), também prefaciado por Carlos Fiolhais. Organiza regularmente ciclos de palestras de divulgação científica, a exemplo do já muito popular “Ciência às Seis”, no Rómulo Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra. Profere regularmente palestras de divulgação científica em escolas e outras instituições.

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