Pedro Calderón de la Barca (1600-1681)

 Pedro Calderón de la Barca (1600-1681)

O dramaturgo Calderón de la Barca. (lavanguardia.com)

(cervantesvirtual.com)

Consulto diariamente o jornal espanhol El País, na sua edição online. No dia 19 de Julho, a jornalista Rosana Torres escrevia sob este título “Jovens criadores de teatro redescobrem Calderón de la Barca, com ar de vândalo e sem tabus”

O artigo vinha acompanhado de uma imagem do espectáculo da encenação de “O Grande Teatro do Mundo”, inserido no festival de teatro de Almagro. Por motivos de direitos do autor não se inclui, aqui, a respectiva imagem. Poeta, dramaturgo, cortesão, soldado e sacerdote, Calderón de la Barca1 recolhe o património teatral de Lope de Vega e põe fim ao chamado “Siglo de Oro” do teatro espanhol. 

Monumento a Calderón de la Barca, em
Madrid. (commons.wikimedia.org)

A sua obra é vasta e profícua, toda ela marcada por um profundo sentimento religioso e cristão. Ele busca nas suas personagens as representações de Cristo e dos apóstolos, nos seus diferentes autos sacramentais. Será talvez, “El alcalde de Zalamea o El garrote más bien dado” (de 1636), uma das suas poucas peças dramáticas a fugir deste esquema. 

Para a encenação de “Orfeu e Eurídice”, com o Teatro de Marionetas do Porto, entre as muitas leituras consultadas, saliento dois autos de Calderón de la Barca: “El Divino Orfeo / O Divino Orfeu”, auto sacramental alegórico, na versão de 1634, e “El Divino Jasón / O Divino Jasão”, um auto famoso. Neste último auto, Jasão é Cristo e Orfeu é São João Baptista. 

(Direitos reservados)

A peça desenrola-se num único acto e coloca em cena Jasão e Argos, uma personagem que, no seu vestido, aparece com muitos olhos, numa representação simbólica da omnipresença. O auto aborda assuntos de grande importância como o amor divino, a coragem e a criação de algo eterno e transcendental. 

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Em jeito de sinopse: “O divino Jasão encarrega Argos de construir um navio que será um símbolo de sua transcendência e poder, que deve quebrar os limites do mar e surpreender os mortais. A nave é uma metáfora para a jornada espiritual e a conquista dos elementos, e é apresentada como um desafio às limitações humanas. Os personagens são de natureza simbólica. Argos, com seus muitos olhos, representa vigilância e onipresença, enquanto o divino Jasão é uma figura de poder e autoridade que aspira à eternidade. Os diálogos são ricos em metáforas e alusões, e a interação entre os personagens serve para expor as ideias e temas da obra de forma poética e simbólica.”

Na mitologia grega, Argos Panoptes era um gigante cujo corpo estava coberto por cem olhos. (segredosdomundo.r7.com)

No auto “O Divino Orfeu”, o músico, poeta e profeta lendário Orfeu, com poucas intervenções, limita-se a apontamentos poéticos. Mas, no final da peça, converte o ambicionado, pelos Argonautas, Velo de Ouro, num cordeirinho branco, símbolo de Cristo e da cristandade. E, por fim, todas as personagens cantam: 

No auto “O Divino Orfeu”, Orfeu é Cristo, e a sua descida ao Hades mitológico, representa o Inferno, do qual resgatará a sua amada. Aqui, Caronte é Leteos, o esquecimento, cúmplice do Príncipe das Trevas. No seu enfrentamento com Leteos/Caronte, Orfeu vence a morte com a sua música. 

Em muitas representações medievais do poeta Ovídio, se assinalavam as semelhanças entre a morte de Eurídice e a queda de Eva. Neste auto, aparecem os elementos bíblicos da serpente, da maçã proibida e a promessa de igualar Deus (Génesis 3:5). 

“A Morte de Eurídice” é uma pintura do pintor Erasmus Quellinus II, feita em 1630 e que se encontra no Museu do Prado, em Madrid. (app.fta.art)

Depois do pecado e da subsequente perda da harmonia na Natureza, o resgate de Orfeu simboliza a Encarnação de Deus, a sua Morte na Cruz e a Redenção do género humano. Esta cena configura-se como uma via crucis, na qual Orfeu leva a sua harpa, como Cristo a sua cruz. A tradição medieval assimilava ambos os instrumentos. 

“Filosofía secreta”, de Pérez de Moya.
(Direitos reservados)

É de assinalar, ainda, o que se indica, no trabalho ensaístico “Notas a El Divino Orfeo de Calderón de la Barca”, da autoria de Pilar Berrio Martín-Retortillo I.B Cánido (Biblioteca Virtual Cervantes), a propósito da etimologia que Calderón atribui ao nome de Orfeu. “Orfeu, o protagonista, aparece com o seu próprio nome.” Como é habitual nas suas peças mitológicas, Calderón gosta de fornecer a etimologia da onomástica das suas personagens. Como Pérez de Moya, que, no seu manual prático “Filosofía secreta”, afirma que “isto significa Orfeu, que significa auroafones, isto é, som dourado”. O dramaturgo, distorcendo a exegese etimológica (“oraia phone”) de Fulgêncio, refere-se a Orfeu como “voz dourada ou com voz dourada, porque como o ouro tem virtude atraente,  passa à voz suas excelências”.

E voltando ao ponto de partida deste meu artigo, quero lembrar o belo espectáculo de “O Grande Teatro do Mundo”, de Calderón, no Teatro Nacional São João (TNSJ), na encenação de Nuno Carinhas, sempre competente, tanto na direcção de actores como no ambiente plástico desenhado no palco. Recorrendo a uma nota informativa do próprio TNSJ, lemos: “[…] Espectáculo que marcou a sua estreia enquanto encenador neste palco do ex-director artístico Nuno Carinhas, em 1996. Esta produção do Teatro Nacional São João esteve em cena entre os dias 19 e 27 de Setembro e 12 e 27 de Outubro.”

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Notas:

“O Grande Vidro” de Marcel Duchamp. (arte.seed.pr.gov.br)

1Quanto à obra de Calderón, recomendo a leitura de “O Fio da Verdade”, expressão retirada de Calderón de la Barca e que remete ao mito do fio de Ariadne, que serve de cenário para o autor repensar a aventura do conhecimento e destilar uma história. O conceito de “verdade” surge de acordo com a sua filosofia do limite. A construção dos seus principais conceitos é testada neste livro em diálogo com obras de arte (como “O Grande Vidro” de Marcel Duchamp, “Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés”, de Orson Welles, “Quarta Sinfonia” de Brahms) e com filosofias clássicas (“Assim Falou Zaratustra”, de Friedrich Nietzsche, ou “A República” de Platão).

2 – Eugenio Trias (Barcelona, 1942-2013) foi um dos filósofos espanhóis de maior prestígio e reconhecimento internacional, como o demonstra o facto de, em 1995, ter sido o primeiro pensador espanhol a receber o Prémio Internacional Friedrich Nietzsche.

(tnsj.pt)

3 – O Teatro Nacional São João e as edições Húmus lançaram mais um volume da sua coleção de textos dramáticos: “O Grande Teatro do Mundo”, de Pedro Calderón de la Barca, com tradução de José Bento e prefácio de Guillermo Heras. Texto referencial de um género específico, o auto sacramental da Espanha seiscentista, “O Grande Teatro do Mundo” é uma peça alegórica em um acto, sem estrutura temporal, de tema principalmente eucarístico, destinada a ser apresentada no dia do Corpo de Deus. As personagens desta peça são, na sua maioria, de natureza simbólica, não lhes estando associada qualquer “construção psicológica”. Por detrás do veio ideológico/eclesiástico que a estrutura, e de uma fina análise de classes, sobressai o fulgor da poética calderoniana.  Autor maior do chamado Século de Ouro espanhol, Calderón de la Barca nasceu em 1600, foi militar e tomaria votos religiosos em 1651, antes de ser nomeado “Autor de Corte”, acedendo a grandes orçamentos e a faustosas encenações. Alçou o auto sacramental à perfeição e cultivou também um género popular em Espanha, a zarzuela. Dele dizia Goethe que era o génio dotado da mais elevada inteligência.  Refira, ainda, que a obra “O Grande Teatro do Mundo é o 39.º volume da coleção do Teatro Nacional São João, nas Edições Húmus, e o primeiro da série editado em 2022. 

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22/08/2024

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Roberto Merino

Roberto Merino Mercado nasceu no ano de 1952, em Concepción, província do Chile. Estudou Matemática na universidade local, mas tem-se dedicado ao teatro, desde a infância. Depois do Golpe Militar no Chile, exilou-se no estrangeiro. Inicialmente, na então República Federal Alemã (RFA) e, a partir de 1975, na cidade do Porto (Portugal). Dirigiu artisticamente o Teatro Experimental do Porto (TEP) até 1978, voltando em mais duas ocasiões a essa companhia profissional. Posteriormente, trabalhou nos Serviços Culturais da Câmara Municipal do Funchal e com o Grupo de Teatro Experimental do Funchal. Desde 1982, dirige o Curso Superior de Teatro da Escola Superior Artística do Porto. Colabora também como docente na Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti, desde 1991. E foi professor da Balleteatro Escola Profissional durante três décadas. Como dramaturgo e encenador profissional, trabalhou no TEP, no Seiva Trupe, no Teatro Art´Imagem, na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP) e na Faculdade de Direito da UP, entre outros palcos.

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