Quando as raposas tomam conta do galinheiro

 Quando as raposas tomam conta do galinheiro

(Créditos fotográficos: Mark Harpur – Unsplash)

Vivemos numa sociedade onde riqueza é confundida com virtude e em que os bilionários são tratados como heróis. Contudo, importa lembrar o óbvio: quem tem muito dinheiro não é, por definição, mais inteligente ou carismático do que os outros. Ser rico não significa nada mais do que acesso a uma quantidade de recursos superior à da maioria e, portanto, estilos de vida com os quais meros assalariados podem apenas sonhar. A cultura de glorificação do lucro faz-nos esquecer este facto, mas a Bíblia não. Já lembrava, em Timóteo 6:10, que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”. Uma lição que falhou sempre na execução, até mesmo pela Igreja Católica, que, desde cedo, vendeu bulas para perdoar os ricos e poderosos de pecados terrestres e comprar-lhes um lugar no Paraíso.

(Créditos fotográficos: Jacob Vizek – Unsplash)

A religião foi perdendo importância, mas o dinheiro também é aliado dos poderes seculares, como prova a tomada de posse de Donald Trump, de novo presidente dos Estados Unidos da América (EUA). Vejamos alguns dos patrocinadores do evento, que arrecadou 170 milhões de dólares: Google, Meta, Microsoft, Amazon, Apple, OpenAI (e a lista continua), todos contribuíram com um milhão de dólares cada um. Um gesto simbólico para empresas que têm muitos milhares de milhões, mas que aproxima quem é rico de quem tem poder. A curto prazo, trouxe um lugar de honra aos CEO das grandes empresas de tecnologia na tomada de posse, melhor até do que os membros da nova administração. Jeff Bezos (da Amazon), Mark Zuckerberg (da Meta) Sundar Pichai (da Google) e Elon Musk (da Tesla) estão tão bem cotados pela nova administração que se sentaram na segunda fila, apenas com a família de Trump à frente. A longo prazo, estas e outras contribuições compram políticas favoráveis, leis simpáticas e acesso facilitado a fundos públicos. Fica clara a ordem de prioridades para o novo governo americano – e que a governação do país, mais do que nunca, vai ser uma oligarquia descontrolada.

Silicon Valley, nos EUA. (Créditos fotográficos: Amy Vosters – Unsplash)

A oligarquia é um sistema político onde o poder está concentrado num pequeno grupo, em geral, do mesmo partido político família ou poder económico, literalmente um “governo de poucos”. Os poderes económicos evitam governar diretamente porque a governação vem com responsabilidades perante os constituintes e, por isso, é mais fácil fazer doações a partidos e a políticos, bem como criar grupos de interesses e grupos de pressão, além de patrocinar campanhas e think tanks que produzem uma visão do Mundo que cria políticas que favorecem os seus negócios. Numa democracia sem representantes fortes e independentes, os ricos governam em interesse próprio sem nenhum contraponto. Na oligarquia, ficam as raposas a tomar conta do galinheiro.

(impactio.com)

Exemplo disso é a nomeação de Elon Musk para liderar o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em Inglês), um órgão consultivo que visa reduzir os custos do governo norte-americano. Menos governo, mais espaço para as grandes empresas fazerem o que bem entenderem.

Nos últimos anos, Musk – que cresceu numa família rica da África do Sul e fez uma fortuna como cofundador do PayPal – tem-se esforçado para ser uma estrela de rock do mundo empresarial: ajudou a fundar a OpenAI (donos do ChatGPT), comprou a Tesla e tornou-se um líder do mercado de veículos elétricos, antes de lançar a SpaceX, para dominar lançamentos de foguetões comerciais. Comprou também a rede social Twitter, onde reduziu a moderação, permitindo que a plataforma se tornasse um viveiro de “bots” e de opiniões racistas e xenófobas. Adorado por grandes partes da Internet, Musk é uma figura divisiva, tendo protagonizado comportamentos controversos, incluindo gestos que muitos interpretaram como uma saudação nazi durante um evento. Mas, como tem dinheiro, teve direito ao benefício da dúvida.

Elon Musk (Imagem gerada por IA – artguru.ai)

Por que é que grande parte da população adora gente como Musk? Perante a ausência de mil milhões de euros na conta, muitos vivem através das imagens de quem o tem e, assim, evitam sentir que estão no fundo de uma hierarquia social. Idolatram os ricos e poderosos porque acreditam que têm mais em comum com eles do que com os pobres. Um instinto que explica também muito do racismo, a lógica de que os problemas sociais são criados apenas pelos que têm outra cor da pele e não são nossa responsabilidade. E os ricos utilizam os seus recursos para criar narrativas que os elevam. Controlam meios de comunicação, influenciam redes sociais, garantem um acesso privilegiado a capital ou a oportunidades de negócio. Privilégio cria privilégio – e não paga imposto. Enquanto isso, moldam as políticas para criar um mundo à sua medida.

(Imagem gerada por IA – new.express.adobe.com)

Não se ganha nada em glorificar bilionários. Ao entregar o futuro a uma elite que pouco ou nada entende da realidade da maioria, perdemos a oportunidade de criar uma realidade mais solidária. O verdadeiro progresso de uma sociedade não se mede pela riqueza acumulada por poucos, mas pela dignidade e igualdade de todos. Cabe-nos exigir que aqueles que controlam os recursos do mundo os utilizem para benefício coletivo. Porque, sem responsabilidade, o poder torna-se o alicerce de uma distopia onde apenas o dinheiro define quem merece ser tratado como gente. A história dirá como a renovada oligarquia americana se desenrolará — mas os sinais não são animadores.

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06/02/2025

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Marco Dias Roque

Jornalista convertido em “product manager”. Formado em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Coimbra, com uma passagem fugaz pelo jornalismo, seguida de uma experiência no mundo dos videojogos, acabou por aterrar no mundo da gestão de risco e “compliance”, onde gere produtos que ajudam a prevenir a lavagem de dinheiro e a evasão de sanções. Atualmente, vive em Londres, depois de passar por Madrid e Barcelona. Escreve sobre tudo o que passe pela cabeça de um emigrante, com um gosto especial pela política e as observações do dia a dia.

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